‘Narcopentecostalismo’? Mídias de notícias desinformam sobre a relação entre igrejas evangélicas e traficantes

* Matéria atualizada em 02/06/2023 para correção de informações

Matéria publicada originalmente pela BBC News Brasil repercutiu intensamente nas mídias digitais nas últimas semanas. Intitulada “‘Narcopentecostalismo’: traficantes evangélicos usam religião na disputa por territórios no Rio”, a reportagem apresenta a complexa dinâmica entre territórios disputados pelo tráfico e o fenômeno religioso.

Religiosos e acadêmicos estudiosos do tema reagiram à reportagem, reproduzida por jornais de grande circulação, apontando possível sensacionalismo na utilização de termos que associam práticas criminosas do tráfico à religiosidade evangélica. Bereia apurou a utilização, pela imprensa, do termo “narcopentecostalismo” à luz do que dizem pesquisadores do fenômeno religioso em áreas conflagradas.

Uso do termo narcopentecostalismo

Reportagem da BBC News Brasil, veiculada em 12 de maio, reproduziu argumento da cientista política e pesquisadora do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Kristina Hinz, segundo o qual “o termo neopentecostalismo tem sido empregado por diversos pesquisadores que analisam o fenômeno de narcotraficantes que assumem, de forma explícita e aberta, religiões neopentecostais, inclusive em suas atividades criminosas”.

Imagem: reprodução do Twitter

De acordo com a cientista política, “são traficantes que ao mesmo tempo participam da ‘vida do crime’ e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel da comunidade”.

O principal exemplo utilizado para sustentar a tese de que há uma convergência entre tráfico de drogas e religiões neopentecostais é a criação, em 2016, do Complexo de Israel, que uniu as comunidades de Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica-Pau, no Rio de Janeiro. 

No território recém-unificado foram introduzidos símbolos religiosos e alguns traficantes se dizem convertidos ao Evangelho. É o caso de Peixão, criador do complexo, que se autointitula “traficante evangélico”. Entretanto,alguns estudiosos reagiram à forma de abordar a relação entre tráfico e religião apresentada por parte da imprensa como uma fusão que institui uma nova forma religiosa: uma narcorreligião, o narcopentecostalismo.

A utilização do termo não é nova na imprensa brasileira. Os pesquisadores em Língua Portuguesa Anderson Ferreira e Carlos Alberto Baptista produziram pesquisa, em 2020, que identifica este uso, por exemplo, em reportagem da revista Época, em 2019, com o título “‘Narcopentecostais’: casos de intolerância religiosa crescem com expansão de facção no Rio”. 

Época reportou um relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que contabilizou 176 terreiros fechados no Rio de Janeiro, após ataques ou ameaças de traficantes. Ferreira e Baptista analisam a matéria e identificam que a revista anuncia “narcopentecostais” como uma “facção” em expansão. O relatório da Comissão referida, porém, não mencionava “traficantes evangélicos” e, sim, “traficantes”, destacam os pesquisadores. Eles tomam a matéria como exemplo de como as mídias jornalísticas seriam “responsáveis pela [re]construção de uma identidade híbrida entre traficantes e evangélicos”.

Dinâmica histórica da religiosidade nas periferias

A relação da religiosidade com dinâmicas de ocupação de territórios é um fenômeno antigo. É o que afirma a teóloga, pastora e pesquisadora da equipe do Instituto de Estudos da Religião (ISER), e autora do livro “Traficantes evangélicos: Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus”, Viviane Costa, em entrevista ao canal no YouTube Meteoro Brasil.

Imagem: reprodução do YouTube

“Há, desde a antiguidade, essa participação das divindades nas conquistas de território. No final da década de 1980, os traficantes já utilizavam os elementos religiosos, já utilizavam símbolos religiosos nessas disputas de poder no Rio de Janeiro. Então, quando um território era dominado por uma nova facção, a divindade dessa facção era derrotada e também era destruída e substituída, fosse numa imagem, fosse numa pintura, num muro, numa pichação ou em alguma espécie de devoção que era expressada na comunidade, como elemento, também, de dominação do território”, afirma a pesquisadora.

Costa faz, ainda, uma correlação com a própria dinâmica religiosa nacional: “nos últimos anos, a gente sabe que o campo religioso brasileiro começou a mudar. A gente tinha um catolicismo muito presente em toda a estrutura da nossa cultura, mas que vai sendo transformado, especialmente a partir das margens, das favelas, dos lugares de pobreza. E acontece assim no Rio de Janeiro”.

Periferias, tráfico e igrejas evangélicas

Uma das primeiras pesquisadoras a se dedicar a compreender o fenômeno da relação entre traficantes de drogas e igrejas foi a antropóloga, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da equipe do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Christina Vital. Ela identificou nos seus estudos, ainda no limiar dos anos 2000, que, na virada dos anos 1990 para os anos 2000 houve uma mudança radical da sociabilidade nas favelas do Rio de Janeiro, no que diz respeito à relação entre religiosidade e tráfico. 

Aquele novo contexto, segundo Vital, foi marcado pelo que ela denominou “cultura pentecostal”. “[Tal cultura] existe nas localidades e se expressa dentro das lógicas do universo evangélico, a ver com a cosmovisão pentecostal do mundo como o lugar da guerra. É o mundo da guerra do bem contra o mal, da disputa das almas. Paralelamente, esse é o mundo do tráfico, da guerra e da vigia, é bíblico também, vigiar e orar. O vigiar vem antes do orar. O cotidiano dos traficantes é o de vigia constante”, descreveu em entrevista ao IHU On Line, em 2017,  após o lançamento do seu livro Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015).

Imagem: Christina Vital/Arquivo Pessoal

Na entrevista ao IHU, Christina Vital explicou que, na pesquisa, “tentava entender de que modo as redes evangélicas funcionavam como redes de segurança para os moradores dessas localidades que dispunham de um dia a dia muito entrecortado por situações de violência e de precariedade de serviços oferecidos pelo Estado”. 

Naquele momento, a pesquisadora afirmou: “Eu pensava estas redes como um suporte material, espiritual e psicológico, entendendo que várias dessas igrejas pentecostais ou neopentecostais têm pastores e obreiros que são formados em psicologia e que fazem um tipo de abordagem misturando os diferentes universos de conhecimento. Durante este acompanhamento pude observar a proximidade dos traficantes às redes evangélicas, buscando por proteção, sobretudo porque muitos desses traficantes haviam sido formados em famílias evangélicas, mas que saíram de casa e acabaram indo para o tráfico”.

Vital continua: “O que acontece em Acari, como em outras favelas, é o crescimento do número de igrejas formando um público cada vez mais numeroso de pessoas que estão nas igrejas. E mesmo aquelas que não estão começam a partilhar daquilo que poderíamos chamar de ‘cultura pentecostal’. Isso é uma marca estética e uma gramática utilizada pelos moradores de modo que os traficantes são influenciados por essas perspectivas compartilhadas de modo mais geral”.

Imagem: reprodução do G1

Outro pesquisador que estudou o fenômeno, naquele início dos anos 2000, em diferentes favelas do Rio de Janeiro, foi o sociólogo e professor da Universidade de Vila Velha César Pinheiro Teixeira. Ele abordou o tema sob outra perspectiva: narrativas de conversão que recolheu e que destacavam o lugar do relacionamento entre pentecostais e traficantes num mesmo território mostrando a emergência de uma nova identidade, os ”ex-bandidos”. Teixeira explicou que “ex-bandidos” não se referiam, no que observada, aos egressos do sistema prisional, mas àqueles que tinham abandonado a vida no crime por terem experimentado uma conversão religiosa pentecostal.

Com um olhar voltado para o que Christina Vital e César Teixeira haviam indicado, o sociólogo professor da Universidade de Vila Velha Diogo Corrêa realizou um trabalho de campo na favela Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2014. Ele buscou compreender as relações entre tráfico de drogas e as igrejas pentecostais naquela localidade. Em artigo para o Observatório Evangélico, o pesquisador afirma ter diagnosticado fenômenos semelhantes àqueles percebidos por Vital e Teixeira. Ele é autor do livro “Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus”.

 Corrêa aponta ter identificado, com a pesquisa, a existência de uma “complexa coabitação entre traficantes de drogas e evangélicos no território da favela Cidade de Deus [que] teria produzido um duplo fenômeno: de um lado, um estilo de pentecostalismo particular, gerado na relação com a forma de vida do crime e com um ambiente caracterizado pela recorrência de situações violentas; de outro, um tráfico de drogas que abraça, em boa parte, uma cultura, uma linguagem ou mesmo uma gramática pentecostal”.

Diogo Corrêa ressalta que tal fenômeno de transformação mútua – tanto do  tráfico que se transformou com o crescimento dos evangélicos no território da Cidade de Deus, bem como do pentecostalismo que se transformou em sua relação com o universo do crime – não significou uma fusão entre ambos. Na análise do sociólogo, “moradores, traficantes e crentes da Cidade de Deus continuam a saber discernir o que é próprio do mundo da igreja pentecostal e o que é próprio do mundo do crime; grosso modo, eles sabem diferenciar o que é um traficante e o que é um crente”.

Repercussão negativa do termo narcopentecostalismo

A reportagem da BBC News Brasil ganhou repercussão nos meios evangélico e acadêmico, que reagiram à fusão entre o crime organizado e o protestantismo. Diogo Corrêa questiona, no texto para o Observatório Evangélico, a utilização dos termos “narcopentecostalismo” e “traficante evangélico”.

“Ao menos a partir do meu contexto etnográfico (…), categorias como ‘traficante evangélico’, ‘narcopentecostalismo’ não descrevem de forma adequada a experiência dos próprios evangélicos – e nem dos traficantes aderentes à cultura pentecostal -, além de incorrerem no risco de sugerir, de forma equivocada, a existência de uma espécie de religião para o crime”.

Corrêa cita exemplos, extraídos de pesquisa etnográfica por ele conduzida. Em um deles, uma pessoa ligada ao crime organizado reconhece, em conversa com o pesquisador, que suas atitudes não permitem que ela se classifique como evangélica: “para ser evangélico eu preciso praticar aquilo que eu acredito”, teria dito.

O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia também repercutiu a reportagem da BBC, criticando, principalmente, o jornal O Globo, que a reproduziu. Em vídeo publicado no Twitter, o pastor chamou a reportagem de “canalha e mentirosa” e apontou o fato de que o jornal O Globo não se refere a “traficante umbandista”, “traficante do candomblé” ou “traficante católico” em outras ocasiões. 

Imagem: reprodução Folha Gospel

Bereia verificou que a abordagem do líder midiático reforçou o caráter sensacionalista em torno do caso. O discurso do pastor, além de ser emotivo e carecer de argumentação sólida quanto ao tema em questão, ainda lançou mão de desinformação promotora de intolerância contra as religiões de matriz africana.

“Narcopentecostalismo”: uma noção sem base concreta

Bereia ouviu a pesquisadora pioneira no estudo sobre a relação entre lideranças do tráfico de drogas e igrejas evangélicas nas periferias do Rio, Christina Vital, sobre as abordagens nas mídias de notícias nas últimas semanas. 

Sobre o ‘narcopentecostalismo’, Vital ressaltou que não há base concreta para sustentar este termo na atualidade. “Não sabemos do futuro, mas, hoje, não temos uma igreja liderada por alguém que está deliberadamente no crime e que tenha uma liturgia ou teologia voltada somente a esta atividade criminosa.  Se é isso que o termo supõe, não se sustenta. A aproximação entre criminosos e redes religiosas não é nova, não foi inventada por evangélicos e nem acontece exclusivamente em torno desta religião”. 

A pesquisadora explica que, já o segundo termo, “traficantes evangélicos”, sim, tem base concreta, mas deve ser usado com ética e cuidado porque não é usado comumente nem pelos traficantes e nem por evangélicos de modo geral. Vital afirma: “Lancei este termo em 2006 para descrever um fenômeno identificado nas favelas cariocas em que eu pesquisava, e o fiz entre aspas, explicando que não era uma autorreferência dos traficantes em relação a eles mesmos. O termo incomodava muitos evangélicos e evangélicas que se sentiam estigmatizados pelo uso descuidado desta expressão que fazia parecer que sua religião era permissiva em relação ao crime e eles afirmam que não. No entanto, usei esta terminologia pioneira e cuidadosamente para descrever um fenômeno que chamava atenção: a emergência de traficantes que atuavam em favelas e faziam orações publicamente, participavam de cultos, alguns eram dizimistas em grandes denominações, falavam sobre a redução de práticas violentas em seu cotidiano. Além dos pedidos de oração facilmente identificados pela mídia, esses traficantes apoiavam a divulgação da Palavra e a faziam de forma direta, eventualmente”.

Christina Vital oferece a leitoras e leitores do Bereia um alerta relevante: “É importante lembrar que o uso deste termo ‘traficantes evangélicos’ não deve mascarar, ainda, outras formas de experiência religiosa entre traficantes em favelas e periferias na atualidade. A religião de traficantes de drogas na high society carece de investigação”.

A pesquisadora e pastora Viviane Costa reforça: “O termo ‘narcopentecostalismo’ é equivocado e vem se revelando como parte de um alinhamento preconceituoso midiático contra evangélicos pentecostais. ‘Narcopentecostalismo’ força a ideia de exclusividade e até de ineditismo da presença de religiões em dinâmicas do crime”. 

Costa também sinaliza: “Ainda que estejamos falando de uma nova configuração quando olhamos para o Complexo de Israel e os traficantes evangélicos, onde a religião tem papel fundamental na estrutura, estratégias, identidades e ética local impostas pelo tráfico, é equivocado dizer que somente nesses territórios e na relação com evangélicos pentecostais, a religião e as experiências com o sagrado estão presentes dando sentido à vida e segurança em contextos de violências”.

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Com base nesta verificação, Bereia avalia que o uso do termo “narcopentecostalismo” em matérias das mídias de notícias, destacadas nas últimas semanas, é desinformativo, com caráter ENGANOSO. Os estudos empreendidos por diferentes pesquisadores, com ênfases distintas, voltados ao relacionamento entre igrejas evangélicas e o tráfico de drogas na vivência das favelas, afirmam uma coabitação e a transformação mútua de ambos. Porém, nenhuma das pesquisas identifica uma fusão entre pentecostalismo e crime ou a existência de uma ou mais igrejas com teologia, liturgia e pastoral voltadas à prática do crime. 

Ou seja, não há base concreta para se afirmar um “narcopentecostalismo”, quando o que se comprova é a existência de líderes do tráfico de drogas que se identificam como evangélicos e de igrejas que transformam seu jeito de existir nas favelas por conta da dinâmica do tráfico.

O uso do termo “narcopentecostalismo” tem sido veiculado de forma irresponsável pelas mídias de notícias, contribuindo para a amplificação de expressões de intolerância religiosa em diferentes contextos.

Referências de checagem:

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5ej64934mo Acesso em: 31 mai 2023

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/05/ascensao-evangelica-fez-traficantes-substituirem-santos-e-orixas-por-deus-de-israel-conta-livro.shtml Acesso em: 01 jun 2023

Deus no comando: uma análise do discurso “narcopentecostal”.https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/4218/2218 Acesso em: 31 mai 2023

YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=9fLdyxDnxIU&ab_channel=MeteoroBrasil Acesso em: 31 mai 2023

Observatório Evangélico.

https://www.observatorioevangelico.org/ha-de-fato-um-narcopentecostalismo-e-traficantes-evangelicos/ Acesso em: 31 mai 2023

https://www.observatorioevangelico.org/nao-existe-narco-pentecostalismo-em-favelas-hoje/ Acesso em: 31 mai 2023

Folha Gospel. https://folhagospel.com/silas-malafaia-critica-materia-jornalistica-sobre-traficantes-evangelicos/ Acesso em: 31 mai 2023

IHU.

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/564908-oracao-de-traficante-o-mundo-da-guerra-do-trafico-e-da-guerra-das-almas-entrevista-com-christina-vital-cunha Acesso em: 31 mai 2023

https://www.ihu.unisinos.br/564604-livro-de-professora-da-uff-analisa-relacao-entre-religiosidade-e-trafico Acesso em: 31 mai 2023

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3206&secao=329 Acesso em: 31 mai 2023

De “Corações de Pedra” a “Corações de Carne”: Algumas Considerações sobre a Conversão de “Bandidos” a Igrejas Evangélicas Pentecostais. https://www.scielo.br/j/dados/a/W9HH5dc7vcqn6xdPXxzpGwQ/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 31 mai 2023

Wikifavelas. https://wikifavelas.com.br/index.php/De_%E2%80%9CCora%C3%A7%C3%B5es_de_Pedra%E2%80%9D_a_%E2%80%9CCora%C3%A7%C3%B5es_de_Carne%E2%80%9D:_Algumas_Considera%C3%A7%C3%B5es_sobre_a_Convers%C3%A3o_de_%E2%80%9CBandidos%E2%80%9D_a_Igrejas_Evang%C3%A9licas_Pentecostais._(Resenha) Acesso em: 31 mai 2023

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Foto de capa: reprodução IHU.

Thomas Friedman e a desinformação da “burrice”

Thomas Friedman não quer analisar nada, é pura guerra de propaganda, disputa pelo controle da narrativa e a apresentação de ‘estórias’ embaladas por preconceitos supostamente sofisticados de quem o lê”, escreve Bruno Lima Rocha, pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política e professor nos cursos de relações internacionais, jornalismo e direito.

Eis o artigo. 

Diariamente somos surpreendidos pelo exagero na prepotência e na capacidade de desinformar, fazer circular ideias equivocadas, enfim, “mentir com algum estilo”. A estas técnicas de manipulação de audiências massivas – embora circular e muitas vezes temporária – o Império e seus aliados vêm denominando de “disputa narrativa ou disputa pelo controle da narrativa”. Como em todas as guerras, a primeira vítima é a verdade, na guerra híbrida de 4ª geração o padrão é o mesmo. Vejamos um exemplo de inversão de prioridades e denominações pejorativas para fazer valer uma tese falsa, onde quem reage agride e quem agride se torna apenas “preventivo”.

No dia 03 de janeiro de 2020 ainda antes da resposta iraniana ao ato terrorista autorizado pelo presidente do Império Donald Trump, o célebre articulista e ex-editor do New York Times, Thomas Friedman, produziu um artigo de opinião que correu o mundo ocidentalizado. O título em inglês é “Trump kills Iran’s most overrated warrior”. E a linha de apoio afirma. “Soleimani pushed his country to build na empire, but drove it into the ground instead”.

 (Gráfico: IANS Graphics)

Em nosso país, o texto do autor da infame ode à mundialização capitalista, o best-seller neoliberal “O mundo é plano” (editado no Brasil em 2005), foi traduzido e publicado (postado) no jornal Folha de São Paulo e depois reproduzido em diversas publicações na internet. O Principal veículo da família Frias fez circular a ideia de Friedman – o Thomas, que propagandeia também o Milton, mesmo que de forma dissimulada – ao afirmar a “burrice” iraniana. O título em português é “General iraniano morto em ataque americano era burro e superestimado”. (Acesse aqui). 

Quando Friedman se refere ao major-general Qassem Soleimani (1957-2020), refere-se ao Estado persa, considerando que o militar assassinado por ordem de Trump se reportava diretamente ao Líder Supremo, o Grande Aiatolá Ali, logo se trata do mais alto nível decisório do país. Para ele, Thomas, o Irã seria “burro” porque não seguiu aproveitando o bom momento de crescimento econômico advindo das negociações multilaterais coordenadas pela ONU. Nestas a administração Barack Hussein Obama – com John Kerry à frente do Departamento de Estado – aliviaram uma parcela importante das sanções e do bloqueio econômico. As negociações para controle da pesquisa atômica se deram em 2015 – com a participação intensa da diplomacia brasileira à época – implicando em um crescimento econômico de 12% em 2016.

A “burrice” seria não seguir o boom de sua própria economia com mediana complexidade e se “aventurar” a ampliar a atuação na política regional no Oriente Médio. Para Thomas Friedman, ser “inteligente” é ficar “bem comportado”, de maneira quieta, acatando a hegemonia fática de Arábia Saudita e Israel, e não participando de conflitos onde operam seus principais aliados. Enfim, a “esperteza” seria entregar o xiismo ampliado à própria sorte, incluindo a relação com o Hezbollah na defesa da soberania nacional libanesa. “Inteligência” poderia ser ajudar a entregar a Palestina às traições da Autoridade “Nacional”, o cerco à Gaza e a ocupação da maior parte da Cisjordânia, incluindo o roubo de terras e valiosos recursos hídricos. “Sagaz”, para Friedman, seria portar-se como Egito após a traição de Camp David ou quiçá como os hachemitas do Reino da Jordânia, inventado pelos ingleses.

Poucas vezes li algo tão cínico, menosprezando tanto as capacidades do Estado persa como superestimando os países “ocidentais”, dentre os quais Israel se inclui sem sê-lo. De maneira alguma estou “defendendo” o Irã dos aiatolás de forma incondicional. Sou crítico – muito crítico por sinal – de sua política doméstica assim como me oponho à relação com a maioria sunita na Síria. A defesa da democracia política, das liberdades religiosas, da equidade de gênero, do federalismo étnico-cultural e de uma economia com base cooperativa rumando a um modelo socialista adequado ao Oriente Médio não encontra eco no cinismo de Thomas Friedman.

Eu insisto se fosse uma crítica humanista com honestidade intelectual, deveria separar os níveis de análise. A defesa da democracia social no Irã não nos impede de entender alguns acertos de sua política externa. Queria ver um Irã de plenos direitos para homens e mulheres, sunitas e xiitas, persas, árabes, azeris, balochis e curdos. Só não quero ver um Irã destruído pelos gringos e nem com um governo fantoche da Casa Branca.

O articulista do New York Times compara o Irã com uma força imperial na região. Em parte sim, Teerã exerce projeção de poder, mas essa é a norma das relações internacionais e não a exceção. Em termos gerais, o autor do livro “De Beirute a Jerusalém” (editado em 1989, facilmente encontrado em português) critica a única das quatro potências regionais (IsraelArábia SauditaTurquia e Irã) que enfrenta diretamente os cruzados ocidentais e não adere de forma completa aos russo-bizantinos.

Logo, a “burrice” dita por Thomas Friedman é a vontade soberana de exercer relações exteriores por parte de um país independente com assento na Assembleia Geral da ONU. Ou o ex-editor do jornal mais prestigiado dos EUA também considera que países independentes e com vontade própria sejam “burros”, devendo os povos do mundo se resignar a condições subalternas de capitalismo periférico?! Inteligente é a adesão ao imperialismo dos Estados Unidos ou quem sabe, à projeção de poder imperial de China é Rússia?! Foi “burrice” a independência da Argélia através de sua guerra de libertação? É uma “estupidez” lutar pelos direitos inalienáveis de cerca de sete milhões de palestinos vivendo sob o cerco, ocupação militar e apartheid impostos pelo Estado de Israel sendo estes últimos também financiados por Washington? Foi a “ameaçadora” presença do Irã no Líbano e na Síria que “forçou” Israel a influenciar o governo do Império e mudar sua política na região? O argumento absurdo contido no texto é esse.

Será que Thomas Friedman considera uma “burrice” do Reino do Qatar a afirmação de sua política externa independente, coordenando esforços comerciais e produtivos tanto com o Irã como com a Turquia? Seria pelo “raciocínio” do colunista um “despropósito” a existência de um conglomerado de comunicação de altíssima qualidade como a Al Jazeera?

Pela “lógica” de Friedman, a luta Federalista e Socialista do Curdistão é outra “estupidez” já que para tal a esquerda curda precisa enfrentar ao menos duas potências regionais simultaneamente. Poderia seguir em exemplos diversos desta caricatura de análise, mas creio já haver atingido o objetivo.

Thomas Friedman não quer analisar nada, é pura guerra de propaganda, disputa pelo controle da narrativa e a apresentação de “estórias” embaladas por preconceitos supostamente sofisticados de quem o lê. A grande “burrice” de Thomas Friedman é superestimar suas próprias versões, as quais se forem verdadeiras, são simplesmente “vazamentos” combinados de relatórios de inteligência. Melhore seu desempenho senhor colunista do Império, porque essa desinformação forçosa não emplacou.

A primeira versão deste artigo foi originalmente publicada no Monitor do Oriente.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/595661-thomas-friedman-e-a-desinformacao-da-burrice