Projetos de deputados e vereadores buscam inserir Bíblia nas escolas

Que o Brasil é um Estado laico é algo conhecido e aprendido desde muito cedo nas escolas. Isso significa que o poder público deve se manter neutro em relação às religiões, sem favorecer ou discriminar nenhuma delas, e garantir que fiéis possam praticá-las abertamente e que não fiéis sejam livres para não seguí-las.  

Por isso, o artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, garante a liberdade de crença e culto, assegurando que ninguém seja privado de direitos por motivo de convicção religiosa. Ao mesmo tempo, o artigo 19 proíbe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios “apoiem ou subvencionem a execução de cultos religiosos ou igrejas”, o que inclui o ambiente escolar nesse contexto. 

No acompanhamento que faz das notícias que circulam em ambientes religiosos, o Bereia observa constantes intervenções de agentes do Estado que contrariam esta orientação. Por meio de projetos de lei, tanto das assembleias estaduais como de câmaras municipais, deputados e vereadores têm proposto a inclusão da leitura da Bíblia como conteúdo obrigatório nas escolas públicas, o que tem provocado intensos debates. Para quem faz a proposta, é uma uma forma de preservação da “ética e de valores”, já para críticos, a medida representa uma violação do princípio da laicidade do Estado e pode ferir o direito à diversidade religiosa, já que nem todos os estudantes seguem a fé cristã.

Diversidade religiosa e o risco da imposição de um tipo de fé

O Brasil é um país marcado pela pluralidade religiosa. Além de católicos e evangélicos, há milhões de brasileiros que seguem religiões de matriz africana, judaísmo, islã e espiritismo, entre outras crenças — além de pessoas sem religião e declarados ateus e agnósticos. Nesse cenário, tornar o ensino da Bíblia obrigatório pode ser, “de fato”, interpretado como uma tentativa de impor uma visão religiosa específica em detrimento das demais.

Embora o ensino religioso seja previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ele deve respeitar o caráter não-confessional, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Ou seja, não pode haver favorecimento a nenhuma religião em particular. 

Especialistas alertam para os riscos de se fomentar a intolerância religiosa ao se promover uma única doutrina em instituições públicas. Alunos de outras religiões — ou sem religião — podem se sentir excluídos, discriminados ou constrangidos em sala de aula. A imposição pode criar um ambiente hostil, alimentando preconceitos e reforçando estereótipos sobre minorias religiosas.

Esta é a avaliação do antropólogo pesquisador em religião e política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rodrigo Toniol. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em abril deste ano, a propósito do ocorrido em Belo Horizonte, Toniol avalia que há simulação de zelo pelo patrimônio cultural: “Estamos assistindo, na verdade, à implementação de uma política educacional disfarçada de zelo pelo patrimônio cultural, mas que, na prática, promove uma única doutrina religiosa.” O pesquisador aponta que este tipo de proposição “tenta se disfarçar de valorização cultural para instituir, por vias enviesadas, um privilégio religioso”.

Projetos de Lei em todo o país

Apesar das garantias constitucionais, propostas legislativas que buscam inserir a leitura da Bíblia nas escolas têm se multiplicado em diversos estados e municípios do Brasil. Em Manaus (AM), por exemplo, foi aprovado pela Câmara Municipal, em 2023, por unanimidade, um projeto de lei do vereador alinhado à direita Raiff Matos (DC), que autorizaria a leitura bíblica como recurso paradidático em escolas públicas e privadas. Questionada no Supremo Tribunal Federal, a lei foi vetada por ser inconstitucional. 

No Paraná, o vereador Jairo Cardoso (DEM) apresentou proposta semelhante à Câmara de Vereadores de Foz do Iguaçu, em 2021, para permitir a distribuição de exemplares da Bíblia nas unidades escolares municipais. A própria Câmara Municipal arquivou o projeto por ser inconstitucional.

Imagem: reprodução/Câmara Foz do Iguaçu

Em Minas Gerais, propostas similares foram apresentadas neste 2025 por parlamentares alinhados à direita. Em Belo Horizonte, um projeto de lei, da vereadora evangélica Flávia Borja (DC), foi aprovado em abril passado pela Câmara Municipal e ainda está sob apreciação do Prefeito que poderá sancionar ou vetar a nova lei. Nela, a Bíblia é indicada como material paradidático para consulta facultativa nas escolas da cidade. 

Na mesma direção, também em Minas, há um projeto do Pastor Dário (PP), assinado com outros vereadores de Ribeirão das Neves, e outro, em Pouso Alegre, pelo vereador Leandro Morais (União). 

Esses projetos, que contêm o mesmo teor, e, por vezes, o mesmo texto, contam com o apoio de bancadas religiosas, especialmente evangélicas, que têm crescido em influência no Legislativo. Os defensores alegam que a leitura da Bíblia nas escolas poderia contribuir para a formação moral e ética dos alunos, combatendo problemas como a violência e a falta de valores. É o caso do vereador Rodrigo Arruda e Sá (PSDB), que publicou um vídeo em suas redes pedindo apoio da população para aprovar projeto de sua autoria. O parlamentar é evangélico (Comunidade das Nações em Cuiabá) e costuma publicar conteúdos sobre fé em seu perfil do Instagram. Bereia checou desinformação em torno deste caso. 

Vereador de Cuiabá Rodrigo Arruda e Sá. Imagem: Reprodução

Este é outro problema que se estabelece neste contexto: quando tais projetos são declarados inconstitucionais, seja nas próprias casas legislativas, seja em processos judiciais, autores e seus apoiadores usam a ideia de “perseguição religiosa” como crítica. Um exemplo ocorreu em 26 de janeiro passado, quando o prefeito de Sorocaba Rodrigo Manga (Republicanos) publicou um vídeo no Instagram intitulado “Perseguição aos cristãos”, afirmando que contestaria um uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) do Ministério Público de São Paulo, que pedia a retirada de Bíblias das bibliotecas da cidade. O prefeito havia sancionado o projeto de lei de um ex-vereador que determinava esta política pública.

Críticas e Reações

Para setores progressistas, no entanto, essas propostas representam uma ameaça à democracia e aos direitos civis. O deputado federal e pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ) foi categórico ao criticar as tentativas de impor o ensino bíblico nas escolas públicas e cedeu uma fala exclusiva ao Bereia sobre o assunto quando perguntado sobre seu posicionamento:

“Sou absolutamente contra essa imposição. Esses projetos que têm se multiplicado nas câmaras e assembleias legislativas são absolutamente violentos. É um desrespeito à democracia, à diversidade religiosa e também ao direito à não crença. Por si só, é uma arbitrariedade — uma imposição”, afirmou.

Deputado federal Henrique Vieira. Imagem: Divulgação/Psol

A professora e pesquisadora de Educação e Religião Andréa Silveira tem chamado a atenção sobre o uso da educação e das escolas em disputas políticas, processos eleitorais e projetos de lei por parte de parlamentares. Em importante artigo que analisou o tema nas eleições municipais de 2024, ela afirma:

O desprezo à diversidade de crenças e modos de ser e viver que subjaz ao discurso fundamentalista reverberado por tantos candidatos às Prefeituras de norte a sul do país, no pleito de 2024, é indicativo de que o que está em disputa não é somente a gestão da escola pública e do bem-estar da coletividade. Antes, o que está sendo disputado é o poder de estabelecer quais são as virtudes cívicas que, levadas às últimas consequências, são definidoras da própria identidade nacional. 

Por isso, vem crescendo a cada pleito a presença de atores religiosos na disputa da representação no Legislativo e no Executivo, que não apenas acreditam que quem controla a escola governa o mundo, mas também, disputam o campo político como agentes desse controle por meio das políticas públicas para a educação.

A controvérsia permanece: de um lado, setores que enxergam na Bíblia uma ferramenta de ensino moral; de outro, a defesa de uma escola pública neutra e inclusiva, onde nenhuma crença seja imposta e todas as religiões — ou a ausência delas — sejam igualmente respeitadas.

Referências:

Câmara Federal

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-20-dezembro-1961-353722-normaatualizada-pl.pdf  Acesso 28 mai 2025

STF

https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo875.htm Acesso 28 mai 2025

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/04/biblia-nas-escolas-mineiras-e-ofensiva-religiosa-disfarcada-de-projeto-pedagogico.shtml Acesso 28 mai 2025

Câmara Foz do Iguaçu
https://sapl.fozdoiguacu.pr.leg.br/media/sapl/public/documentoacessorio/2021/3257/pl_141-2021_cljr_contrario.pdf Acesso 28 mai 2025

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/vereador-e-portal-de-noticias-enganam-sobre-proposta-de-leitura-obrigatoria-da-biblia-em-escolas/ Acesso 28 mai 2025

https://coletivobereia.com.br/prefeito-de-sorocaba-produz-videos-enganosos-ao-afirmar-perseguicao-aos-cristaos/ Acesso 28 mai 2025

ISERhttps://religiaoepoder.org.br/artigo/a-escola-como-campo-de-disputa-nas-eleicoes-municipais-de-2024 Acesso 28 mai 2025

Imagem de capa: Tatiana/Seduc

Projeto de anistia do 8 de janeiro avança com apoio da Frente Evangélica; veja quem são

O Projeto de Lei que propõe anistiar participantes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 deu um passo decisivo neste 14 de abril, ao ter seu pedido de urgência protocolado na Câmara dos Deputados com 262 assinaturas válidas — número suficiente para que o texto seja levado ao plenário. O avanço da proposta contou com forte apoio da Frente Parlamentar Evangélica, responsável por quase 60% das assinaturas.

O PL 2858/2022 propõe anistia ampla a manifestantes, organizadores, financiadores e apoiadores de protestos ocorridos entre 30 de outubro de 2022 e a data de promulgação da eventual lei, incluindo os atos golpistas que culminaram na invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília – o que, na prática, tornaria impunes acusados por crimes graves relacionados à tentativa de golpe de Estado.

Entre os 160 parlamentares da Frente Evangélica que assinaram o requerimento de urgência está um dos réus no processo sobre os atos golpistas. Trata-se de Alexandre Ramagem (PL-RJ) se tornou réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado e responde por cinco crimes: golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado de Direito, organização criminosa, dano qualificado e deterioração do patrimônio público tombado.

Também assinaram o requerimento outros deputados evangélicos com pendências judiciais: Silvia Nobre Waiãpi (PL-AP), que teve o mandato cassado pelo STF em julgamento sobre a distribuição das sobras eleitorais –mas ainda não perdeu o mandato devido a um pedido da Câmara – e Pastor Gil (PL-MA), réu por suspeita de cobrar propina em troca da liberação de emendas parlamentares.

Para o líder do Partido Liberal deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo liderada pelo pastor Silas Malafaia, o projeto representa um gesto de justiça em nome de cidadãos que estão sofrendo “perseguição”. Já os opositores ao projeto apontam que a proposta busca, na verdade, proteger o ex-presidente Jair Bolsonaro e membros das Forças Armadas atualmente investigados por participação ou omissão no planejamento dos atos de 8 de janeiro.

O vice-líder do governo federal na Câmara, deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), avalia que a manobra revela o medo do PL perder apoio. 

“Alguns deputados retiraram suas assinaturas do projeto e, com medo de perder apoio, o PL correu para impedir novas desistências. Sóstenes, então, protocolou um pedido de urgência de votação — o que trava o processo e pressiona o presidente da Câmara a pautar o tema”, publicou em sua conta no X. 

O deputado evangélico de esquerda, da Igreja Batista do Caminho, também entende que, se sancionada, “a proposta pode beneficiar quem atacou a democracia com atos de violência, depredação e tentativa de golpe”.

Ex-presidente do STF diz que Congresso não pode conceder anistia a golpistas

As críticas de aliados do governo se unem às avaliações de alguns ministros do STF  que consideram inconstitucional o projeto de anistia defendido pelo PL. Em entrevista ao Blog da Andreia Sadi, eles argumentam que a proposta fere os incisos 43 e 44 do artigo 5º da Constituição, que proíbem anistia para crimes como terrorismo e ações armadas contra o Estado. 

Esse também é o entendimento do ex-ministro da Justiça Celso de Mello, presidente do Supremo Tribunal Federal no biênio 1997–1999. O decano afirmou que o projeto fere cláusulas pétreas da Constituição e busca usurpar o papel do Judiciário. 

“Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta e dessacraliza, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição da República”, escreveu em artigo publicado pelo ICL Notícias.

Para Celso de Mello, o Congresso Nacional não pode exercer seu poder de legislar, em matéria de anistia, nos seguintes casos:

  1. Quando a Constituição já exclui expressamente a possibilidade de anistia, como nos casos de tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e delitos a estes equiparados (art. 5º, XLIII).
  2. Quando há desvio de finalidade, como ocorre no PL 2858/2022, ao tentar transformar o Congresso em instância revisora das decisões do STF.
  3. Quando há violação ao princípio da separação de poderes, cláusula pétrea da Constituição.
  4. Quando busca beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito, também protegido por cláusula pétrea implícita.

O ministro relembrou ainda as cenas de vandalismo de 8 de janeiro, como a destruição do busto de Ruy Barbosa no Supremo Tribunal Federal, que permanece danificado como memorial do ataque. “A brutalidade vitimou a Justiça e ofendeu o grande patrono dos advogados brasileiros”, afirmou.

Quase 30% dos réus já tiveram penas perdoadas

Ao menos 546 pessoas que se tornaram rés por incitação aos atos golpistas de 8 de janeiro firmaram acordos com a Procuradoria-Geral da República (PGR) para evitar uma condenação penal formal. Os dados mais recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) mostram que, entre os 1.604 réus identificados nas ações penais, cerca de 30% optaram pelo chamado Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).

Esses acordos são oferecidos pela PGR a pessoas acusadas por crimes menos graves — como incitação ao crime ou associação criminosa simples — desde que não envolvam violência ou grave ameaça e a pena mínima seja inferior a quatro anos.

Para firmar o ANPP, os réus precisam confessar o crime, pagar uma multa (que pode variar entre R$ 5 mil e R$ 50 mil) e cumprir medidas como a prestação de serviços comunitários e a proibição de uso de redes sociais. Em contrapartida, os processos são suspensos e arquivados caso os termos sejam cumpridos integralmente, ou seja, são perdoados. Também é obrigatório assistir ao curso “Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado”, criado pela PGR, com duração de 12 horas.

Outros 237 réus recusaram a proposta da PGR e acabaram condenados a um ano de reclusão — pena que, embora substituída por sanções alternativas, gera antecedentes criminais.

Os ministros do STF André Mendonça e Kassio Nunes Marques, ambos indicados à Corte pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, têm votado pela absolvição em diversos casos. Já o relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, tem sustentado a tese de que “mesmo após os atos de 8 de janeiro de 2023, o réu permaneceu no acampamento, resultando em sua prisão em flagrante em 9 de janeiro”, o que, segundo ele, comprova “a adesão à finalidade golpista e antidemocrática, que visava à abolição do Estado de Direito”.

Até o momento, o Supremo já registra 500 condenações relacionadas ao 8 de janeiro. Os réus que cometeram crimes mais graves, como tentativa de golpe de Estado ou depredação dos prédios dos Três Poderes, não têm direito a acordos e vêm recebendo penas que chegam a 17 anos de prisão.

Caso o PL 2858/2022 seja aprovado no plenário da Câmara Federal, todos os inquéritos e processos poderiam ser anulados, inclusive os que envolvem militares e financiadores ainda em liberdade. O texto do substitutivo não impõe qualquer condição para a anistia, como admissão de culpa, ressarcimento de danos ou pedido de perdão público.

Maioria da população rejeita anistia 

Apesar do avanço do projeto na Câmara, a proposta de anistia enfrenta rejeição da maioria da população brasileira. Segundo levantamento da Quaest, divulgado em abril, 56% dos entrevistados se declaram contrários à anistia para os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, enquanto apenas 34% são favoráveis. 

A rejeição é especialmente alta entre eleitores do presidente Lula (77%) e pessoas sem religião (66%). Já entre os evangélicos, há uma divisão mais equilibrada, com 42% favoráveis à anistia e 48% contrários, o que ajuda a explicar o apoio significativo de parlamentares ligados a esse segmento ao projeto. 

A pesquisa também mostra que quase metade da população (49%) acredita que Jair Bolsonaro participou do planejamento dos atos, reforçando a percepção de que o PL da anistia busca proteger não apenas manifestantes, mas lideranças políticas envolvidas na tentativa de Golpe de Estado.

Deputados da Frente Parlamentar Evangélica que assinaram o requerimento de urgência:

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