Identidade confessional nas eleições 2024: veja quais candidatos checados por Bereia foram eleitos

Ao menos dez candidatos das eleições municipais de 2024 – dois candidatos a prefeito, quatro candidatos a vereador e quatro candidatas a vereadora – de identidade confessional e perfil desinformativo já tiveram algum discurso checado por Bereia. Entre estes, seis conseguiram eleger-se. Confira quais candidatos foram ou não eleitos, quais tiveram apoio de lideranças religiosas e quais são elas, quantos votos receberam e quais afirmações os tornaram alvo das checagens.

Prefeitos

Rodrigo Manga

Imagem: reprodução TSE

Rodrigo Maganhato (Republicanos), conhecido como Rodrigo Manga, foi reeleito prefeito de Sorocaba com 263.063 votos. Em 2020, Manga, que é missionário da Igreja Mundial do Poder de Deus e próximo do apóstolo Valdemiro Santiago, foi eleito em segundo turno com 153.228 votos. 

O prefeito, que já teve seu nome citado em casos midiáticos como o “resgate” de brasileiros em Israel e a divulgação de um “estudo” preliminar pela Prefeitura de Sorocaba, durante sua gestão, que teria apontado 99% de eficácia do tratamento precoce contra a Covid-19, com o chamado ‘kit Covid’, também já teve afirmações checadas por Bereia.

Bereia conclui que a narrativa de que cristãos estavam sendo perseguidos, propagada pelo prefeito Rodrigo Manga, em vídeos divulgados entre janeiro e março deste ano, é enganosa. As declarações de Manga foram feitas após o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) declarar inconstitucional a Lei Municipal 7.205/04, que torna obrigatória a inclusão de Bíblias nas Bibliotecas Municipais. 

Capitão Nelson

Imagem: reprodução TSE

Capitão Nelson (PL, de identidade confessional católica) foi reeleito prefeito de São Gonçalo(RJ) com 387.914 votos. Antes de se tornar prefeito, foi vereador em São Gonçalo e deputado estadual suplente. Em 2020, venceu a disputa pela prefeitura, pelo Avante, no segundo turno com 189.719 votos. 

Durante a campanha municipal de 2020, Capitão Nelson tinha como principal adversário Dimas Gadelha, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) em clara vantagem, segundo estudo divulgado à época

Na ocasião, o candidato do Avante estruturou sua campanha sobre o pânico moral de que “a esquerda é contra a família, a favor da ‘ideologia de gênero’ e da erotização de crianças nas escolas”. Segundo checagem realizada por Bereia em novembro de 2020, uma das mentiras propagadas era a de que o candidato do PT iria instalar banheiros unissex nas escolas.

Segundo turno

Cristina Graeml 

Imagem: reprodução TSE

Cristina Graeml (PMB, que se identifica como cristã não determinada) é candidata à prefeitura de Curitiba(PR) e disputa o cargo com Eduardo Pimentel (PSD), atual vice-prefeito do município, no segundo turno, no domingo, 27 de outubro. 

Graeml é jornalista e foi colunista da Gazeta do Povo, portal de notícias alinhado à extrema direita e diversas vezes checado por Bereia, onde também apresentava um programa sobre temas relacionados às Convicções da Gazeta do Povo.

Durante a pandemia da covid-19, Graeml, que se autointitula cristã e direita raiz, publicou um vídeo intitulado “O pico da pandemia no Brasil”, em que manipula números oficiais de cartórios para desvalidar números do Ministério da Saúde e a gravidade da covid-19. Bereia classificou o conteúdo do vídeo da jornalista e candidata como falso.

Em entrevista ao jornal Plural Curitiba, em 24 de junho, a candidata questionou a eficácia da vacina contra a Covid, defendeu os golpistas do 8 de janeiro, se posicionou a favor do voto impresso e disse não se considerar de extrema direita.

Vereadores

Guilherme Kilter

Imagem: reprodução TSE

Guilherme Kilter (Novo) foi eleito vereador em Curitiba (PR). Com 16.664 votos, ele será o quarto vereador mais jovem da capital paranaense e o mais novo da candidatura 2025-2028.

Apadrinhado pelo ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Novo) – que teve o mandato cassado em maio de 2023 -, Kilter se denomina cristão, de direita e a favor da família.

Com 228 mil seguidores no Instagram, o futuro vereador costuma publicar conteúdos que reproduzem pautas da direita como armamento de guardas municipais e a enganosa “ideologia de gênero”.

Ele é membro da Primeira Igreja Batista de Curitiba e contou com o apoio do tio e pastor Paschoal Piragine, que se destacou como propagador de pânico moral contra as esquerdas em processos eleitorais anteriores. Kilter já publicou conteúdos mentirosos sobre legalização do aborto e sobre a presença de uma atleta trans nas Olimpíadas. 

Pastor Dinho Souza

Imagem: reprodução TSE

Dinho Souza (PL) é pastor da Igreja Evangélica Povo da Cruz e foi eleito vereador no município de Serra (ES). Evandro de Souza Ferreira Braga teve 5.616 votos e recebeu apoio do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), do pastor Anderson Silva e do padre Kelmon.

Em 2022, no intuito de reformar um cômodo destinado às crianças, Dinho Souza promoveu a venda de rifas cujo prêmio seria uma espingarda calibre 12, polêmica que contribuiu para sua projeção na política.

Além de seu posicionamento a favor das armas, o pastor capixaba promove discurso contra a diversidade de gênero, contra o aborto – mesmo em casos de estupro – e já atacou a própria comunidade evangélica.

Sonaira Fernandes

Imagem: reprodução TSE

Sonaira Fernandes (PL, que se identifica como cristã não determinada) foi reeleita vereadora em São Paulo (SP), desta vez com 33.957 votos. Em 2020, ela havia sido eleita pelo Republicanos, mas, em 2024, filiou-se à legenda do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Desde 2014, Fernandes trabalha junto à família Bolsonaro e, durante a campanha para vereadora em 2024, a candidata ostentou nas redes sociais o apoio do ex-presidente e do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL).

Em 30 de maio de 2024, Sonaira Fernandes participou do evento Marcha para Jesus, organizado pela Igreja Renascer em Cristo, dos pastores Estevam e Sônia Hernandes. Na ocasião, a vereadora repercutiu discurso enganoso sobre perseguição religiosa no Brasil, episódio checado por Bereia à época.

Não foi a primeira vez que a vereadora compartilhou informações falsas. Durante a campanha presidencial de 2022, Fernandes disse que o então candidato Lula (PT) havia vendido a alma para vencer a eleição e compartilhou conteúdo enganoso sobre perseguição a cristãos.

Debora Palermo 

Imagem: reprodução TSE

Débora Palermo (PL) foi reeleita vereadora de Campinas(SP) com 7.690 votos. A vereadora foi eleita em 2020 como candidata do PSC e em 2022 tornou-se presidente em exercício da Câmara Municipal de Campinas, após afastamento do então presidente Zé Carlos (PSB). 

Palermo, que é membro da Igreja do Nazareno, filiou-se ao PL em 2023, depois do PSC ter sido incorporado pelo Podemos. Em 7 de junho de 2024, a vereadora publicou um vídeo em sua página no Instagram sobre uma discussão do Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara Municipal de Campinas, com a chamada “Educação em perigo” e a hashtag “ideologia de gênero não”.

A vereadora de Campinas afirmou que o PNE “é contra as escolas cristãs, é uma ideologia, uma manipulação de nossas crianças e isso não pode ocorrer”.  O discurso de Palermo também associa o termo LGBTQIAP+ a um perigo para crianças. Bereia checou e classificou como falsas as declarações de Débora Palermo (PL) no vídeo. 

Não eleitos

Quatro candidatos com identidade confessional já checados por Bereia não foram eleitos como pessoas que propagam desinformação. Todos eram candidatos a vereador(a). São eles: Alana Passos (PL-RJ, da Igreja Batista Atitude), no Rio Janeiro (11.046 votos); Waguinho Cantor (PL-RJ, da Assembleia de Deus dos Últimos Dias), no Rio de Janeiro (9.523 votos); Dentinho (PL-MG, evangélico de igreja não determinada), em Passos (830 votos); e Marisa Lobo Psicóloga Cristã (PL-PR, da Igreja Batista), em Curitiba (2.517 votos).

***

Foto de capa: TSE

Lideranças políticas e influenciadores religiosos mentem sobre sexualidade de boxeadora nas Olimpíadas

A repercussão polêmica sobre a luta de boxe feminino, categoria até 66 kg, nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1 de agosto passado, em que a argelina Imane Khelif venceu a italiana Angela Carini, depois de ganhar espaço em mídias no Brasil e no exterior, também alcançou a esfera religiosa.

Imagem: reprodução perfil jornal Hoje/Instagram

Imagem: Perfil da escritora inglesa J.K Rowling no X

Imagem: Perfil do Senador Sérgio Moro no X

Um grande número de debates em ambientes digitais religiosos pode ser observado, com acusações genéricas à atleta Khelif, de ser mulher trans, que mudou de sexo para disputar o boxe nas Olimpíadas ou mesmo de que era um homem que lutava de forma desigual contra a italiana, uma “mulher de verdade”.

Mais uma vez, políticos extremistas da direita e influenciadores evangélicos alinhados a esta tendência, exploraram este tipo de pauta, e publicaram mensagens com reforço à polêmica de a lutadora da Argélia ser supostamente um homem daquele país em luta contra uma mulher italiana.

O deputado federal evangélico Nikolas Ferreira (PL-MG), a deputada federal católica Júlia Zanata (PL-SC) e 0 influenciador, identificado como cristão, Guilherme Kilter, foram alguns dos que publicaram conteúdo com denúncias que repetiram as acusações contra a boxeadora, e alcançaram um alto número pessoas.

Em um vídeo publicado em suas mídias, o deputado mostra imagens da luta da quinta-feira, 1 de agosto, se refere à boxeadora argelina como uma pessoa trans e mostra um trecho da luta. Na gravação, ele afirma, com desprezo às declarações da própria lutadora italiana ao fim da luta, que Angela Carini desistiu do combate após encontrar um “homem biológico socando a cara dela muito mais forte”.

Imagem: Reprodução do X

O influenciador Guilherme Kilter, que faz campanha como pré-candidato a vereador de Curitiba (PR), também publicou um vídeo, com expressivo número de curtidas e compartilhamentos, com a afirmação: “Cara, sinceramente, se isso aqui for capaz de te gerar uma revolta eu não sei o que mais pode te revoltar. Pela primeira vez na história das Olimpíadas, um homem competindo com uma mulher na categoria feminina de boxe!” Na legenda, a frase “Quero que esta Olimpíada se exploda”.

Imagem: reprodução/Instagram

A publicação de Julia Zanata seguiu nos mesmos termos:

Imagem: reprodução/Instagram

Imprensa e projetos de checagem confrontam as falsidades

“Imane Khelif é mulher, nasceu mulher e viveu como mulher”, “Não é transexual e nunca fez tratamento”, essas são as informações que estão sendo publicadas por toda a grande imprensa no Brasil, desde o início da polêmica em torno da luta conta a italiana. As agências de checagem Lupa, Aos Fatos e Fato ou Fake (G1), publicaram matérias com os desmentidos sobre Khelif ser um homem ou uma pessoa transgênero.

Todos os textos com as devidas apurações afirmam que Imane Khelif se identifica como mulher e é reconhecida como tal em seu país. Ela começou a competir no boxe com 19 anos, em 2018, na categoria feminina. Disputou a categoria Boxe das Olimpíadas de Tóquio, em 2020, nas quais foi derrotada, nas quartas de final, pela irlandesa Kellie Harrington. Khelif é a atual Embaixadora da Unicef pelo seu país, a Argélia.

O que as apurações indicam é que a atleta havia sido reprovada no ano passado em um teste da Associação Internacional de Boxe (IBA). O teste mede o nível de testosterona, em decorrência do desenvolvimento sexual (DSD) que faz com que parte das mulheres tenham cromossomos XY e níveis de testosterona semelhantes aos dos homens. Porém, a argelina foi autorizada pelo COI a participar das Olimpíadas.

Em nota publicada no mesmo dia da luta, iniciada com a frase “Toda pessoa tem o direito de praticar esporte sem discriminação”, o Comitê Olímpico Internacional (COI), declarou que “Imane Khelif passou por todos os exames e regulamentos desde a fase classificatória para a Olimpíada e está apta para competir nos Jogos de Paris como mulher”.

Imagem: Perfil do Comitê Olímpico Internacional no X. Texto na íntegra aqui.

O Comitê Olímpico da Argélia também rebateu as mentiras sobre a lutadora de boxe pelo país. Em nota oficial, a organização declarou que Khelif tem sofrido ataques nas redes e é alvo de transfobia, com o registro do termo “difamações baseadas em mentiras”. “O Comitê Olímpico e Desportivo da Argélia denuncia com a maior firmeza os ataques maliciosos e antiéticos dirigidos contra nossa ilustre atleta Imane Khelif por alguns meios de comunicação estrangeiros. Estas tentativas de difamação, baseadas em mentiras, são completamente injustas, especialmente num momento crucial em que ela se prepara para os jogos olímpicos, o auge da sua carreira”, diz a nota.

Sobre a atleta italiana

De forma contrária ao que disse Nikolas Ferreira e outros que publicaram em suas redes sociais, a italiana Angela Carini não deixou a competição por causa da condição de sua opositora na luta. Em entrevistas após o momento, Carini disse que desistiu da disputa porque o nariz foi atingido e estava sentindo muita dor. A boxeadora ainda pediu desculpas à adversária Imane Khelif pela forma como lidou com a derrota e por ter abandonado o ringue sem cumprimentá-la.

A argelina venceu a a húngara Anna Luca Hamori nas quartas de final do peso-meio-médio de boxe, em 3 de agosto, e já tem o bronze garantido, conforme as regras da categoria, na disputa agendada para 6 de agosto. Khelif foi ovacionada pelo público, majoritariamente argelino, na Arena Paris Norte, e deixou o ringue com lágrimas, depois dos tantos ataques sofridos.

***

Bereia classifica como falsas as publicações que circulam em ambientes digitais religiosos que afirmam que a boxeadora Imana Khelif é um homem que mudou de sexo para competir contra mulheres e proferem ataques verbais à atleta e ao Comitê Olímpico Internacional.

Bereia alerta que, apesar de toda a informação publicada pela imprensa e de todas as checagens realizadas, as postagens de influenciadores como Nikolas Ferreia, Julia Zanatta e Guilherme Kilter não foram retiradas pelos autores ou filtradas pelas plataformas com a indicação de desinformação. O senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) também manteve a publicação falsa que disseminou, apesar de ter feito um acréscimo dizendo ter conhecimento de não ter havido mudança de sexo, porém acrescentou a desinformação de que a atleta havia “falhado em critérios de elegibilidade para competir no boxe feminino perante a IBA”, o que já foi amplamente desmentido pelos Comitês Olímpicos Internacional e da Argélia.

Bereia chama a atenção para a exploração de temas referentes à sexualidade por personagens da arena política e religiosa com uso de mentiras e de pânico moral, o que já foi alvo de diversas checagens.

Referências de checagem:

Agência Lupa. https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/08/02/desinformacao-sobre-boxeadora-argelina-gera-onda-de-transfobia-nas-redes Acesso em 03 ago 2024

Aos fatos. https://www.aosfatos.org/noticias/falso-atleta-mudou-de-sexo-boxe-feminino-olimpiadas/?fbclid=IwY2xjawEacS5leHRuA2FlbQIxMAABHTZoRg2kfV6CqcZUm0yjqYkigwfYx_PKHbHy29SLP6ejMqc-687FqwH3bQ_aem_IYl8__58lH6avpoeKsgLsw. Acesso em 2 ago 2024

X. https://x.com/iocmedia/status/1819068761787244959 Acesso em 3 ago 2024

O Globo. https://oglobo.globo.com/esportes/olimpiadas/noticia/2024/08/01/coi-defende-atletas-que-nao-passaram-em-teste-de-genero-da-associacao-de-boxe-vitimas-de-decisao-arbitraria.ghtml Acesso em 3 ago 2024

G1.

https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2024/08/02/e-fake-que-boxeadora-imane-khelif-mudou-de-sexo-para-competir-nas-olimpiadas-de-paris.ghtml Acesso em 3 ago 2024

https://g1.globo.com/mundo/olimpiadas/paris-2024/noticia/2024/08/02/intersexo-x-trans-entenda-a-diferenca-de-condicao-de-boxeadora-que-compete-nas-olimpiadas.ghtml?fbclid=IwY2xjawEaRVNleHRuA2FlbQIxMAABHRq6sK9YCpRr7pACmJBPMhod7iKdiv0jACBxQXX1FWV-5ssduMVSC-ICzQ_aem_3nyDmxWIUg8eUR3kuUZSDg. Acesso em 2 ago 2024

TV Cultura. https://cultura.uol.com.br/olimpiadas/noticias/2024/08/01/1817_comite-olimpico-da-argelia-rebate-boato-de-que-lutadora-que-venceu-italiana-no-boxe-seja-trans.html Acesso em 3 ago 2024

GloboEsporte.

https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/08/02/italiana-pede-desculpas-por-nao-cumprimentar-lutadora-reprovada-pela-iba-e-liberada-pelo-coi.ghtml Acesso em 3 ago 2024

https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/08/03/paris-2024-argelina-foco-de-polemica-garante-bronze-no-boxe.ghtml Acesso em 3 ago 2024

Bereia. https://coletivobereia.com.br/panico-moral-sobre-ideologia-de-genero-aborto-erotizacao-de-criancas-e-defesa-da-familia-e-usado-para-disputa-eleitoral-com-base-em-desinformacao/ Acesso em 3 ago 2024

X. https://x.com/nikolas_dm/status/1819031732324065309?t=5jXtvTOUcY0NgFjRhV6QYw&s=07&fbclid=IwY2xjawEaZPtleHRuA2FlbQIxMAABHc0dFU7wdOQU8ZVAMt5OVs9OQsGQtQOnK_N8J8YfryWhHfFgNzMVeDXbYA_aem_JPyczqkptV9PM9GL5YrJ3g. Acesso em 2 ago 2024

***

Foto de capa: David/Pixabay


Políticos e sites religiosos desinformam sobre resolução a respeito de atuação religiosa em presídios

O site Pleno.News publicou, em 2 de maio, matéria sobre a nova resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que supostamente proibiria o evangelismo nos presídios brasileiros, alegando o veto ao proselitismo religioso, ou seja, a prática de conversão ou persuasão religiosa ou de crença. 

A matéria citada destaca que o evangelismo passou a ser proibido dentro das penitenciárias do país e declara que nenhum detento poderá ser obrigado a aderir a determinada linha religiosa como requisito para transferência, admissão ou permanência na cadeia. O texto do site descontextualiza o que afirma o documento oficial de que não se trata de uma resolução do governo Lula (PT), e sim do CNPCP.

Fonte: Reprodução/Pleno.News

Parte dos parlamentares evangélicos no Congresso Nacional reagiu negativamente ao documento e acusou o governo de perseguição religiosa e de afrontar a liberdade das igrejas. O deputado federal Helio Lopes (PL-RJ) reproduziu em seu perfil no X uma imagem remetendo à matéria de Pleno.News. Já o deputado Messias Donato (PP-ES), também no X, publicou texto classificando a Resolução como indício de perseguição religiosa.

Imagem: reprodução do Instagram

Imagem: reprodução do X (Twitter)

O influenciador Guilherme Kilter também repercutiu a resolução como proibição de evangelismo nos presídios por parte do Governo Lula. O site Gospel Prime foi outro veículo que publicou matéria com conteúdo semelhante.

Imagem: reprodução do Instagram

Imagem: reprodução/Gospel Prime

O que diz a nova Resolução

A Resolução nº. 34, de 24 de abril de 2024, citada pela matéria do Pleno.News, e postada nas mídias digitais, estabelece as diretrizes e normas para a assistência religiosa nos estabelecimentos prisionais do país, levando em conta a liberdade religiosa e a laicidade do Estado. Sem caráter de lei, tem como objetivo respeitar a diversidade de crenças e a liberdade de escolha dos detentos, e não indica nenhuma proibição direta ao evangelismo.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) é um órgão colegiado formado por juristas, acadêmicos e representantes da sociedade civil criado em 1980 e com atribuições previstas pelo artigo 64 da Lei de Execução Penal – LEP (Lei nº 7.210, 11 de julho de 1984). Embora ele esteja atrelado ao Ministério da Justiça, a atribuição de responsabilidade pela discussão e eventual publicação de resoluções pelo chefe do Poder Executivo não procede. Isso ocorre porque a composição e a definição legal do Conselho impedem a interferência do governo federal nas decisões, conforme foi determinado desde a sua implantação. 

Ainda assim, o Ministério da Justiça emitiu nota esclarecendo que a Resolução nº35 visa a garantir a laicidade do Estado e proteger os direitos dos presos, evitando abusos e manipulações. No entanto, líderes evangélicos alegam que ela dificulta o trabalho de ressocialização e recuperação dos detentos por meio da fé. 

Resolução não proíbe evangelização

A Resolução reafirma as cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 5º, inciso VI,  dispõe sobre a inviolabilidade da “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O artigo 19, inciso I, também reforça a separação do Estado e da religião. Vale lembrar ainda que a resolução estabelece que os agentes religiosos devem ser credenciados e seguir normas de conduta e segurança. 

O documento do CNPCP não proíbe a evangelização nos presídios, e afirma que  “será assegurado o direito de professar qualquer religião ou crença, bem como, o exercício da liberdade de consciência aos ateus e agnósticos e adeptos de filosofias não religiosas”. Além disso, “será garantido à pessoa privada de liberdade o direito de mudar de religião, consciência ou filosofia a qualquer tempo, sem prejuízo da sua situação de privação de liberdade”.

É importante reforçar que a Resolução  tem o objetivo de garantir todas as práticas religiosas, sem a interferência do Estado, e a autorização para entrada, em estabelecimentos penais, de materiais de cunho religioso para estudo e aperfeiçoamento. De acordo com o documento, a religião não pode ser forçada a ninguém, e nem a participação em cultos deve ser objeto de punição ou benesse. Além disso, oferece a fiéis de outras crenças a garantia do seu direito de culto. 

O presidente do CNPCP, Douglas de Melo, destacou que, ao contrário do que está sendo propagado e divulgado, a resolução não representa perseguição religiosa e reitera seu compromisso com a Constituição Federal e com diretrizes internacionais relativas ao tema. “Aliás, pelo contrário, pois ao longo dos debates realizados no processo de construção do documento, o CNPCP sempre se mostrou atento à necessidade de evidenciar a importância das garantias de liberdade de consciência e de crença e de livre exercício, em igualdade de condições, dos cultos religiosos. Nós reprovamos qualquer tipo de comportamento que coloque esse direito em risco”, declarou.  

A realidade prisional e das capelanias

Bereia ouviu Samuel Lourenço Filho, egresso do sistema prisional e que se converteu ao Cristianismo durante cumprimento de pena. Hoje formado em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele expressou sua incompreensão sobre a alegada perseguição a evangélicos nos presídios. A seu ver, “não há nada na resolução que crie margem para o uso do termo”. Também desconhece “há pelo menos uns 18 anos, alguma medida que aponte para algum traço de perseguição.”. 

Sobre o documento do Conselho, Lourenço Filho, esclareceu que se trata simplesmente de uma recomendação. “Se todas as recomendações do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) fossem seguidas à risca, o cenário prisional seria mais humano e menos populoso. Portanto, não se deve interpretar a resolução de forma tão extremada”, destacou, afirmando “foi mal interpretada em sua  tentativa de aparar arestas”.  

Lourenço Filho afirmou que “quem atua na ponta, na capelania prisional, sabe muito bem que não há perseguição de governo, gestor penitenciário, policial penal, preso ou qualquer outro. A igreja na cadeia é extremamente livre”. Ele enfatizou que não cabe na recomendação a questão do dízimo: “Como dizem por aí, ‘se tem placa, tem história’. Mas eu desconheço qualquer atividade religiosa que subtrai valores da população prisional; ao contrário, ela ajuda e ajuda muito. A igreja é extremamente importante no âmbito da assistência religiosa e material”.

Outro ponto citado foi a importância do papel da igreja no sistema prisional, como “organismo vital no apoio religioso e material”. Ele abordou as críticas sobre o uso do tempo e conversão na prisão, considerando-as desajustes. “Os presos evangélicos organizam-se rapidamente para manter seus espaços de culto e criar um ambiente próprio. É uma questão de respeito mútuo, e a separação por crenças é comum. Se os evangélicos não tivessem seu espaço, a dinâmica prisional, que é complexa, não reconheceria o preso convertido como ‘pastor’. A separação contribui para a conversão, a mudança e a manutenção de uma rotina pacífica”, explicou ao Bereia

Lourenço Filho reconheceu a prática comum do dízimo entre os próprios detentos, usada para manter e melhorar a vida na prisão.  “Já participamos de coletas de dinheiro na cela, em forma de dízimos e ofertas. Isso é parte da nossa dinâmica para conservação e manutenção do ambiente prisional,” explicou. Ele também destaca o uso compartilhado de espaços como capelas ecumênicas. “As igrejas, especialmente as evangélicas, que realizam cultos diários, contribuem com materiais para a construção e manutenção desses locais, que são frequentemente cuidados pelos próprios presos”, explica Lourenço Filho.

Para concluir a entrevista ao Bereia, Lourenço Filho ressalta que a principal questão não é a imposição de crenças, mas a falta de políticas inclusivas para outras atividades religiosas. “Se violões são permitidos nos cultos, por que não atabaques em outras cerimônias? Isso reflete uma falha da administração, não do governo”, argumenta. Para ele, a igreja continua sendo a principal provedora de assistência religiosa nos presídios, um papel frequentemente mal interpretado, visto que a prisão é um espaço público. Ele critica a eficácia da recente recomendação, considerando-a parte de uma controvérsia desnecessária contra o governo. “Quem realmente visita as prisões não se preocupa com essas recomendações e sim com o bem-estar dos detentos”.

Liberdade de culto para todas as religiões  

Bereia entrevistou também Erivelto Melchiades da Silva, pesquisador da área de Direitos e Sistema de Justiça, egresso do sistema prisional e defensor dos direitos religiosos. Segundo ele, a liberdade de culto é restrita em sua maioria aos evangélicos, e o que acompanha com sua visão e experiência “é uma ‘certa’ perseguição a outras denominações religiosas, principalmente as de religiões de matriz africana e, se esta resolução for cumprida a risca, favorece a liberdade de culto e crença de quem está privado do seu direito de ir e vir”.

Silva recorda que, durante sua estadia no sistema carcerário, o “proselitismo religioso” em realidade operava de forma agressiva e opressiva contra as outras religiões.  As de matriz africana eram as mais combatidas, “demonizando, desrespeitando e oprimindo os adeptos, através dos cultos e trabalhos evangelísticos realizados nas galerias das unidades prisionais, além da não permissão a utilização do templo religioso por parte de outras denominações a não ser as evangélicas”, conclui o pesquisador Erivelto Melchiades da Silva ao Bereia.

Lula e perseguição aos cristãos: antiga estratégia de pânico moral 

Desde a redemocratização do país em 1989, circulam especulações de que o PT fecharia igrejas, principalmente evangélicas, ao chegar ao Executivo. Esses rumores acompanharam as candidaturas de Luiz Inácio Lula da Silva (1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2018 e 2022), Dilma Rousseff (2010 e 2014) e  Fernando Haddad (2018). Mesmo com Lula (PT) e Dilma (PT) eleitos e reeleitos, esses boatos nunca cessaram, sendo  exponencialmente escalonados com o uso político-partidário das mídias digitais.  

Na última eleição,  circularam de vídeos e  publicações fora de contexto que insinuavam perseguição aos evangélicos, destruição das instituições da família tradicional heteronormativa e o fechamento de templos. Isso foi  amplamente utilizado para alimentar e monetizar as páginas de opositores, líderes religiosos e empresários  nas mídias digitais.

Veículos de imprensa e portais de  notícias se tornaram vetores de respaldo e apuração, possibilitando que tais tipos de manipulações dos fatos alcançassem diversos públicos. O caráter apelativo e distorcido da realidade, incitando ódio, rancor e medo,  tem sido bem explorado por setores religiosos, especialmente os ligados à extrema-direita brasileira.

***

Bereia conclui que a matéria publicada pelo Pleno.News sobre resolução Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) proibindo a evangelização em presídios é enganosa. Ao contrário do que é afirmado pelo site e por políticos evangélicos e influenciadores, a decisão do Conselho não veta a evangelização, apenas reafirma a liberdade religiosa e a diversidade de cultos aos detentos do sistema penitenciário,  já garantidas pela Constituição de 1988. Também é incorreto atribuir a Resolução como ato da Presidência da República. O título distorce o conteúdo da matéria e apresenta fatos fora do contexto com o objetivo de causar comoção, se tornar mais atrativo para ser amplamente compartilhado,  e confundir o leitor. 

Referências de checagem:

BRASIL. Resolução no 34, de 24 de abril de 2024. Estabelece diretrizes para a assistência religiosa no sistema prisional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2024. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-34-de-24-de-abril-de-2024-556521006. Acesso em: 6 maio 2024.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 7 maio 2024.

BRASIL DE FATO. Lula vai fechar igrejas? Conheça as principais mentiras contra o candidato petista. Brasil de Fato, 1º de outubro de 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/10/01/lula-vai-fechar-igrejas-conheca-as-principais-mentiras-contra-o-candidato-petista. Acesso em: 6 maio 2024.

CPAD NEWS. Resolução do governo proíbe conversão religiosa em presídios. CPAD News, [s. l.], 2024. Disponível em: https://www.cpadnews.com.br/resolucao-do-governo-proibe-conversao-religiosa-em-presidios/. Acesso em: 6 maio 2024.

GOV.BR. Resolução de Conselho de política penitenciária garante liberdade religiosa em presídios. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/resolucao-de-conselho-de-politica-penitenciaria-garante-liberdade-religiosa-em-presidios. Acesso em: 7 maio 2024.

G1. É #FAKE mensagem que diz que Lula declarou que irá fechar igrejas em 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/eleicoes/noticia/2022/10/07/e-fake-mensagem-que-diz-que-lula-declarou-que-ira-fechar-igrejas-em-2023.ghtml. Acesso em: 6 maio 2024.

O GLOBO. Bancada evangélica se revolta com resolução do governo Lula que proíbe proselitismo religioso em presídios. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/05/04/bancada-evangelica-se-revolta-com-resolucao-do-governo-lula-que-proibe-proselitismo-religioso-em-presidios.ghtml. Acesso em: 10 maio 2024.

POLITIZE. Liberdade religiosa: o que é e como funciona no Brasil. Politize, [s.d.]. Disponível em: https://www.politize.com.br/artigo-quinto/liberdade-religiosa/#:~:text=O%20artigo%205%C2%BA%2C%20em%20seu,culto%20e%20a%20suas%20liturgias. Acesso em: 7 maio 2024.

VEJA. Governo cria regras para liberdade de culto e apoio espiritual em presídio. Veja, [s. l.], 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/governo-cria-regras-para-liberdade-de-culto-e-apoio-espiritual-em-presidio. Acesso em: 6 maio 2024.

***

Foto de capa: Ron Loach/Pexels