Acusação de antissemitismo é instrumentalizada para blindar o Estado de Israel de críticas

A campanha militar assimétrica travada pelo Estado de Israel contra os grupos políticos armados Hamas e o Hezbollah já levou à morte de mais de 43 mil pessoas, ao longo de um ano. O governo do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu tem sido acusado, por países, organizações e distintos fóruns internacionais, de promover, de forma deliberada, uma política de morte (necropolítica) e genocídio (ação para eliminação de determinada população). A indignação contra o uso da força perante grandes contingentes de civis já levou, inclusive, a acusações, lideradas pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia (Holanda), de que Israel promove o genocídio da população palestina.

Mesmo diante de todas estas manifestações críticas apoiadas, inclusive, por cidadãos israelenses, demonstradas nas ruas do país, surge, no entanto, uma reação contrária. A acusação de que tais oposições incorrem em uma expressão de antissemitismo, ódio racial e de perseguição ao povo judeu.

Reprodução: UN NEWS (faixa de Gaza, 2024)

Conflito de décadas 

O conflito entre Israel e a Palestina remonta à década de 1940, quando, na esteira do holocausto, a defesa da criação de um Estado nacional para o povo judeu ganhou força e resultou em uma migração em massa para a região onde estão Israel e Palestina. Em território partilhado com subvenção da Organização das Nações Unidas (ONU), couberam terras a árabes (Palestina) e judeus (Israel).

Logo em seguida à criação do Estado de Israel, em 1948, a Primeira Guerra Árabe-Israelense opôs o novo país às forças de Egito, Síria, Jordânia, Iraque e Líbano. Trata-se de uma primeira demonstração do conflito que se estende até os dias de hoje, motivado pela não aceitação da convivência pacífica entre os diferentes povos em uma mesma região. Já nos anos iniciais do conflito, novas divisões territoriais, promovidas por ocupações israelenses, levaram ao deslocamento forçado de milhares de palestinos – episódio conhecido como Nakba (“catástrofe”) pelos árabes.

Conflitos como a Guerra dos Seis Dias (1967) e a Guerra do Yom Kippur (1973) foram marcos da relação tensa entre Israel e os povos árabes que, na Palestina, vêm sendo confinados a territórios cada vez menores, graças ao desrespeito aos tratados e seguidas invasões territoriais promovidos por Israel desde 1967. 

Em reação ao domínio israelense, a Primeira Intifada (1987-1993) e a Segunda Intifada (2000-2005) foram levantes palestinos contra as invasões. Em ambos os casos, as demandas populares levaram a conflitos violentos entre as duas partes, situação que ocorre até os dias atuais.

A comparação de mapas históricos permite ver como Israel tem avançado sobre territórios destinados à Palestina em 1947. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem alertado, ainda hoje, que os assentamentos israelenses sobre os territórios palestinos continuam a avançar.

Mapas mostram avanço da ocupação do Estado de Israel sobre o território destinado à Palestina em resolução da ONU em 1947 – Reprodução: UCCPIN

O mais recente capítulo do conflito teve início em 7 de outubro de 2023, quando o grupo armado palestino Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) entrou no território israelense e matou cerca de 1,2 mil pessoas, fez reféns e divulgou imagens de execuções.

Em resposta ao ataque que chocou o mundo, Israel, liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, lançou uma ofensiva bélica contra o Hamas e o território palestino. Apesar do direito de retaliação, as ações militares levadas à cabo por Israel vêm sendo criticadas por serem desproporcionais ao ataque sofrido e atingirem de forma dramática civis inocentes.

Acusações de antissemitismo

As críticas à resposta militar israelense, porém, têm se chocado com acusações de antissemitismo, por parcela de judeus e seus apoiadores, que nem sempre têm o respaldo dos fatos. Nas redes, vozes contrárias às mortes promovidas pelo Estado de Israel são acusadas de estarem baseadas em ódio aos judeus e grupos à esquerda já foram acusados, de forma genérica, de antissemitas. Tais discursos desconsideram que até mesmo judeus manifestam-se nas ruas contra as ações israelenses. Houve um número deles presos, nos Estados Unidos, sob acusação de antissemitismo.

No Brasil, o jornalista Breno Altman, fundador do site Opera Mundi, especializado na cobertura de temas internacionais, foi alvo de ataques e ameaças de grupos pró-Israel ainda em outubro de 2023. Altman, que é judeu, publica conteúdos críticos à postura de Israel e ao sionismo (movimento político-religioso, de várias correntes, que defende o direito à autodeterminação da totalidade do povo judeu sobre o território considerado judaico).

Em outubro de 2023, pouco tempo após os ataques do Hamas a Israel, o Opera Mundi revelou o recebimento de mensagens no WhatsApp que sugeriam “arrancar os dentes da boca desse fdp e cortar os dedos fora para parar de escrever e falar merda”. De acordo com o site, algumas publicações nas redes digitais comparavam Altman a um “kapo” – os judeus que atuavam como agentes nazistas em campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial.

Os ataques também atingiram outro judeu crítico da política israelense, o doutor em História Social, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Michel Gherman que, ao contrário de Altman, é um sionista da corrente que defende o direito a um Estado Palestino. Em palestra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em outubro de 2023, o professor, que também é pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém, foi acusado de praticá-lo.

Em vídeo publicado em seu canal no YouTube, Gherman avalia: “A capacidade que essas pessoas têm de não escutar o que eu digo e produzir, sobre mim, acusações mentirosas é cruel. Eu estudo antissemitismo, sou vítima de antissemitismo. E fui chamado, por essas pessoas, de um judeu antissemita. Isso é cruel.”

As acusações de ódio ao povo judeu também recaíram sobre o presidente da República Luis Inácio Lula da Silva (PT). Em evento público, em 23 de fevereiro de 2024, Lula criticou as ações militares levadas a cabo por ordens de Netanyahu e afirmou que “o que o governo de Israel está fazendo não é guerra, é genocídio, porque está matando mulheres e crianças (…) se isso não é genocídio, eu não sei o que é genocídio”.

A crítica, feita à condução das práticas militares, foi interpretada por apoiadores de Israel como “antissemitismo explícito”. No X/Twitter, o senador Sérgio Moro (União-PR) publicou: “Nenhuma palavra sobre os reféns de Israel, nem sobre a invasão da Ucrânia, nem sobre a ditadura venezuelana. Antissemitismo explícito. Quem quiser que acredite no “democrata”.

Na sequência dos ataques de 7 de outubro de 2023, porém, Lula havia dito, por meio de seu perfil no X/Twitter, que ficou “chocado com os ataques terroristas realizados hoje contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas”.

Criminalização de críticas como estratégia

Conforme apontado por Bereia, em matéria publicada em maio de 2024, as alegações de antissemitismo são uma estratégia discursiva de grupos conservadores teologica e politicamente e de apoiadores do governo de Israel para impedir críticas. A checagem classificou como enganosa publicações que declararam protestos estudantis contra o massacre de palestinos, nos Estados Unidos, realizados meses atrás,  como antissemitas.

Como exemplo disto, a doutora em sociologia e professora da Universidade de Brasília (UnB) Berenice Bento cita a ação judicial da Confederação Israelita do Brasil (Conib) contra Breno Altman. “É um dos muitos exemplos dessa grave ofensiva. Israel passou a tomar para si a totalidade da representação judaica e, ao fazê-lo, busca igualar todas as críticas às suas políticas coloniais e genocidas em expressão do antissemitismo”.

Antissemitismo é a intolerância contra judeus, por características étnicas e religiosas que os constituem como povo. É fato que ataques antissemitas foram registrados na Europa e fora do continente após as ações bélicas de Israel na Faixa de Gaza, em 7 de outubro de 2023. Países como França, Áustria e Reino Unido anunciaram aumento considerável de ataques contra judeus nos meses seguintes ao conflito. 

No entanto, críticas e manifestações contra decisões políticas do Estado de Israel e ações bélicas abusivas praticadas por ele são direitos civis garantidos, como liberdade de expressão. Entre outras situações, o verbete do Dicionário de Política cita explicitamente a “oposição à política israelense ou ao movimento sionista” como uma das situações que não podem ser consideradas como antissemitas.

Em entrevista ao Bereia, o professor de Teologia e doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Wallace Góis reconhece que o próprio governo israelense em defesa de suas ações adota o discurso de “antissemitismo”, pelo mesmo motivo que a extrema direta anuncia uma “ameaça comunista”, como uma propagação de pânico.  

Ações de ONG sionista conservadora e campanhas diversas pro-Estado de Israel

Grupos sionistas e organizações pró-Israel atuam intensivamente nas mídias sociais, quer para impedir críticas, quer para promover uma boa imagem do governo israelense. Dentre essas organizações, uma das mais ativas é a organização internacional de promoção do Estado de Israel “Stand with Us”. A ONG se define como “uma instituição educacional sobre Israel sem fins lucrativos” que declara “ensinar pessoas de todas as idades sobre Israel e a combater o extremismo e o antissemitismo”.

Com sede em Los Angeles, a organização tem dezoito escritórios nos Estados Unidos, além de bases no Canadá, em Israel, no Reino Unido e, desde 2018, no Brasil. A instituição conta também com o Centro de Educação, emblemático, no coração de Jerusalém e hospeda programas na América Latina, África do Sul, China, Europa e Austrália.

As mídias sociais são espaço privilegiado para conteúdo promotor de apoio às políticas do Estado de Israel como sinônimos de simpatia com o povo judeu. Isto é reforçado pela apropriação de símbolos religiosos – uma tendência judaizante de parte dos evangélicos (o fenômeno denominado em pesquisas acadêmicas como “Sionismo Cristão”).

Há grupos evangélicos no Tik&Tok, no Telegram e no Facebook, programas de viagens para Israel , notícias de campanhas de oração, mobilizações diversas, combate ao que é classificado como terrorismo islâmico com base religiosa e campanhas comunicacionais. Na pesquisa do Bereia foram identificadas 854 hashtags, como, por exemplo, “#oremporisrael”, e o incentivo ao uso da bandeira israelense nos perfis das mídias sociais.

Bereia coletou, ao longo de um ano, 2.789 postagens diferentes, similares aos links já relatados a favor das ações bélicas contra a Palestina e pró-Israel. Nesta busca também foram encontrados conteúdos pró-Estado de Israel em mídias alinhadas à extrema direita, como a Gazeta do Povo e o portal Brasil Paralelo, o que referenda a tese de suporte e articulação de grupos ultraconservadores com o governo Netanyahu.

Em todos esses casos, há um apagamento da situação desumanizada em que se encontra a população palestina, especialmente a cristã, que é invisibilizada, para se fazer crer que palestinos são islâmicos violentos.

Uso do imaginário judaico pela direita fundamentalista brasileira

A negação das críticas à política de morte do Estado de Israel, com atribuição de “antissemitismo”, pode ser explicada por dois elementos: desconhecimento do processo de reconstituição do Estado de Israel, em 1948, e dos conflitos políticos em torno dele, e o fator ideológico-político do alinhamento ao sionismo conservador. 

O movimento sionista, denominado por inspiração do Monte Sião, em Jerusalém – a representatividade bíblica da terra prometida ao povo hebreu – surgiu ainda no fim do século 19. Uma das correntes ideológicas do movimento defendeu a criação de um Estado judaico na antiga Terra de Israel.

O Estado de Israel foi criado em 1948, por intermédio da Organização das Nações Unidas, após a aprovação da Resolução 181/1947. O documento sugeriu a divisão da Palestina em um Estado Árabe e um Estado Judeu. Os sionistas garantiram 55% do território palestino para 600 mil imigrantes judeus, enquanto os outros 45% foram destinados a 1,2 milhões de palestinos, por uma campanha que envolveu compra de terras e imigração ilegal fortalecida pela ideia de reparação da culpa pelo Holocausto.

O Reino Unido foi um facilitador na imigração judaica para a Palestina, por ter exercido controle sobre a região depois da Primeira Guerra Mundial. A enciclopédia Britannica indica que entre os anos finais do século 19 e os iniciais do século 20, a região vivia um “renascimento árabe geral”. Em 1914, a população da Palestina era de 690 mil habitantes, destes 535 mil eram muçulmanos, 70 mil cristãos, a maioria árabes e 85 mil judeus.

Quanto ao alinhamento ideológico, o professor Michel Gherman aponta, no artigo O Judeu imaginário no Bolsonarismo: Um Caso de Conversão e Desconversão e seus oponentes, publicado na plataforma Religião e Poder, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), a importância das articulações de grupos conservadores com setores religiosos para o fortalecimento de pautas da extrema direita brasileira, e afirma: “A recuperação do vínculo com os judeus brasileiros é, na perspectiva dessa direita, um dos elementos determinadores de uma nova brasilidade, religiosa e conservadora; judaica e cristã”.

No texto, o historiador também apresenta o conceito de Judeu Imaginário. Segundo ele, seria a visão de Israel como um país branco, armado, capitalista e cristão. “A barreira necessária contra a invasão da esquerda, dos comunistas, da ‘ditadura gay’ ”, pontua Gherman.

Imagem: reprodução/X

O cientista social, mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Matheus Alexandre, em artigo para o jornal Le Monde Diplomatique Brasil, ressalta que “o Estado de Israel imaginado por essa direita evangélica é uma reconstrução imaginária do antigo Reino de Judá e, portanto, incongruente com o que, de fato, é Israel hoje”.

Alexandre destaca ainda que, especificamente após a liderança de Benjamin Netanyahu, a direita conservadora, principalmente a cristã com raízes pentecostais, se tornou apoiadora do Estado de Israel.

Em seu texto, o cientista social critica, sobretudo, a simplificação de temas complexos e polarizados, como a guerra entre Israel e o Hamas – Movimento de Resistência Islâmica -, no ambiente virtual, sem que haja espaço para a compreensão de nuances e diferentes posições que sejam capazes de considerar as vidas humanas em ambos os lados.

Política militar do governo de Israel

No início da resposta aos ataques de 7 de outubro, um dos principais objetivos de Netanyahu era a morte de líderes do Hamas. Após a execução do mentor dos ataques, no entanto, o primeiro-ministro reforçou que iria “continuar com toda a força” os ataques contra o grupo que é considerado terrorista por Israel,  União Europeia e mais três paises.

Desde outubro do ano passado, Israel matou aproximadamente 43,6 mil pessoas na região palestina da Faixa de Gaza. De acordo com um relatório produzido pelo Escritório de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), quase 70% das vítimas são mulheres e crianças, o que indica um desrespeito sistemático aos princípios do Direito Humanitário Internacional. O relatório aponta, ainda, que 80% das mortes ocorreram em edifícios residenciais, hospitais e habitações semelhantes.

Mesmo em situações de guerra declarada, em que a violência é parte da realidade local, há regras a serem seguidas, para a proteção de civis. Porém, as ações militares perpetradas pelo Estado de Israel têm explicitado o desrespeito a tais regras.

Sem ter alcançado o resgate de todos reféns israelenses, a política de guerra contra a Palestina implementada por Netanyahu passou a ser, cada vez mais, parte de um cálculo que também tem como objetivo determinar o próprio futuro político e jurídico do primeiro-ministro.

Exemplo disso é a demissão, no último 5 de novembro, do ministro da Defesa Yoav Gallant, que passou a ser alvo de desconfiança por parte do chanceler israelense. Conforme informou a rede Al Jazeera, Benjamin Netanyahu, anunciou a decisão acompanhada da declaração de que desentendimentos entre o primeiro-ministro e o agora ex-ministro da Defesa foram conhecidos pelos inimigos e interferiram na gestão da ação bélica.

A notícia também traz à luz as divergências entre os objetivos de Netanyahu, de eliminar o grupo Hamas, e Gallant. No mesmo dia, o ex-ministro da Defesa declarou, em seu perfil no X, que a sua prioridade foi “a segurança do Estado de Israel”. Gallant já havia criticado a condução das ações militares e outros posicionamentos do primeiro-ministro israelense.

Necropolítica do Estado de Israel

A necropolítica pode ser entendida como o “uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar quem pode permanecer vivo ou deve morrer”. A definição é da Academia Brasileira de Letras (ABL), baseada nas formulações do intelectual camaronês Achille Mbembe. A ABL ressalta que esta determinação de vida ou morte pelo Estado pode ser feita por ação, ou omissão.

No caso em questão, as ações militares que levaram à quase completa destruição da Faixa da Gaza – antes local de residência de cerca de 2,2 milhões de pessoas – podem ser creditadas à ação do Estado de Israel. Mesmo diante de seguidos apelos da comunidade internacional por tréguas na matança de civis implementada em nome da destruição do Hamas, as decisões do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu apontaram, ao longo de mais de um ano, sempre na direção de mais violência.

O próprio Mbembe, no ensaio “Necropolítica”, em que explica as manifestações desta forma de exercer o poder, usa o exemplo da relação Israel-Palestina para explicitar o fenômeno. “A forma mais bem sucedida de necropoder é a ocupação colonial contemporânea da Palestina”, afirma. Em outro trecho, o autor diz que “a ocupação colonial contemporânea [da Palestina] é uma concatenação de vários poderes: disciplinar, biopolítico e necropolítico. A combinação dos três possibilita ao poder colonial dominação absoluta sobre os habitantes do território ocupado”.

No entanto, embora a destruição da Faixa de Gaza – que teve mais de 128 mil edifícios destruídos, entre residências  escolas, universidades e hospitais – e a morte de inocentes sejam noticiadas rotineiramente pela imprensa internacional, o olhar crítico sobre a postura de Israel continua a ser deliberadamente confundido com antissemitismo.

Ataques a templos religiosos também fazem vítimas cristãs 

No início da ação bélica de Israel, em outubro de 2023, 18 pessoas de uma comunidade cristã, abrigadas em um edifício da Igreja Ortodoxa Grega de São Porfírio, no norte da Faixa de Gaza, morreram após um ataque aéreo israelense. Durante o bombardeio de Gaza, hospitais evangélicos e escolas cristãs também foram atingidas.

Imagem: Igreja cristã ortodoxa de Gaza, atingida pelos bombardeios israelitas

Organizações cristãs internacionais como o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e o Vaticano têm se pronunciado contra o estado israelense. Além de denunciar publicamente, o CMI  produziu uma declaração conjunta (de protestantes, católicos e ortodoxos) condenando a escalada de violência por parte de Israel no Oriente Médio, atingindo igrejas, escolas e hospitais religiosos, bem como civis indiscriminadamente. O Vaticano também denunciou a destruição de santuários, escolas e unidades de saúde

No Brasil, 27 igrejas, organizações cristãs e  271 assinaturas lideranças de diferentes igrejas cristãs também se pronunciaram em condenação à ação militar israelense. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), também “rompeu o silêncio” denunciando a “guerra, que já ceifou a vida de 17 mil crianças, além de médicos, profissionais da ONU, estudantes e mulheres”.

Após um ano do início do atual conflito, os ataques bélicos de Israel se estenderam a um país vizinho, o Líbano. Segundo a Cruz Vermelha, um bombardeio matou 21 pessoas em uma vila de maioria cristã no norte do Líbano, em outubro desse ano, o setor cristão de Beirute também foi bombardeado. A Cruz Vermelha também enviou reforços para a equipe libanesa e emitiu comunicados sobre o Direito Humanitário Internacional, que vem sendo desrespeitado. Além da crise recente, no Líbano, desde maio de 2024, as organizações internacionais vêm denunciando as violações de direitos humanos ocorridas na faixa de Gaza

Em 21 de novembro de 2024, após aceitar denúncias de crimes de guerra, o Tribunal Penal Internacional (TPI),  de Haia (Holanda) emitiu mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o seu antigo ministro da Defesa, Yoav Gallant. Também foram condenados, no mesmo tribunal, os comandantes do Hamas – Mohamed Deif, Ismail Haniyeh e Yahya Sinwar. O TPI decidiu que “cada um tem responsabilidade criminal como superiores civis pelo crime de guerra de dirigir intencionalmente um ataque contra uma população civil”. O estado israelense não reconhece nem a sentença, nem a jurisdição do tribunal. 

Benjamin Netanyahu se pronunciou e argumentou que a decisão do TPI é antissemita. O chanceler israelense comparou a condenação ao caso emblemático do judeu e capitão do exército francês Alfred Dreyfus, vítima de uma falsa acusação e um julgamento injusto em 1894. Para corroborar sua versão, Netanyahu responsabiliza “um juiz francês” ao correlacionar à história do século 19. Em sua defesa, o primeiro-ministro diz fazer de tudo para evitar mortes de civis e defende uma “guerra justa” contra o Hamas. A realidade pelas telas de TV, computadores e smartphones mostra outra postura.

***

Bereia alerta leitores e leitoras para o engano de se classificar como “antissemitismo” manifestações críticas ao massacre da população palestina imposto pela ação bélica de Israel no Oriente Médio.

É preciso repudiar sempre preconceito, discriminação e ódio contra judeus, a cultura e a religião judaicas, o que, de fato, consiste em antissemitismo. Porém, é preciso garantir o direito à crítica respeitosa, justa e construtiva a qualquer injustiça cometida da parte de qualquer pessoa, grupo, autoridade, governo, ancorada em dados da realidade que a estimulam. 

Referências:

TikTok.

https://www.tiktok.com/@historiascretasdabiblia/video/7288348707668446470?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7438967406414562871 Acesso em: 25 nov 2024.

https://www.tiktok.com/@js_jesus7/video/7289065431971974406?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7438967406414562871 Acesso em: 25 nov 2024.

https://www.tiktok.com/@tododiacomdeus/video/7294756466664262918?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7438967406414562871 Acesso em: 25 nov 2024.

https://www.tiktok.com/@israelemportuguess/video/7283480925223144705?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7438967406414562871 Acesso em: 25 nov 2024.

https://www.tiktok.com/@_lugarsecreto/video/7287290314434284805?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7438967406414562871 Acesso em: 25 nov 2024.

https://www.tiktok.com/@ildineicostaoficial/video/7419800094263774469?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7438967406414562871 Acesso em: 25 nov 2024.

Instituto Brasileiro de Direito e Religião. https://www.ibdr.org.br/publicacoes/2023/10/8/nota-de-repdio-aos-ataques-terroristas-do-hamas-ibdr-e-unigrejas Acesso em: 25 nov 2024.

Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/guilherme-de-carvalho/preconceito-esquerda-evangelicos-israel Acesso em: 25 nov 2024.

Coalizão pelo Evangelho. https://coalizaopeloevangelho.org/article/chamado-a-oracao-por-israel-e-pela-paz-no-oriente-medio/ Acesso em: 25 nov 2024.

Religião e Poder. https://religiaoepoder.org.br/artigo/sionismo-cristao/ Acesso em: 25 nov 2024.

BBC.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx29xd4er22o Acesso em: 25 nov 2024.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl25jjepywo Acesso em: 25 nov 2024.

United Nations. https://news.un.org/pt/story/2024/09/1837816 Acesso em: 25 nov 2024.

Enciclopédia do Holocausto. https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/introduction-to-the-holocaust Acesso em: 25 nov 2024.

Economic Cooperation Fundation. https://ecf.org.il/media_items/498

X. https://twitter.com/michel_gherman/status/1860696385311392126?t=lmgEHaCnTqHhCstGn2LWKg&s=19 Acesso em: 25 nov 2024.

USP. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2938561/mod_resource/content/1/BOBBIO. Dicion%C3%A1rio de pol%C3%ADtica..pdf Acesso em: 25 nov 2024.

Foto de capa: Free Malasya Today

Solidariedade: num israelense bate um coração palestino

Em meio a uma guerra profundamente desproporcional entre Israel e o Hamas, com atos de terrorismo em Israel por um grupo do Hamas em 7 de outubro e consequentemente uma retaliação por parte do governo de Israel, chefiada por Benjamin Netanyahu, tão violenta que  se chegou a denunciar como um genocídio. São 3345 crianças mortas e 2060 mulheres, até a presente data (31/10), mais de 8 mil civis mortos e milhares de feridos. Depois de tapetes de bombardeios que arrasaram os principais centros e centenas moradias de palestinos, iniciou-se uma perigosa invasão israelense da Faixa de Gaza. Como é notório em tais casos, ocorre um número incalculável de vítimas de ambos os lados. Há os que se desesperam em sua fé num Deus justo e bom (“Senhor, onde estás?Por que permites tanta destruição?”) e na própria humanidade, agora negada inequivocamente.

Mesmo assim continuamos a crer que pode haver surpreendente humanidade entre palestinos e judeus. Vejamos dois testemunhos, um de um palestino e outro de um israelense. O primeiro foi relatado pelo jornalista espanhol Ferran Sale no El Pais no dia 7 de junho de 2001 e o segundo testemunhado por mim mesmo.

Eis o primeiro, do palestino: Mazen Julani era um farmacêutico palestino, de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. Certo dia quando estava tomando café com amigos num bar foi vítima  de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era vingança contra o grupo palestino do Hamas que, quarenta e cinco minutos antes, em 5 de junho de 2000, havia matado numa discoteca de Tel Aviv inúmeras pessoas mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto.

O clã dos Julani decidiu aí mesmo nos corredores do hospital de entregar todos os órgãos do filho morto, o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritatamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Com tanto que ajudem a salvar vidas. Mas achamos os órgãos bem empregados com nossos vizinhos israelenses.  Com efeito, no isralense Yigal Cohen late agora um coração palestino.

A mulher de Mazen Julani tinha dificuldades em explicar à filha de quatro anos  a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora  viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente. Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu meus filhos vamos visitar a Yigal Cohen na parte israelense de Jerusalém.                                                                                                                                        

Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós escutar o coração daquele que tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso é carregado de significação simbólica.  No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, como atualmente, surge uma flor de esperança e de paz. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana alimenta atitudes de perdão, de reconciliação e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que supera os limites de religião, de raça e de ideologia política. São tais virtudes que nos fazem crer numa possível cultura da paz.

Na imaginação de um dos mais perspicazes intérpretes da cultura brasileira, Gilberto Freyre, em nosso ensaio civilizatório (Casa Grande e Senzala), não obstante as muitas contradições, consistiu em ter criado um povo capaz de conviver com as positividades de cada cultura e com uma enorme potencialidade de lidar com conflitos.

Eis o segundo, de um israelense, assistido por mim pessoalmente em Estocolmo na Suécia. Por ocasião da concessão do título The Rigth Livelihood Award, considerado  o Nobel Alternativo da Paz nos começos de dezembro de 2001 quando entre outros, eu mesmo fui contemplado. Mas um dos galardoados impressionou a todos. Foi o testemunho de um alto oficial israelense, encarregado da repressão aos palestinos. Num enfrentamento foi ferido. Um palestinense o socorreu, prontamente em seu jipe, levando-o para o hospital palestino. Acompanhou-o até ficar são.

De volta a Israel este oficial criou uma ONG de diálogo entre israelenses e palestinos. Tal iniciativa foi considerada como alta traição, levado ao tribunal militar, pois se tratava de estabelecer um diálogo com o inimigo. Mas acabou sendo absolvido e  continuou com seu diálogo e foi, por fim, contemplado com o prêmio por suas persistência na busca da paz entre judeus e palestinos.

Aqui se mostra, uma vez mais, a capacidade humana de socorrer o um ferido que o reprimia, como um bom samaritano, na parábola de Jesus. Reconheceu nele  um ser humano a ser prontamente acudido.

Já dissemos repetidas vezes em nossas intervenções que o amor e a solidariedade pertencem à essência do humano e estão inscritas até em nosso DNA. Por ser assim, não nos é concedido desesperar face à crueldade e à barbárie que estamos assistindo nas guerras atuais. Elas também são possibilidade do negativo de nossa condition humaine. Mas não podemos deixar que prevaleçam, caso contrário nos devoraremos uns aos  outros. Estes dois exemplos são expressão de nossa humanidade num momento dos mais sombrios de nossa história atual. Eles nos atualizam o esperançar, quer dizer, a invenção das condições reais que garantam o amor e a solidariedade, presentes em cada um de nós. São elas que nos salvarão.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Libertinus/Creative Commons

A estratégia de desumanização

Ninguém pode negar o fato de já ter se deparado com ofensas verbais em discussões, nas quais um dos interlocutores tenta humilhar seu opositor com palavras que se tornaram verdadeiros adjetivos de desqualificação. São palavras e expressões que ficaram famosas entre nós, especialmente porque os debates políticos e religiosos estão fazendo uso desse costume: a estratégia de desumanização.

Por meio dessa estratégia, busca-se transformar pessoas antagônicas – nem quero aqui, ainda, tratar por “inimigos” – em desumanas. Quando alguém já perde as características de ser humano, não merece, portanto, ser tratado de forma humana. Perde as prerrogativas dos direitos humanos. A consequência direta disso é que se pode agredir, ofender e praticar quaisquer atos de violência contra essa pessoa (ou ex-pessoa). Afinal, ela merece ser vilipendiada, na condição de “não humana” e ameaça aos que “são humanos”.

Tática de guerra

Ocorre que essa estratégia foi engendrada e é utilizada em contexto de guerra. Uma pessoa possuindo uma constituição psicológica normal e que participa de uma batalha na qual é preciso agredir outro corpo humano a ponto de ferir, mutilar e até matar, não sai incólume desse contexto.

Muitos são os relatos de soldados que participaram da guerra e carregam marcas psicológicas profundas das lembranças de seus pares mortos, como também por terem sido obrigados a matar seus “inimigos” das formas mais inimagináveis possíveis.

A estratégia de desumanização tende a amenizar esse sentimento e esse trauma. Quando o soldado internaliza que matou alguém que merecia, por ameaçar a vida de pessoas dignas, sua violência se torna não somente suavizada, mas necessária e heroica.

Com o uso dessa estratégia em contextos políticos e religiosos atuais, temos visto uma tática de guerra sendo utilizada em uma sociedade que não encontra paralelo com um combate por ameaça externa. Some-se a isso a mais atual reflexão sobre a guerra, que nos aponta que abarcamos uma inconsequente ação de exterminar iguais: seres humanos que têm suas famílias, seu trabalho, seus desejos, sua fé e suas necessidades.

Palavras que matam

Vocábulos que tentam desqualificar as pessoas antes de refletir em suas teses e ações têm sido frequentemente usados. Não é muito novidade isso, é verdade, em contextos políticos e religiosos, mas, hoje, especialmente em nosso país, com a mistura evidente entre religião e política, a prática se acirrou.

É comum ouvir os famosos adjetivos que acompanham o “mas ele/ela é”, como, “comunista”, “socialista”, “fascista”, “mortadela”, “coxinha”, etc. Antigamente, já eram comuns, para desqualificar, termos como “nordestino”, “analfabeto”… Até “secundarista” já ouvi.

Nas igrejas, já participei de debates citando teólogos que tiveram seu contraponto com afirmações como “mas ele é liberal”. Ainda se somam a esse, termos como “abortista”, “desigrejado”, “esquerdista” e afins.

Quando, em um debate, um adjetivo desse é utilizado para desqualificar o opositor, descarta-se a ideia e iniciam-se os ataques pessoais. São os argumentos ad hominem, que se esquecem do debate e partem para o ataque pessoal, de ofensa e desqualificação.

Exemplos execráveis

Essas marcas são tão fortes na sociedade que podemos lembrar dois exemplos: no primeiro, um jovem que incendiou um indígena em Brasília justificou seu ato nefasto ao afirmar que pensou que a vítima fosse “um mendigo”! Já no Rio de Janeiro, uma empregada doméstica sofreu um ataque brutal de jovens. Qual foi a explicação? “Pensávamos que fosse uma prostituta”!

Em contexto de guerra, compreende-se (não se justifica, mas se explica); nos embates políticos, em que aniquilar o opositor é o objetivo, entende-se. O que me causa espécie é ver essa tática que chega a justificar um assassinato ser usada por cristãos em todo o território nacional.

Na época de Jesus mesmo, encontramos estigmas como leprosos, prostitutas, publicanos, samaritanos e outros. Sem dúvida, esses adjetivos eram utilizados para diminuir outras pessoas. Essas categorias não foram tratadas dessa forma por Jesus e os exemplos que temos de aproximação dele com pessoas assim foi bem diferente do que a elite religiosa esperava.

A estratégia de desumanização, que tem levado, de fato, religiosos e políticos a ofender, agredir e, até mesmo, matar (em nome de Deus), deve ser execrada por quem entendeu, converteu-se e segue os ensinamentos de Jesus Cristo. Custa-me entender que possa ser usada tão facilmente por quem não tem problemas de psicopatia. Ela não pode ter espaço no coração daqueles que escolheram amar.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

*** Foto de capa: Omar Alnahi/Pexels

Estamos sob cuidado, não em guerra!

Por uma nova metáfora para hoje.

Não, não vou me render. Isto não é uma guerra, não estamos em guerra.

Após o período de quarentena, paciente com COVID-19 é levado para ver o pôr do sol, na cidade de Wuhan, China. (Reprodução/ Reuters)

Desde que a narrativa dominante na Itália e no mundo sobre a pandemia assumiu uma terminologia de guerra, isto é, imediatamente após a situação de saúde em qualquer país mudar drasticamente para pior, procurei uma metáfora diferente para descrever adequadamente o que estamos vivendo e sofrendo e, ao mesmo tempo, oferecer elementos de esperança e de senso para os próximos dias.

O recurso à metáfora da guerra foi apontado e criticado por alguns comentaristas, mas tem fascínio, alcance e eficácia imediatos, de modo que não é fácil eliminá-la. Com grande interesse, li algumas contribuições, não numerosas, até onde posso, publicadas nos últimos dias: o artigo de Daniele Cassandro – “Estamos em guerra! Coronavírus e suas metáforas”, para o Internazionale, o mini-levantamento de Vita.it sobre -“O vocabulário da virulência da guerra”, o texto de Gianluca Briguglia em seu blog –“Não, não é uma guerra”, e o excelente trabalho de Marino Sinibaldi na Rádio 3, que dedicou um episódio de “Acertos de linguagem” para esse mesmo tema, e também introduziu uma possível metáfora alternativa: o “vocabulário da tenacidade”.

As dezenas de artistas, estudiosos, intelectuais, atores convidados a escolher e ilustrar uma palavra significativa neste momento da história, forneceram uma lista valiosa que vai de “harmonia” à “proximidade”. Mas não consigo encontrar um termo que possa ser uma metáfora para toda a narrativa da realidade que estamos vivendo.

No entanto, como disse no começo, não me rendi: não estamos em guerra!
Por causa de minha própria história, minha formação e minhas condições de vida, conheço bem a cordilheira distintiva, a da luta espiritual e de uma guerra santa ou justa, ao longo da qual é fácil perder o equilíbrio e cair na interpretação de si mesmo, da própria vida e do curso da história segundo um modelo de guerra.

Mas então, se não estamos em guerra, onde estamos? Estamos sob cuidados! Não apenas os doentes, mas nosso planeta, todos nós. E o cuidado inclui todos os aspectos de nossa existência, neste período indeterminado de pandemia e também no “depois”, que virá.

Agora, tanto a guerra quanto os cuidados precisam de alguns atributos: força (uma coisa diferente da violência), perspicácia, coragem, resolutividade e também tenacidade.

A guerra e o cuidado são sustentados por um alimento muito diferente. A guerra precisa de inimigos, fronteiras e trincheiras, armas e munições, espiões, enganos e mentiras, crueldade e dinheiro. Por outro lado, o cuidado é nutrido por outras coisas: proximidade, solidariedade, compaixão, humildade, dignidade, delicadeza, tato, escuta, autenticidade, paciência, perseverança.

Todos nós podemos ser agentes reais desse cuidado do outro, do planeta, de nós mesmos com eles e elas – todos e todas – homens e mulheres com suas crenças ou descrenças, de acordo com sua capacidade, competência, princípios inspiradores, capacidades físicas e psicológicas. Médicos em seus consultórios e hospitais, enfermeiras, paramédicos, virologistas e cientistas, que são agentes de assistência. O mesmo com funcionários públicos e governamentais, servidores públicos do bem comum. Assim como trabalhadores em serviços essenciais, psicólogos, assistentes sociais, pessoas envolvidas em associações voluntárias. Assim como professores e estudantes, homens e mulheres das artes e da cultura. Assim como padres, bispos e pastores, ministros de diferentes cultos e catequistas. Assim como pais e filhos, amigos e vizinhos. Assim como os agentes de cuidados,os doentes, os moribundos, os fracos (bens preciosos e frágeis “a serem tratados com cuidado”), os pobres, os sem-teto, os imigrantes, os que estão as margens da sociedade, os presos, as vítimas de violência doméstica e de guerras…
A consciência de estar no cuidado, portanto, e não em guerra, é uma condição fundamental também para o “depois”.

O futuro será colorido pelo que fomos capazes de viver nesses dias mais difíceis, será determinado pela nossa capacidade de prevenção e assistência, começando pelo atendimento ao único planeta à nossa disposição. Se formos e pudermos ser guardiões da terra, a própria terra cuidará de nós e protegerá a condição indispensável para nossa vida.

As guerras terminam, ainda que recomecem, mas os cuidados, por outro lado, nunca terminam. Se, de fato, existem doenças que (por enquanto) não podem ser curadas, não existem e nunca existirão pessoas para as quais não possamos oferecer assistência.

De fato, não estamos em guerra, estamos sob cuidados! Vamos cuidar uns dos outros.