Imprensa e políticos da bancada evangélica no Congresso repercutem decisão da justiça catarinense que obriga pais a vacinar suas filhas

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) manteve, no dia 28 de junho, decisão da 2ª Vara Cível da Comarca de São Bento do Sul, que determinou que um casal providencie, no prazo de 60 dias, a imunização de suas duas filhas de acordo com o esquema vacinal proposto pelo Ministério da Saúde. De acordo com a decisão, se os pais não acatarem a determinação, deverão pagar multa diária, entre R$ 100 e R$ 10 mil, em favor do Fundo de Infância e Adolescência daquele município. A ação foi ajuizada pelo Ministério Público catarinense. A não realização da vacinação das crianças somente seria aceita por meio da apresentação de atestado médico que comprovasse a contraindicação.

A decisão gerou reação crítica de parlamentares cristãos nas mídias sociais que negam a eficácia da vacinação, principalmente, da vacina contra a covid-19. Tal postura é recente no país,  fruto da desinformação que invadiu os espaços digitais ligados à extrema direita. Bereia já checou e refutou os argumentos que são apresentados como supostos motivos para não vacinar crianças e adolescentes

Imagem: reprodução do perfil do senador Cleitinho (REPUBLICANOS-MG)

Imagens: reprodução do perfil do senador Jorge Seif Junior (PL – SC) 

A deputada federal Júlia Zanatta usou a repercussão do caso para publicitar o Projeto de Decreto Legislativo (PDL 486/2023), de sua autoria, que susta a Nota Técnica do Ministério da Saúde que incorpora as vacinas contra a covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação Infantil, para crianças de seis meses a cinco anos de idade. 

Imagens: reprodução do perfil da deputada federal Júlia Zanatta (PL – SC) 

Apesar dos parlamentares afirmarem que a determinação serve para forçar a aplicação da vacina contra a covid-19 nas crianças, o processo corre em segredo de justiça e, por isso, o Judiciário não pode informar  sobre a idade dos menores, nem quais vacinas devem ser administradas obrigatoriamente.

O site Pleno.News também repercutiu a decisão do TJSC. 

Imagem: Reprodução do site Pleno.news

Já o jornal Gazeta do Povo publicou uma entrevista em que o deputado Osmar Terra critica a obrigatoriedade da vacinação e que classifica a decisão do TJSC como absurda. 

Imagem: Reprodução do site Gazeta do Povo

Entenda o caso

Em 28 de junho, o site do Poder Judiciário de Santa Catarina divulgou notícia que confirma que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) manteve a decisão, tomada na 2ª Vara Cível na comarca de São Bento do Sul,que determina que um casal deve realizar a vacinação de suas duas filhas, no prazo de 60 dias, de acordo com o esquema vacinal do Ministério da Saúde.

A notícia destaca que o não cumprimento da determinação acarreta o pagamento de multa diária entre R$ 100 e R$ 10 mil em favor do Fundo de Infância e Adolescência do município. A não vacinação das crianças só será aceita perante apresentação de atestado médico que comprove a contra indicação. A decisão foi tomada devido às infrações administrativas às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O site também aponta que a mãe recorreu da decisão e alegou que toma as devidas providências para a saúde das filhas. Ela defendeu que está sendo obrigada a realizar a vacinação sem segurança para tal e assim colocaria em risco a integridade física das filhas. Em contrapartida, o juiz declarou que, segundo o artigo 227 da Constituição da República, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à vida, à saúde, à dignidade e ao respeito. A decisão também aborda a importância da vacinação e das vidas que poderiam ter sido poupadas graças às vacinas durante a pandemia de covid-19.

Vacinação infantil e o impacto da determinação

A partir do artigo 227 da Constituição Federal, é possível afirmar que crianças e adolescentes deixam de ser considerados meros objetos de tutela e devem ser considerados sujeitos de direitos, de forma que a ação estatal e familiar deve garantir a realização de todos os seus direitos. Além disso, o primeiro inciso do artigo 14, do Estatuto da Criança e do Adolescente, define que é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Contudo, a obrigatoriedade da vacinação infantil pela legislação é questionada com frequência no período recente, especialmente após a descredibilização das vacinas durante a pandemia de covid-19. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um dos críticos da eficácia das vacinas, anunciou, em 2021, que não vacinaria a filha contra a  covid-19, à época, com 11 anos. 

Sobre a distinção que ocorre entre casos como o do ex-presidente e o que acarretou a decisão do TJSC, a enfermeira pediátrica Juliana Campos, disse, em entrevista ao Bereia, que a decisão judicial, em geral, é resultado de uma série de negligências que a criança pode estar sofrendo.

“Quando chega a ser determinação judicial, provavelmente a criança já vem vivenciando situações de negligência do responsável legal. São crianças que adoecem com mais frequência, que têm números de internações mais elevados e concomitantemente sofrem outras negligências envolvidas relacionadas ao estilo de vida. São casos muito críticos, dentro da unidade de saúde e realidades mais comuns do que imaginamos. As crianças adoecem porque não estão com o esquema vacinal completo e, assim, são mais propensas a desenvolver diversas doenças que são evitáveis pelas vacinas oferecidas pelo próprio governo”, ela afirma.

O que dizem os especialistas?

O advogado especialista em Direito Constitucional Antonio Carlos de Freitas Júnior falou, em entrevista ao site jurídico JusBrasil, que a mera recomendação de vacinação pela autoridade sanitária já a torna obrigatória para as crianças por força normativa do ECA. “A omissão dos pais na vacinação por si só deflagra o sistema de proteção do estatuto, que pode acarretar em diversas sanções aos pais”, afirmou o advogado ao site. Ele ressalta ainda que, criminalmente, os pais poderão, ainda, ser responsabilizados nos termos do artigo 132 do CP: “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente, com detenção, de três meses a um ano”. O advogado avalia que “em caso de morte ou de lesão corporal os pais podem responder pela modalidade culposa de tais crimes podendo ser aplicado ou não o perdão judicial a depender do caso concreto”..

Na mesma linha de pensamento de Freitas Júnior, o advogado, especialista em Direito e Processo Penal Leonardo Pantaleão entende que os pais são responsáveis por eventual omissão penalmente relevante e que, em razão dela, cause danos à saúde ou à vida de seus filhos menores.l: “nesse sentido, a simples não vacinação das crianças, já os coloca como potencialmente incursos nas penas do artigo 132 do Código Penal”, afirma.

O jurista acrescenta. “Caso, em razão da não imunização, a criança seja contaminada e apresente complicações de saúde, os pais ou representantes omissos responderão criminalmente pelo resultado produzido em decorrência da omissão, ou seja, lesão corporal ou, no pior cenário, pelo resultado da morte”, reforçou.

No mesmo sentido, Julina Campos destaca que a vacinação é um direito que deve ser garantido às crianças e que está explícito na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do adolescente, como citado anteriormente. A enfermeira destaca ainda a importância da vacinação: “entende-se que a vacina é uma forma de prevenção de várias doenças e existem estudos que comprovam isso. O aumento da não vacinação por sua vez vem de movimentos de grupos anti vacina e que não tem nenhuma fundamentação científica para tal”.

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Bereia checou as informações divulgadas nas mídias gospel e avalia que não houve exageros ou inverdades nas publicações. De fato, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina determinou que os pais vacinem suas filhas em 60 dias, caso contrário, estão sujeitos a multa diária de 100 a 10 mil reais. A única ressalva é que, por correr em segredo de justiça, não há informação sobre as idades dos menores e sobre a qual vacina ou vacinas o processo se refere.

Bereia alerta leitores e leitoras quanto ao uso político de parlamentares negacionistas do direito à imunização e da obrigatoriedade dela como recurso de saúde pública que visa à coletividade, especialmente em períodos eleitorais, como 2024.

Referências

G1. https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2024/07/02/justica-obriga-vacinacao-de-filhas-em-sc.ghtml Acesso em: 02 de julho de 2024.

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-07/justica-da-60-dias-para-casal-vacinar-filhas-em-santa-catarina Acesso em: 02 de julho de 2024.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-12/pais-sao-obrigados-vacinar-criancas-o-que-diz-lei. Acesso em: 02 de julho de 2024.

Tribunal de Justiça de Santa Catarina. https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/casal-deve-vacinar-filhas-conforme-esquema-vacinal-do-ministerio-da-saude-confirma-tj-?redirect=/ Acesso em: 02 de julho de 2024.

Constituição Federal. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/escolaqueprotege_art227.pdf Acesso em: 02 de julho de 2024.

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/07/justica-de-santa-catarina-determina-prazo-para-casal-vacinar-filhas.shtml#:~:text=O Acesso em: 02 de julho de 2024.

Metrópoles. https://www.metropoles.com/brasil/zanatta-critica-decisao-judicial-que-obriga-casal-a-vacinar-filhos Acesso em: 02 de julho de 2024.

Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2423254 Acesso em: 02 de julho de 2024.

https://www.camara.leg.br/noticias/701491-obrigatoriedade-de-vacinas-e-alvo-de-debate-nos-tres-poderes-da-republica/. Acesso em: 03 de julho de 2024.

https://www.camara.leg.br/noticias/1015019-deputados-de-oposicao-protestam-contra-obrigatoriedade-de-vacinacao-contra-covid-em-criancas

https://www.cofen.gov.br/vacinacao-de-criancas-volta-a-ser-obrigatoria-no-bolsa-familia/ Acesso em: 03 de julho de 2024.

Gov.br https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-com-ciencia/noticias/2024/janeiro/e-falsa-a-informacao-de-que-o-brasil-e-o-unico-pais-que-vacina-criancas-contra-a-covid-19

https://brasilescola.uol.com.br/historiab/revolta-vacina.htm#:~:text=Do%20dia%2010%20at%C3%A9%2016,erradicada%20do%20Rio%20de%20Janeiro. Acesso em: 02 de julho de 2024.

Jus Brasil. https://www.jusbrasil.com.br/artigos/os-pais-sao-obrigados-a-vacinar-seus-filhos/1179178028  Acesso em: 02 de julho de 2024.

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/sou-obrigado-a-a-vacinar-meu-filho-a-contra-a-covid-19-ou-posso-escolher-nao-vacinar/1362689850 Acesso em: 02 de julho de 2024.

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/art-14-1-do-eca-vacinacao-obrigatoria-das-criancas/1360421127 Acesso em: 03 de julho de 2024.

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-vacina-e-o-eca-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/1353254407 Acesso em: 03 de julho de 2024.

Defensoria do Rio Grande do Sul

https://www.defensoria.rs.def.br/saiba-quais-as-consequencias-legais-caso-pais-maes-ou-responsaveis-legais-nao-vacinem-as-criancas-contra-a-covid-19

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-com-ciencia/noticias/2024/janeiro/e-falsa-a-informacao-de-que-o-brasil-e-o-unico-pais-que-vacina-criancas-contra-a-covid-19 Acesso em: 03 de julho de 2024.
Migalhas. https://www.migalhas.com.br/depeso/369030/ha-arbitrariedade-na-obrigatoriedade-da-vacinacao-infantil Acesso em: 03 de julho de 2024.

Imagem da Capa: Paulo Pinto/Agência Brasil

Site evangélico desinforma sobre resolução do Conselho Nacional de Assistência Social para comunidades terapêuticas

* Matéria atualizada em 07/05/2024 para ajuste de texto; e em 08/05/2024 para complementação de informações

O site Pleno.news noticiou, em 26 de abril passado, que o governo Lula teria cortado recursos destinados ao tratamento de dependentes químicos, realizado por comunidades terapêuticas (CTs). A matéria, que foi produzida a partir de uma notícia do veículo O Globo, aponta que o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) deixou de reconhecer essas comunidades como organizações de assistência social, portanto, elas deixariam de receber recursos destinados ao setor. Outros sites como a Gazeta do Povo também noticiaram a mesma informação.

Imagem: Reprodução do site Pleno.news

A matéria, que foi produzida a partir de uma notícia do veículo O Globo, aponta que o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) deixou de reconhecer essas comunidades como organizações de assistência social, portanto, elas deixariam de receber recursos destinados ao setor. 

Imagem: Reprodução do site Pleno.news

Além de O Globo, outros veículos de comunicação, como a Gazeta do Povo, também noticiaram a mesma informação de formas semelhantes.

Imagem: Reprodução do site Gazeta do Povo

A matéria do Pleno.news explica que a decisão foi tomada devido à falta de alinhamento dessas comunidades com os requisitos necessários para fazer parte do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Assim, governos estaduais e municipais teriam 90 dias para cancelar a inscrição das comunidades para receber apoio governamental.

A manchete utilizada no Pleno.news, “Governo Lula corta recurso de comunidades para dependentes”, sugere que as verbas destinadas ao cuidado de pessoas que necessitam de apoio foram cortadas sem justificativa. Bereia checou esta notícia. 

A matéria de O Globo que foi base para a do Pleno.news é mais completa. Apesar de ter o mesmo título, explica com detalhes e fontes factíveis as pressões que envolveram a decisão do CNAS. Além disso, a matéria realiza um resgate sobre o histórico da relação dos CTs com o governo federal e os investimentos que foram realizados para as comunidades nos últimos anos.

O que são comunidades terapêuticas? E como elas se popularizaram?

De acordo com o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, regulamentado pelo Decreto nº 9.761/2019 e pela Lei nº 13.840/2019,  as comunidades terapêuticas são como entidades privadas e sem fins lucrativos que realizam o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, do abuso ou da dependência de substâncias psicoativas, em regime residencial transitório e de caráter exclusivamente voluntário (espontâneo).

Essas comunidades não integram o Sistema Único de Saúde (SUS), mas fazem parte do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), como equipamentos da rede suplementar de atenção, recuperação e reinserção social de dependentes de substâncias psicoativas.

Como já abordado pelo Bereia, as CTs têm, desde sua origem, uma ligação com o segmento religioso, denominadas “centros de recuperação”. De acordo com estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),, a primeira comunidade terapêutica do país surgiu em 1968, mas a prática só se popularizou a partir da década de 80. As CTs apresentam diferentes projetos, mas têm em comum a metodologia de estabelecer espaços de internação de dependentes distantes dos centros urbanos (retiros), baseados em tratamentos via abstinência e “laborterapia” (trabalho forçado) para alcance da “cura”, aliados à pregação da conversão religiosa com exercícios espirituais e catequese. 

A relação das CTs com o governo federal por sua vez se iniciaram ao final do segundo mandato do presidente, Luis Inácio Lula da Silva, com o programa “Crack, é possível vencer”, realizado pelo Ministério da Justiça. Nesse programa, o governo passou a contratar vagas nas CTs e de tal forma financiar as comunidades. Elas  expandiram ainda mais a atuação durante o governo do ex-presidente Bolsonaro, por conta  do Decreto Nº 9.761, referente à Nova Política Nacional de Drogas, assinado em abril de 2019. O decreto preconiza a construção de uma sociedade protegida do uso de drogas, e estabelece o foco na abstinência por meio de ações e programas de cuidados, como as Comunidades Terapêuticas.

Após esse marco, as CTs passaram a ser uma das principais políticas públicas de tratamento para dependentes durante o governo de Bolsonaro. Segundo o estudo “Financiamento público de comunidades terapêuticas brasileiras entre 2017 e 2020”, realizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela ONG Conectas Direitos Humanos, publicado em abril de 2022, os investimentos federais passaram de R$39,2 milhões em 2018, para R$104,8 milhões em 2019.

Imagem: Reprodução do relatório Financiamento público de comunidades terapêuticas brasileiras entre 2017 e 202

O estudo mostra ainda a distribuição das verbas estaduais e municipais durante o mesmo período. Enquanto o financiamento municipal subiu de R$4 milhões, em 2018, para R$5,3 milhões, em 2019, o financiamento estadual caiu de R$78,3 milhões em 2018 para R$74,6 milhões em 2019. Contudo, o cenário total dos investimentos públicos no período ainda representa aumento significativo.

Imagem: Reprodução Financiamento público de comunidades terapêuticas brasileiras entre 2017 e 2020

Denúncias de maus tratos e violências

Apesar da popularização e investimentos destinados às Comunidades Terapêuticas, nos últimos anos, denúncias sobre o funcionamento destas organizações colocaram em questionamento sua atuação. Denúncias de maus tratos e violência como o caso em que a Polícia Civil de Goiânia resgatou 50 vítimas de cárcere e tortura em uma CT em Anápolis (GO), se tornaram públicas, algumas delas checadas pelo Bereia.

Outros casos também tiveram repercussão nacional, como as queixas de agressão e maus tratos na Comunidade Terapêutica Kairós em São Paulo, divulgada pelo programa de TV Fantástico (Rede Globo), em novembro de 2023. Em 2015, o Ministério Público de São Paulo já havia disponibilizado um roteiro para fiscalização da atuação das CTs ainda assim,  oito anos depois, os casos de maus tratos em CTs ainda são realidade no estado.

Em fevereiro de 2023, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) havia se manifestado  contrário ao recém-criado Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas, ao alegar que não há comprovações científicas da pertinência e da eficácia do modelo de assistência prestado nas comunidades.

A então coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde Mental (Cism) do CNS, também representante do Conselho Federal de Psicologia Marisa Helena Alves, afirmou que, historicamente, a comissão se posiciona contrária ao financiamento público das comunidades. “Esse posicionamento da comissão é baseado em evidências presentes em relatórios de inspeção do CFP, OAB, Ministério Público dentre outras entidades, que comprovaram a violação de direitos humanos nessas instituições”, declarou a coordenadora da Cism.

O Relatório do Ministério Público Federal (MPF), citado pelo Cism, divulgado em 2018, foi baseado em vistorias realizadas no ano anterior, em 28 comunidades terapêuticas, de 11 estados. De acordo com o documento, em todas as CTs visitadas foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos, como tortura, sequestro, cárcere privado e trabalho forçado.

Os antropólogos Maurício Fiori (Cebrap) e Taniele Rui (Unicamp), ao organizarem uma coletânea de trabalhos de especialistas dedicados ao estudos das CTs, em 2021, afirmam que:

“Espalhadas pelo país e atingindo força política inédita, as CTs são tão inescapáveis do debate sobre
drogas quanto complexas em sua definição. (…) indeterminações sobre suas características estruturais e sobre seu papel parecem ser parte de sua potência política. As CTs têm como prática o isolamento, mas não podem ser definidas como clínicas nem como hospitais psiquiátricos. Abrigam quem está em situação vulnerável, mas não se confundem com residências terapêuticas nem com equipamentos de assistência social, como abrigos. A prática da religiosidade é cotidiana, normalmente incondicional, mas tais instituições não se apresentam, e nem são vistas, como igrejas. Nessa zona ambígua, as CTs não se limitam mais ao autofinanciamento, estão
fortalecidas em associações próprias e recebem regularmente recursos cada vez mais vultosos de
diferentes esferas do poder público”.

Fiori e Rui reconhecem que “defensores de uma perspectiva de cuidado e de tratamento em liberdade denunciam as CTs como derivações contemporâneas do empreendimento manicomial, pautadas no isolamento
institucional e em códigos de conduta punitivo-autoritários. Defensores das CTs, por sua vez, apontam
para a voluntariedade do atendimento e para sua premissa comunitária, cujo potencial seria o da real
transformação das pessoas atendidas”. Por isso, para os pesquisadores “a discussão sobre a própria definição das CTs está longe, muito longe, de ser a única controvérsia no debate”.

O que diz a resolução do CNAS sobre Comunidades Terapêuticas?

A resolução publicada no Diário Oficial da União, em 23 de abril de 2024, é resultado de reunião realizada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), em 19 de abril passado. No documento, o CNAS define o que são entidades e organizações de assistência social bem como os critérios obrigatórios para que estas sejam reconhecidas como integrantes da Rede Socioassistencial do Sistema Único de Assistência Social (Suas).

O documento também estabelece que “a certificação e a fiscalização do certificado de entidade beneficente de entidades e organizações de assistência social vinculadas ao SUAS são de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social, nos termos do Decreto nº 11.392, de 20 de janeiro de 2023”. 

Segundo a legislação, o governo federal deve cumprir as resoluções dos Conselhos de Direitos ou Conselhos de Políticas Pública, estabelecidos pela Constituição de 1988, com vistas à participação de cidadãos e cidadãs na formulação, implementação e controle/fiscalização das políticas públicas dos governos nos diferentes níveis – federal, estadual e municipal. Para que superar desinformação e desconhecimento sobre o que isto significa, Bereia recorda que o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) é um desses órgãos com base constitucional, instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), em 1993, para “promover o controle social da política pública de assistência social e contribuir para o seu permanente aprimoramento, a partir das necessidades da população brasileira”.

Algumas de suas principais competências são aprovar a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), regular a prestação de serviços públicos e privados de assistência social, zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de assistência social e convocar ordinariamente a Conferência Nacional de Assistência Social.

 O CNAS é composto por 18 membros, sendo nove representantes governamentais e nove da sociedade civil. O órgão é sempre presidido por um de seus integrantes, eleito pelos próprios membros do Conselho, com mandato de um ano e possibilidade de estendê-lo por mais um. A presidência do CNAS  para o mandato 2022 a 2024 é da assistente social Margareth Dallaruvera.

Na Resolução do CNAS, publicada em abril passado, deixa de haver reconhecimento automático das Comunidades Terapêuticas como entidades e organizações de assistência social, bem como sua vinculação ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A resolução dispõe que as CTs que não cumprirem os requisitos para atuação no Suas, não poderão ser financiadas com recursos destinados à política de assistência social.

Depois das críticas da parte de lideranças religiosas, promotoras das CTs, o CNAS publicou uma nota de esclarecimento sobre a Resolução, divulgada em 2 de maio. Nela, o conselho afirma que não são todas as CTs que se enquadram nesta resolução. “Qualquer organização da sociedade civil que cumpra as normativas do SUAS quanto às ofertas socioassistenciais realizadas, poderá receber recursos públicos via Fundo de Assistência Social. Os repasses fundo a fundo no âmbito do SUAS destinam-se exclusivamente para ofertas socioassistenciais tipificadas na Resolução CNAS nº 109/2009”. 

Além disso, a nota explica que “os financiamentos às comunidades terapêuticas e/ou entidades de cuidado, prevenção, apoio, de mútua ajuda, atendimento psicossocial e ressocialização de dependentes do álcool e de outras drogas e seus familiares realizados pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) não são via Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). Portanto, o conteúdo da Resolução CNAS nº 151/2024 não afeta termos de colaboração, convênios e contratos”

Desta forma, de acordo com a nota, as CTs já cadastradas e com contrato em vigor não terão o financiamento alterado. 

Em 29 de abril de 2024, o governo federal, por meio do AVISO Nº 4/2024/MDS/SE/DEPAD, convocou cem comunidades terapêuticas a apresentarem documentação e assinarem o contrato relativo ao Edital de Credenciamento nº 8/2023. Segundo a entidade sem fins lucrativos Cruz Azul, que reúne mais de 20 CTs no Brasil, e tem sede em Blumenau (SC), a convocação comprova a disposição de continuidade do financiamento do acolhimento em comunidades terapêuticas pelo governo federal. O aviso também foi celebrado no perfil da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT) no Instagram.

O secretário da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT) Egon Schlüter disse, em entrevista ao Bereia, que as comunidades terapêuticas atendem, sim, ao público-alvo da assistência social e que, portanto, têm direito à inscrição nos conselhos de assistência social. “Infelizmente a assistência social tem um viés ideológico de esquerda radical, que não admite os trabalhos das organizações da sociedade civil, sendo este viés ainda mais presente na modalidade de Comunidade Terapêutica”, declarou o secretário que também é presidente da Cruz Azul. 

Ele afirma ainda, acreditar que o financiamento das Comunidades Terapêuticas não será descontinuado. “Como o financiamento é feito via DEPAD/MDS, com uma fonte específica não atrelada ao Fundo Nacional de Assistência Social, mas a recursos do Tesouro Nacional para a área de Redução da Demanda de Drogas, acreditamos que o financiamento continua, pois tem o apoio histórico e atual, do ministro Wellington Dias, que acompanha nosso segmento há mais de 10 anos”, explica o presidente se referindo ao Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil. 

De acordo com Schlüter, esta última Nota (de esclarecimento) do CNS é um reconhecimento do erro que o conselho cometeu. “O CNS erra ao não se submeter à legislação, à política nacional de assistência social. Mesmo com esta última nota, nós apoiamos o PDL 223/2024 da Câmara dos Deputados, para derrubar a Resolução 151/2024 do CNAS”.

O Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDL 223/2024), ao qual o secretário se refere, é de autoria do deputado federal  Ricardo Salles (PL/SP), ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, alinhado à extrema direita. O Projeto propõe sustar a Resolução do CNAS/MDS, que exclui as comunidades terapêuticas e entidades de atendimento a dependentes do álcool e outras drogas e seus familiares, do rol de entidades que podem ser financiadas com recursos destinados à política de assistência social, por meio dos fundos de assistência social. O documento foi apresentado em 26 de abril de 2024 e está aguardando o despacho do presidente da Câmara Arthur Lira (PP/AL). 

Bereia verificou que, até o fechamento desta matéria, não havia posicionamento público da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT) sobre a resolução do CNAS. 

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Bereia verificou as informações publicadas pelo site Pleno.news e identificou que o conteúdo é ENGANOSO, pois leva leitores e leitoras a crerem que o governo federal deixou de financiar entidades que assistem dependentes químicos e seus familiares. A Resolução que regula e limita o reconhecimento e o financiamento de Comunidades Terapêuticas é do Conselho Nacional de Assistência Social, órgão fundamentado na Constituição Federal, que formula, implementa e controla/fiscaliza as políticas públicas do governo federal no tocante à assistência social. O governo federal é instado a cumprir a resolução.

A repercussão da Resolução, com reação negativa, obrigou CNAS  a publicar uma Nota de Esclarecimento sobre o assunto. 

Os títulos alarmistas, de caráter enganoso, publicados na grande mídia e nos sites que reproduziram suas matérias, como o Pleno.news  e acabam sendo usados para reforçar discursos falsos nas mídias sociais sobre a perseguição contra igrejas e contra cristãos, da parte de líderes políticos, como Bereia têm checado.  

Referências de checagem:

COFEN – Conselho Federal de Enfermagem https://www.cofen.gov.br/conselho-nacional-de-assistencia-social-nega-reconhecimento-de-comunidades-terapeuticas/#:~:text=O Acesso em: 1 maio 2024

Governo Federal
https://www.gov.br/pt-br/servicos/acessar-comunidades-terapeuticas – Acesso em: 1 maio 2024

IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)  https://www.ipea.gov.br/sites/en-GB/comunidades-terapeuticas – Acesso em: 1 maio 2024

Conectas  https://www.conectas.org/noticias/comunidades-terapeuticas-levantamento-inedito-aponta-falta-de-transparencia-e-de-padroes-de-politicas-publicas/ Acesso em: 1 maio 2024

https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2022/04/Levantamento-sobre-o-investimento-em-CTs-w5101135-ALT5-1.pdf – Acesso em: 1 maio 2024

Folha https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/investimento-federal-em-comunidades-terapeuticas-sobe-95.shtml#:~:text=Esse – Acesso em: 1 maio 2024

G1
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/11/28/em-6-anos-policia-de-sp-recebeu-mais-de-20-denuncias-contra-comunidade-terapeutica-em-que-paciente-morreu.ghtml – Acesso em: 1 maio 2024

https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/11/26/agressoes-tortura-e-ate-assassinato-os-crimes-por-tras-das-comunidades-terapeuticas-da-grande-sp.ghtml Acesso em: 3 maio 2024

Terra
https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/pacientes-de-comunidades-terapeuticas-em-sao-paulo-denunciam-torturas-e-agressoes,0d3286f03a441970da0f360d3b223947f9putzid.html#:~:text=Entre Acesso em: 3 maio 2024

Presidência da República
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9761.html Acesso em: 3 maio 2024

Imprensa Nacional https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-cnas/mds-n-151-de-23-de-abril-de-2024-555715305  – Acesso em: 3 maio 2024


Polícia Civil de Goiás
https://www.policiacivil.go.gov.br/delegacias/regionais/policia-civil-resgata-mais-43-pessoas-confinadas-em-clinica-clandestina-de-anapolis/ – Acesso em: 3 maio 2024

https://www.policiacivil.go.gov.br/delegacias/regionais/pcgo-resgata-50-vitimas-de-carcere-privado-e-tortura-em-clinica-clandestina-na-zona-rural-de-anapolis/ – Acesso em: 3 maio 2024

MP-SP (Ministério Público de São Paulo)

https://www.mpsp.mp.br/w/opera%C3%A7%C3%A3o-do-mpsp-em-cajamar-resulta-em-pris%C3%B5es-por-maus-tratos-em-comunidade-terap%C3%AAutica – Acesso em: 3 maio 2024

https://www.mpsp.mp.br/w/mp-sp-disponibiliza-roteiro-para-fiscaliza%C3%A7%C3%A3o-de-comunidades-terap%C3%AAuticas Acesso em: 3 maio 2024

Ministério da Saúde
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/2874-conselho-nacional-de-saude-recomenda-a-extincao-do-departamento-de-apoio-as-comunidades-terapeuticas – Acesso em: 3 maio 2024

Perfil oficial da CONFENACT. https://www.instagram.com/p/C6WOl90M0vO/  – Acesso em: 3 maio 2024

Conselheiros Nacionais são empossados e presidência é escolhida no Conselho Nacional de Assistência. https://www.blogcnas.com/post/conselheiros-nacionais-s%C3%A3o-empossados-e-presid%C3%AAncia-%C3%A9-escolhida-no-conselho-nacional-de-assist%C3%AAncia#:~:text=Foram%20empossados%2018%20conselheiros%20da,Presidente%2C%20representando%20o%20Governo%20Federal. Acesso em: 3 maio 2024

Os Conselhos de Políticas Públicas à luz da Constituição Federal de 1988. https://jus.com.br/artigos/40415/os-conselhos-de-politicas-publicas-a-luz-da-constituicao-federal-de-1988#google_vignette. Acesso em 3 maio 2024

Relatório Anual Denúncias em Serviços de Interesse Para a Saúde. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/arquivos-noticias-anvisa/345json-file-1 Acesso em 6 maio 2024

Working Paper Series Comunidades Terapêuticas no Brasil. https://ssrc-cdn1.s3.amazonaws.com/crmuploads/new_publication_3/working-paper-series-comunidades-terapeuticas-no-brasil.pdf Acesso em 6 maio 2024

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Foto de capa: reprodução do site Gov.Br

Sites religiosos desinformam ao tratar da Revisão do Código Civil Brasileiro

Sites e mídias religiosas questionam os pontos mais sensíveis relacionados à família e costumes do Relatório Final da atualização do Código Civil Brasileiro e causam alardes ao distorcerem trechos que tratam sobre direitos do nascituro, casamento e modelos de família. 

Imagem: reprodução do site Terra Brasil Notícias

Entre estes espaços digitais está  o site Pleno News que publicou título de uma de suas matérias com a afirmação de que o anteprojeto trata de aborto. 

Bereia checou as informações.

Imagem: reprodução site Pleno News

Imagem: reprodução do site Brasil Paralelo

O que é a Comissão de Revisão do Código Civil

Desde quando foi instalada no Senado Federal, em 4 de setembro de 2023, a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL) tem sido alvo de polêmicas entre grupos cristãos e outros segmentos alinhados a valores conservadores.  O colegiado é composto por 39 juristas e presidido pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, , o vice-presidente é Marco Aurélio Bellizze, também ministro do STJ. Dos 39 membros, 11 são mulheres. É a primeira vez que juristas mulheres participam da elaboração do Código. Além disso, a professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP Rosa Maria de Andrade Nery é uma das relatoras do anteprojeto. 

Em oito meses de encontros, audiências e discussões sobre a reformulação do Código, a comissão recebeu 280 sugestões da sociedade, e ouviu especialistas em Direito Civil para compor o documento. O relatório final, que inclui o Anteprojeto de Lei, acompanhado das

justificativas das propostas, foi divulgado em 26 de fevereiro de 2024, e aprovado pela Comissão, em 5 de abril. A sessão de debate temático para apresentação e discussão do anteprojeto para reformular o Código Civil, instituído em 2002 e que está em vigor desde 2003, está marcada para o dia 17 de abril no plenário do Senado Federal. 

Os relatores admitem que há tópicos polêmicos que precisam de especial atenção para que haja um consenso. “O que foi combinado com o Pacheco é que nós daremos um parecer técnico. Depois, a matéria vai ser alterada conforme o Legislativo julgar melhor”, afirmou o presidente da comissão.

Aborto não está sendo tratado

Um dos pontos que mais tem causado reação negativa entre religiosos diz respeito ao direito do nascituro e define o feto como “potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina”. O senador espírita Eduardo Girão (Novo-CE) criticou o texto em discurso no plenário do Senado. Para ele, o artigo introduz no Código Civil a noção de que o bebê, antes de nascer, não teria vida humana. “É uma verdadeira aberração! Querem por uma perspectiva que afronte a biologia, ao definir que o bebê antes de nascer não é humano. E, como também não é animal, então passaria a ser apenas uma coisa descartável. É o sonho dos abortistas que defendem a legalização do assassinato de crianças no ventre materno”, disse Girão aos seus pares, o que foi reproduzido em veículos que propagam notícias da direita extremista.

Imagem: reprodução do jornal Gazeta do Povo

O trecho ao qual Girão se refere é o primeiro parágrafo do Art. 1.511-A:§ 1º A potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida humana pré-uterina e uterina são expressões da dignidade humana e de paternidade e maternidade responsáveis”. A expressão que aparenta limitar o alcance dos direitos do feto foi usada para alimentar notícias falsas, em alguns sites cristãos e da extrema direita. 

“Eu queria esclarecer que até aqui nós não temos nenhum tratamento sobre aborto no projeto, nenhum tratamento com família multiespécie, nós não temos nenhum tratamento sobre incesto no projeto, nós não temos nenhum tratamento a respeito de famílias paralelas. Não há nada no código a respeito desses assuntos, e isso vai ser percebido pela própria votação”, explicou um dos relatores da CJCODCIVI Dr. Flávio Tartuce

O jurista acrescenta, ainda, que o Código Civil sempre motiva debates, porque lida com a vida do cidadão desde antes do nascimento até depois da morte. “É normal haver discordâncias. Mas há também as polêmicas promocionais, de pessoas que querem se promover, e entre essas a grande maioria não leu nada”, lamenta.

De acordo com o artigo Fake news sobre a reforma do Código Civil: a quem interessa a desinformação?”, de autoria dos advogados Gustavo de Castro Afonso e Laura de Moraes Lima e do professor de Direito pela USP, doutor e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur):

A realidade do debate no Congresso conduzido por gente séria e comprometida, (…) está bem distante das teorias dos moralistas de plantão, que vivem uma realidade transcendente, que nem mesmo Platão saberia onde fixar na imaginária caverna. Chamemos de metaverso

“O texto ainda em discussão, longe de pretender a legalização do aborto, alarga a proteção ao nascituro, prevendo, inclusive, a necessidade de intervenção do Ministério Público nos procedimentos extrajudiciais em que presentes seus interesses”, explica o texto da Conjur.

O presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) ressaltou em entrevista à Agência Senado que a sociedade deve se tranquilizar em relação à Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. “O objetivo do grupo não é elaborar um novo Código Civil, mas sim suprir lacunas de normas que foram criadas há 20 anos”. 

Pacheco afirmou que está ciente da preocupação das comunidades católicas e evangélicas em relação aos temas que envolvem a família. “Todos esses temas, independente de como venham da Comissão de Juristas, obviamente, terão aqui um amplo debate com a sociedade e uma decisão que será do Parlamento”. O presidente do Senado explica, desta forma,  que o que for indicado pela comissão de juristas não exclui o Congresso nem vira força de lei, ao contrário do que os sites e parlamentares citados fazem crer.

“O colegiado promoveu verdadeiro debate democrático acerca de quais avanços e alterações precisam ser promovidos para que a nossa legislação de direito civil seja adaptada às demandas sociais dos tempos em que vivemos. Para que o Código Civil continue a perpetuar seu compromisso de garantir segurança jurídica e promover justiça em nossa nação, contribuindo para a edificação de uma sociedade mais justa e democrática, é chegado o momento de atualizá-lo”, declarou o senador Rodrigo Pacheco no requerimento que fez para determinar a discussão do anteprojeto em sessão temática no Plenário, em 17 de abril.

Sobre definições de família

Outro ponto que tem causado confusão entre gruposcristãos é a divulgação do texto do artigo 19: “A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa”. Para parte da comunidade cristã, esse texto elevaria o status jurídico da relação entre pessoas e animais. “… Abrindo espaço para o reconhecimento legal do que tem sido chamado de família multiespécie”, alega uma carta aberta divulgada por entidades cristãs da Paraíba, assinada pela Associação dos Pastores Evangélicos da Paraíba, Núcleo de Estudos em Política, Cidadania e Cosmovisão Cristã, Missão Juvep e VINACC. 

O texto se baseou em denúncias do site alinhado a grupos extremistas  Gazeta do Povo, para compor seu manifesto. Além das organizações paraibanas, a União Nacional das Igrejas e Pastores Evangélicos (UNIGREJAS) que diz em seu site ter reunido mais de 20 mil pastores pelo Brasil, também divulgou nota de repúdio ao anteprojeto se baseando em matérias do mesmo jornal, já desmentidas pelo relator da comissão de juristas

Imagem: reprodução do site Gazeta do Povo

Imagem: reprodução do site Gazeta do Povo

O presidente da comissão rebateu as críticas e disse não haver no anteprojeto nada sobre aborto ou qualquer menção a relações entre espécies. “O Código Civil não trata de aborto, nem tampouco da relação entre humano e animal. São notícias estapafúrdias. Imaginamos que isso seja fruto desse fenômeno moderno das notícias falsas que inclusive está sendo tratado pelo texto. Estamos tratando de coibir essas notícias falsas por intermédio de plataformas digitais”, ressaltou o ministro do Supremo Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão.

Sobre a questão do casamento, o texto remove menções a “homem e mulher”, reconhecendo o casamento civil e a união estável para casais homoafetivos, ampliando a definição de família para incluir vínculos conjugais e não conjugais, abrindo caminho para proteger, no texto da lei, o direito de homossexuais ao casamento civil, à união estável e à formação de família. 

Nessa linha, sem ingressar em debates ideológicos, primando pela absoluta cientificidade, respeitando jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, baniu-se, nas normas disciplinadoras do casamento e da união estável, referências a “homem e mulher” ou “marido e mulher”, optando, precisa e objetivamente, pela expressão “duas pessoas”, o que contempla, em perspectiva constitucional e isonômica, todo e qualquer casal, seja heteroafetivo ou não”, diz o relatório final no trecho em que a comissão explica as mudanças sugeridas no Código. 

Neste caso, os sites religiosos não incorreram em divulgação de informação falsa. E, como descrito, os casais heterossexuais estão incluídos na definição, sem excluir as demais formações familiares que já existem, na prática.

Divórcio também foi tema

O divórcio unilateral também é abordado pelas notas de repúdio e reportagens nos sites questionados nesta matéria. O artigo 1.582-A traz conteúdo sobre esta questão: O cônjuge ou o convivente, poderão requerer unilateralmente o divórcio ou a dissolução da união estável no Cartório do Registro Civil em que está lançado o assento do casamento ou onde foi registrada a união, nos termos do § 1º do art. 9º deste Código

No entanto, o Anteprojeto do Código Civil reforça logo em seguida, no segundo parágrafo, que o outro cônjuge deve ser notificado imediatamente: § 2º Serão notificados prévia e pessoalmente o outro cônjuge ou convivente para conhecimento do pedido

Outra proposta abordada no direito de família foi a mudança de nomenclatura de família para “das famílias”, no plural, e a criação de uma nova figura jurídica, chamada de “convivente”, além do “cônjuge”, para descrever as uniões estáveis. 

Além das entidades cristãs da Paraíba e da UNIGREJAS, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) e a União de Juristas Católicos também lançaram notas de repúdio e preocupação com o texto da reforma do Código Civil. 

“Sem qualquer diálogo público efetivo, nem mesmo com uma consulta ao mundo jurídico em geral (apenas 3 audiências públicas), o texto apresentado sugere reformas fundamentais em diversas matérias, com especial destaque para a personalidade civil e o direito de família (que sugere-se renomear de direito “das famílias”)”, diz a nota que se equivocou quanto ao número de audiências públicas, foram quatro e não três. (23/10/2023; 20/11/2023; 07/12/2023 e 26/02/2024), segundo o site da comissão.

Além disso, Bereia checou que, ao contrário das críticas dos juristas católicos, a comissão constituída no Senado ouviu a população e recebeu 280 sugestões para elaboração do texto. 

Código Civil no Brasil: breve histórico

O Código Civil é um conjunto de normas que impactam o dia a dia dos cidadãos brasileiros, e regula a vida do cidadão desde antes do nascimento, com efeitos até depois da morte do indivíduo, passando pelo casamento, regulação de empresas e contratos, além de regras de sucessão e herança. Ele reúne as normas que determinam os direitos e deveres das pessoas, dos bens e das suas relações no âmbito privado.

 Embora tenha sido elaborado em 2002, o Código Civil não foi o primeiro regulamento criado no país.

Nos séculos 17 e 19 havia a preocupação de neutralizar o Poder Judiciário através da criação de normas que o limitassem. Desta forma, foi outorgado em 1804 por Napoleão Bonaparte o Código Civil francês, revolucionando o Direito na Idade Contemporânea, cristalizando o conceito de Direito Civil, segregando as normas chamadas de Direito Público.

Com a conclusão de seu processo de independência, em 1823, o Brasil quis se inserir no concerto das nações e para isso era apropriado que o país se organizasse de acordo com uma legislação seguindo os moldes de então. Ainda naquele ano se discutiu a rápida confecção de um Código Civil. A lei foi votada na Assembleia Geral e Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, determinando a recepção de todo ordenamento jurídico português enquanto não fosse redigido “um  Código Civil” próprio, promessa reiterada na Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179, XVIII (“Organizar-se-á quanto antes um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça e Equidade”). 

A vontade de ter um Código Civil próprio não foi suficiente e somente em 1916 foi criado o primeiro documento responsável por instituir regras para as relações civis: o Código de Bevilacqua, idealizado pelo jurista Clóvis Bevilacqua (Lei 3071/1916). Antes de sua criação as Ordenações Filipinas, de 1603, que Portugal havia substituído em 1867, quando publicou seu próprio Código Civil.

As bases doutrinárias do Código Civil de 1916 eram assentadas em conceitos do século 19 que logo foram superados no século 20, a exemplo de patriarcalismo pronunciado nas relações de família e liberalismo, por esta razão passando por diversas reformas pontuais.

Durante o governo do ditador general Castelo Branco, na segunda metade do século 20, iniciou-se um movimento de reforma profunda da sociedade brasileira, o que implicou em uma tentativa de atualização da legislação civil. Devido a esse movimento de reforma, em 1969, durante a administração do ditador general Costa e Silva foi constituída a Comissão Miguel Reale, cujo objetivo era atualizar, reformar e recodificar o Direito Civil brasileiro. O novo Código Civil iniciou sua tramitação no Congresso Nacional, em 1975. 

O texto final foi aprovado em 15 de agosto de 2001, quando começou o período de transição fixado em lei. Após 32 anos de discussão, o novo Código Civil foi sancionado em janeiro de 2002 (Lei n° 10.406/2002), tendo entrado em vigor em 2003. 

Direito digital

Enfrentar a desinformação é um dos pontos que a comissão de juristas adicionou ao texto final do anteprojeto da reforma do Código Civil. A novidade é a criação do Direito Civil Digital, como Livro autônomo do Código Civil

“Fica evidente que as relações e situações jurídicas digitais já fazem parte do cotidiano do brasileiro e tornaram premente o delineamento do Direito Civil Digital, em face da evidente virada tecnológica do direito, de modo a agregar inúmeras interações de institutos tradicionais e de novos institutos, relações e situações jurídicas neste ambiente digital”, diz o relatório final da comissão. “O Livro de Direito Civil Digital ilumina a necessidade de atualizar a legislação brasileira para abordar os desafios e oportunidades apresentados pelo ambiente digital. A lei é meticulosamente estruturada em capítulos que abrangem desde disposições gerais até normas específicas para atos notariais eletrônicos”, explica ainda o relatório

O texto trata de assuntos como o direito digital à intimidade, liberdade de expressão, patrimônio e herança digital, proteção à criança, inteligência artificial, contratos e assinaturas digitais.

“A nossa grande inovação é a criação de normas gerais, criando um livro próprio sobre direito digital. Estamos propondo questões como a moderação de conteúdo das plataformas, avanços no neurodireito digital. São vários temas que estão sendo tratados e que vão conversar com outros pontos. Um exemplo é a herança digital e os bens digitais: moedas eletrônicas, mas também patrimônio que está em redes sociais, fotografias, os dados colocados nas redes, perfis”, diz Salomão.

A Inteligência artificial não ficou de fora. A regulamentação de ferramentas do tipo também faz parte do projeto. Segundo o presidente do colegiado, a proposta do anteprojeto traz linhas gerais sobre a necessidade de autorização do uso da imagem gerada por IA e outros temas para não ficar defasado em relação a inovações tecnológicas. “A ideia é fazer uma regulamentação geral, sem amarrar. Ninguém vai  segurar a evolução das tecnologias”, destacou.

O novo Livro representa um passo significativo, colocando o Brasil na vanguarda do tema e alinhando o direito brasileiro com as realidades do mundo digital, garantindo proteção, transparência e segurança nas interações online, enquanto promove a inovação e respeita os direitos fundamentais no ambiente digital”, argumentam os autores do anteprojeto no relatório final. 

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Bereia conclui que  as matérias do site religioso Pleno News, da Gazeta do Povo entre outros veículos e grupos que criticam o relatório final da Comissão de Juristas criada no Senado para elaboração de um anteprojeto de lei para a reforma do Código Civil Brasileiro são ENGANOSAS. Estes espaços digitais usam títulos com conteúdo falso e sensacionalista para confundir leitores e levá-los a conclusões erradas sobre o trabalho da comissão. 

As notícias refutadas nesta matéria são enganosas porque, apesar de terem conteúdo verdadeiro, os títulos e alguns trechos confundem leitores e os levam a acreditar em falsidades, uso de pânico moral, assunto já abordado por Bereia. Também instigam o público a fazer julgamentos equivocados sobre o anteprojeto e a Comissão de Juristas formada para a elaboração e reforma do Código Civil no Senado.

Em nenhuma das 311 páginas do relatório final fala-se sobre aborto, ou relação entre humanos e animais, ou sobre direito de pessoas que mantenham uma união extraconjugal. 

Entretanto, é verdadeiro que o texto suprime as palavras “homem e mulher” ou “marido e esposa” para definir as relações familiares. O intuito é garantir os direitos e deveres de famílias que não se encaixam nessa nomenclatura. Entre elas estão as formadas por casais do mesmo sexo, mas também aquelas formadas por parentes ou pessoas agregadas, sem necessariamente haver algum tipo de relacionamento amoroso entre os integrantes. Por exemplo, famílias cujos pais faleceram e um irmão mais velho passou a exercer o papel de chefe daquele núcleo. 

Referências de checagem:

Agência Senado

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/04/instalada-comissao-de-juristas-para-atualizar-o-codigo-civil Acesso em 15 ABR 24

https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630 Acesso em 15 ABR 24

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/3f08b888-b1e7-472c-850e-45cdda6b7494 Acesso em 15 ABR 24

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/05/juristas-concluem-anteprojeto-de-codigo-civil-direito-digital-e-familia-tem-inovacoes Acesso em 15 ABR 24

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/03/07/pacheco-afasta-preocupacoes-sobre-atualizacao-do-codigo-civil Acesso em 15 ABR 24

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/11/anteprojeto-do-novo-codigo-civil-sera-apresentado-na-quarta-17 Acesso em 15 ABR 24

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/3f08b888-b1e7-472c-850e-45cdda6b7494 Acesso em 15 ABR 24

Estadão 

https://www.estadao.com.br/politica/reforma-codigo-civil-familia-uniao-homoafetiva-casamento-gay-pets-inteligencia-artificial-senado-congresso-nacional-nprp/ Acesso em 15 ABR 24

CONJUR 

https://www.conjur.com.br/2024-mar-16/fake-news-sobre-a-reforma-do-codigo-civil-a-quem-interessa-a-desinformacao/ Acesso em 15 ABR 24

EBC 

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-03/comissao-de-juristas-vota-relatorio-final-da-reforma-do-codigo-civil Acesso em 15 ABR 24

CNN Brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/caio-junqueira/politica/juristas-catolicos-criticam-novo-codigo-civil-proposto-pelo-senado/ Acesso em 15 ABR 24

Assembleia Legislativa do Espírito Santo

https://www.al.es.gov.br/Noticia/2022/01/42426/codigo-civil-brasileiro-completa-20-anos.html Acesso em 15 ABR 24

Politize

https://www.politize.com.br/novo-codigo-civil/ Acesso em 15 ABR 24

Câmara dos deputados

https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-camara/copy_of_museu/exposicoes-2012/10-anos-do-codigo-civil Acesso em 15 ABR 24

https://www.camara.leg.br/noticias/24906-historia-do-novo-codigo-civil/#:~:text=O%20novo%20C%C3%B3digo%20Civil%20come%C3%A7ou,de%20transi%C3%A7%C3%A3o%20fixado%20em%20lei Acesso em 15 ABR 24
https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-camara/copy_of_museu/exposicoes-2012/10-anos-do-codigo-civil Acesso em 15 ABR 24

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Foto de capa: Waldemir Barreto/Agência Senado

Deltan Dallagnol compartilha informações imprecisas a respeito do orçamento público no combate à criminalidade 

O ex-Procurador da República e ex-deputado federal Deltan Dallagnol compartilhou em seu perfil na plataforma X (antigo Twitter),  matéria do jornal Gazeta do Povo intitulada “Lula corta verba para combate à criminalidade no Orçamento de 2024”. A publicação do ex-deputado foi compartilhada em diversos grupos de mensagens e mídias sociais religiosas. 

Fonte: perfil de Deltan Dallagnol na plataforma X (antigo twitter)

Ex-procurador federal, que ganhou fama por ser um dos líderes da Operação Lava Jato, propagada como combatente da corrupção no país, Dallagnol deixou o cargo em 2022 para se candidatar a deputado federal nas eleições, pelo Podemos. Ele foi vitorioso com mais de 340 mil votos e chegou a tomar posse em 1 de fevereiro passado. Porém, alguns meses depois, em maio, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou, por unanimidade, o mandato de Dallagnol, enquadrando-o na Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/2010). São frequentes as publicações do ex-procurador e ex-deputado que se referem ao caso como “perseguição”. Bereia já checou uma delas. Deltan Dallagnol, além de compartilhar diversas publicações da Gazeta do Povo, também é colunista do jornal digital.

A matéria compartilhada por Dallagnol refere-se ao Projeto de Lei Orçamentária Anual enviado pelo Executivo Federal ao Congresso Nacional em 31 de outubro. De acordo com a Gazeta do Povo, o governo do presidente Lula (PT) teria cortado em 31,5% os recursos voltados a ações de prevenção e enfrentamento à criminalidade, na proposta de orçamento para 2024. O jornal compara os números com os do governo Bolsonaro, que teria destinado mais de R$ 2 bilhões para 2023, e a previsão para 2024 seria de R$ 1,536 bilhão, o que representaria uma redução de R$ 708 milhões

Bereia checou as informações publicadas pela Gazeta do Povo e compartilhadas pelo ex-deputado Dallagnol. 

Orçamento Público: o tema da matéria compartilhada 

Orçamento público é o instrumento pelo qual o governo estima as receitas que serão arrecadadas ao longo do ano seguinte e, com base nelas, autoriza um montante de recursos a ser gasto na oferta de bens e serviços à sociedade. Ao apresentar receitas e despesas de forma organizada, o orçamento público torna-se um importante instrumento de controle social das ações governamentais

A cada ano, o Poder Executivo elabora o Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA para o ano seguinte, levando em consideração as orientações dadas por outros dois instrumentos: o Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias ( LDO). O PLOA é enviado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional até 31 de agosto de cada ano.

O que é o PPA? 

Plano que define diretrizes, objetivos e metas para um período de quatro anos a partir do segundo ano de governo de cada Presidente da República. Neste ano, o governo federal elaborou o PPA que vai vigorar de 2024 a 2027.

O que é a LDO? 

Lei que define metas e prioridades para a administração pública federal, estabelece diretrizes de política fiscal e respectivas metas e orienta a elaboração da LOA. A LDO também trata das alterações na legislação tributária e estabelece a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

O Congresso Nacional examina o PLOA no âmbito da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, em seguida, o PLOA vai ao plenário para apreciação de todos os parlamentares, que podem propor emendas ao projeto.

Após discussão no plenário, o Congresso Nacional aprova o PLOA e o devolve ao Poder Executivo para ser sancionado pelo Presidente da República e publicado no Diário Oficial da União, transformando-se na Lei Orçamentária Anual ( LOA).

Aprovado o PLOA, as despesas previstas no Orçamento Público começam a ser realizadas no Sistema de Planejamento e Orçamento Federal e ao longo da execução do orçamento, tanto receitas como despesas costumam ser revistas em relatórios bimestrais, um outro documento do processo orçamentário anual. 

Caso as receitas sejam menores que o planeado, por exemplo, as despesas devem ser ajustadas por meio do chamado contingenciamento. Além disso, caso seja necessário autorizar a realização de despesas não fixadas na LOA ou que foram fixadas em valor insuficiente, a LOA pode ser alterada por meio da aprovação de créditos adicionais.

O controle sobre a execução da LOA é feito pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo Congresso Nacional com auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU).  De acordo com a Constituição Federal, o Presidente da República precisa prestar ao Congresso Nacional.

Projeto de Lei Orçamentária 2024 e investimentos em segurança pública

O Projeto de Lei Orçamentária, enviado em 2022, pelo presidente Jair Bolsonaro  previa R$  18.856.050.310 para o Ministério da Justiça. Após apreciação dos parlamentares, este valor saltou para R$ 19.494.527.281

Já o projeto enviado ao Congresso, em 2023, – Volume IV – Tomo I – a partir da pág 159 – estima em R$  20.417.124.563 o valor destinado ao Ministério da Justiça. De acordo com estes dados,uma comparação de valores totais destinados, torna evidente que o orçamento previsto no projeto de lei enviado pelo presidente Lula é maior do que o do ano  anterior, sob o outro governo.

Fonte: PLOA 2024 – Volume IV – Tomo I

De acordo com a Gazeta do Povo, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teria destinado mais de R$ 2 bilhões para segurança pública em 2023, e a previsão para 2024 seria de R$ 1.536 bilhão – uma redução de R$ 708 milhões. A Gazeta não se refere ao valor total destinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, mas a programas e ações específicas do governo anterior. Entretanto, com o novo governo, programas foram remanejados, desmembrados ou reestruturados para se adequar aos objetivos do atual governo.

Por exemplo, em 2022, foram destinados pelo Projeto de Lei Orçamentária, R$ 3.254.745.983 ao Programa “Segurança Pública, Combate ao Crime Organizado e ao Crime Violento”. Após apreciação na Câmara dos Deputados, este valor saltou para R$ 4.508.709.860. Já no Projeto de Lei Orçamentária deste ano, o orçamento previsto é de R$ 3.858.877.189, ou seja, valor superior ao enviado pelo projeto anterior. Com o novo governo, o programa tem o novo nome de Segurança Pública com Cidadania e o orçamento também está sob discussão na Câmara.

Fonte: PLOA 2024 – Volume IV – Tomo I

Em outra matéria, a Gazeta do Povo publicou o posicionamento de alguns deputados federais, todos do Partido Liberal, de oposição, que criticam os supostos cortes no orçamento referentes à segurança pública e fazem ataques ao governo federal. Não foram consultados deputados da base governista, especialistas em segurança pública ou integrantes do governo federal.

Bereia levantou que nenhum grande jornal ou portal de notícias credenciado abordou a proposta orçamentária pela ótica dos supostos cortes na segurança pública. Temas como Bolsa Família, Programa de Aceleração de Investimentos, transparência nos gastos, previsão de receitas, emendas parlamentares, salário mínimo e reajustes de servidores foram amplamente noticiados e debatidos, como nos exemplos reproduzidos a seguir.

Fonte: Portal G1, em 31 ago 2023

Fonte: SBT, em 1 set 2023

Fonte: Valor Econômico, em 6 set 2023

Fonte: Jornal Estado de São Paulo, em 1 set 2023

De outro lado, Bereia levantou que os únicos veículos de comunicação a tratarem do tema dos supostos cortes na segurança pública no orçamento 2024 do governo federal foram o portal R7, a Gazeta do Povo, a Revista Oeste e pequenos sites de notícias, todos alinhados à abordagens de oposição ao atual governo.

Bereia buscou a avaliação de  especialistas em orçamento público e na área de segurança pública, porém ainda não obteve resposta. Esta matéria será atualizada no momento que o retorno destas fontes ocorrer. 

Sobre a Gazeta do Povo, compartilhada por Dallagnol

A Gazeta do Povo completou 104 anos de funcionamento em 2023. Em 2017, toda a operação do jornal passou para o formato digital. Por muitos anos, a Gazeta do Povo esteve entre os dez maiores jornais em circulação no Brasil. 

O jornal, sediado em Curitiba (PR), tem como foco produzir matérias sobre o meio político, economia e negócios, além da cobertura de outros assuntos. Figuram como colunistas, além de Dallagnol, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), o senador Sérgio Moro (União Brasil – PR) e o jornalista Alexandre Garcia, dentre outros personagens do espectro político à direita. 

Em 2020, uma informação técnica, elaborada por consultores legislativos, disponível no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito das Fake News, que atuou de 2019 a 2020 e foi encerrada (DOC 074, p. 524), incluiu a Gazeta do Povo como um site de “comportamento desinformativo”. Este relatório foi elaborado para subsidiar os trabalhos da CPMI, que investigou os ataques cibernéticos e o uso de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições de 2018.

Alguns sites que foram incluídos na lista de propagadores de desinformação criticaram a metodologia utilizada e contestaram as informações,  o que também está disponível no relatório final da CPMI, acessado pelo Bereia. O jornal Gazeta do Povo recorreu da classificação que lhe foi atribuída (o que também consta no relatório) e os consultores realizaram  a revisão desses conteúdos. e  concluíram que a inclusão do jornal Gazeta do Povo na categoria “canais com comportamento desinformativo” foi equivocada.

No entanto, o jornal continua sendo fonte de muito conteúdo desinformativo, conforme os dados de agências e projetos de checagem, entre eles o próprio Bereia. Das 418 verificações que publicou desde 2019, quando foi criado, Bereia checou 33 conteúdos veiculados pela Gazeta do Povo, o equivalente  a mais de 7% de suas checagens.

Um estudo, realizado em abril deste 2023, no Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao qual o Bereia teve acesso, buscou identificar como o Projeto de Lei das Fake News (PL 2630/2020) estava sendo alvo de desinformação em diferentes plataformas. Um dos destaques na propagação de tais conteúdos, de acordo com a pesquisa, eram as publicações de sites de desinformação, como o Jornal da Cidade Online e Revista Oeste, e veículos hiper partidários, como a Jovem Pan e a Gazeta do Povo.

 Em entrevista sobre a pesquisa à Agência Pública, a professora da UFRJ Rose Marie Santini afirmou: “Eles são a fonte paralela da extrema direita. Não basta negar o que está sendo dito, você tem que colocar alguma coisa no lugar. Esses veículos têm esse papel fundamental de ir alinhando a narrativa e criando uma narrativa comum em todo esse campo da extrema direita ou de oposição do atual governo”, finaliza. O estudo aponta que veículos como esses são muito presentes no Facebook”. 

De acordo com pesquisas de Camila Quesada Tavares, em um contexto marcado pela polarização e radicalização do discurso, que se instalou no Brasil após o resultado das eleições de 2014, a Gazeta do Povo, viu a oportunidade de se colocar como o veículo dos conservadores brasileiros. Migrou sua operação para o digital baseado no modelo de negócios focado nas assinaturas digitais e não na publicidade, tendo como foco a abrangência nacional.

Para chamar a atenção deste novo nicho de audiência, a Gazeta do Povo, segundo a pesquisadora, fez um realinhamento editorial na direção do conservadorismo neoliberal, que rejeita políticas públicas de mobilidade social fortemente antipetista. EStas pesquisas mostram que o jornal tem, desta forma, exposto sua visão quanto ao papel do Estado na sociedade (liberal na economia e conversador nos costumes), quanto à forma da constituição familiar (centrado na relação entre homem e mulher) e a temas éticos e morais como o aborto (são “a favor da vida”).

*****

De acordo com a verificação do Bereia, a matéria publicada pela Gazeta do Povo e compartilhada por Deltan Dallagnol desinforma porque  é imprecisa. O valor da proposta de orçamento enviada pelo Governo ao Congresso, destinado ao Ministério da Justiça, é maior que 2023, o que é  omitido pela matéria da Gazeta do Povo na comparação que faz entre o atual governo e o anterior para criticar suposta redução em segurança pública. 

O texto não explica que cada ministério do governo federal tem diversos programas e ações,  a fim de concretizar políticas públicas. É fato que o orçamento para este programa específico aparenta redução se comparado com  o governo anterior que tinha o ministério organizado em outro formato. O Ministério da Justiça dispõe de diversos instrumentos e programas de combate à criminalidade, e apenas um dos programas foi citado pela Gazeta do Povo. Bereia verificou que o valor total do Ministério é superior e busca atender aos demais programas da pasta. Desta maneira, o orçamento é remanejado e readequado para o melhor aproveitamento dentro do total dos recursos disponíveis. 

O texto também omite que toda proposta orçamentária é submetida ao Congresso Nacional, de forma que discussões e alterações já são previstas no ato da apresentação, diante da apresentação de emendas e votação da proposta final. 

Bereia alerta leitores e leitoras para o uso de imprecisões com a intenção de desinformar e confundir para promover campanha política em torno de temas que provocam insegurança e medo na população. O papel da oposição é importante em uma democracia, com pressões e críticas, mas estas devem ser fundamentadas em informações precisas e dignas.

Referências de checagem:

Câmara dos Deputados https://www.camara.leg.br/noticias/962585-tse-declara-perda-de-mandato-do-deputado-deltan-dallagnol/ Acesso em 14 SET 2023

Governo Federal https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/orcamentos-anuais/2024  Acesso em 14 SET 2023

Senado https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/08/31/orcamento-de-2024-com-sm-de-r-1-421-e-prioridade-para-saude-educacao-e-moradia-chega-ao-congresso Acesso em 14 SET 2023

https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2292 Acesso em 17 SET 2023

https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2292&tp=4 Acesso em 17 SET 2023

Ministério do Planejamento  https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento Acesso em 17 SET 2023

Portal R7 https://www.google.com/amp/s/noticias.r7.com/brasilia/governo-corta-r-708-milhoes-da-verba-para-combate-a-criminalidade-no-orcamento-2024-09092023%3famp Acesso em 14 SET 2023

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/sonar-a-escuta-das-redes/post/relatorio-de-cpmi-classifica-jornal-gazeta-do-povo-como-disseminador-de-fake-news.html

Acesso em 15 SET 2023

G1 https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/08/31/orcamento-2024-governo-propoe-r-376-bilhoes-para-emendas-parlamentares.ghtml Acesso em 15 SET 2023

Nexo Jornal

https://www.nexojornal.com.br/externo/2023/04/25/A-campanha-bolsonarista-contra-o-PL-das-fake-news1 Acesso em 15 SET 2023

UOL Notícias

https://noticias.uol.com.br/colunas/constanca-rezende/2020/06/04/cpmi-inclui-jornal-tradicional-como-fake-news-e-veiculo-repudia.htm Acesso em 17 SET 2023

TSE

https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/28000061 4517/proposta_1534284632231.pdf Acesso em 17 SET 2023

CNN Brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/forum-opiniao/a-inseguranca-publica-de-bolsonaro/ Acesso em 17 SET 2023

Fórum de Segurança Pública

https://fontesegura.forumseguranca.org.br/seguranca-publica-no-governo-bolsonaro-alguns-apontamentos/ Acesso em 17 SET 2023

Ministério da Justiça 

https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas Acesso em 17 SET 2023

NetLab

https://drive.google.com/file/d/16sMeNcbrtmzfP5illHFFn3CTd0fjbcJf/view Acesso em 18 SET 2023

Agência Públicahttps://apublica.org/2023/04/bolsonaristas-planejaram-nas-redes-um-movimento-de-boicote-a-pl-das-fake-news/ Acesso em 18 SET 2023

Youtube https://youtu.be/mUvrsrvnCdQ Acesso em 22 set 2023

Foto de capa: Bruno Spada/Agência Câmara