Olimpíadas Paris 2024: Polêmicas sobre religião envolvem surfista brasileiro e cerimônia de abertura

Duas situações que envolvem a religião cristã agitaram as mídias digitais nos primeiros dias das Olimpíadas de Paris 2024: a proibição da imagem do Cristo Redentor na prancha do surfista brasileiro João Chianca, conhecido como Chumbinho, e supostas referências à Última Ceia de Jesus durante a cerimônia de abertura. O Comitê Olímpico Internacional (COI) vetou o uso da imagem religiosa pelo atleta,  citou a regra de neutralidade dos Jogos.

Já a performance na abertura, descrita por várias pessoas como uma representação da Última Ceia de Cristo “com deboche”, protagonizada por artistas LGBTQIA+, foi negada pelos organizadores como inspiração religiosa. Os casos repercutiram amplamente, e receberam cobertura tanto da grande imprensa quanto de veículos alternativos políticos e religiosos, tendo provocado debates acalorados nas mídias digitais.

O caso do Cristo nas pranchas: intolerância?

O portal evangélico Pleno News publicou, em 27 de julho, matéria sobre a proibição imposta ao surfista brasileiro João Chianca de usar a imagem do Cristo Redentor em pranchas  durante os Jogos Olímpicos de Paris. Com o título “Olimpíadas: Surfista brasileiro é proibido de usar pintura do Cristo”, a publicação afirma que o Comitê Olímpico Internacional (COI) vetou o uso de imagens religiosas por atletas na competição.

A decisão de proibir a pintura da imagem do Cristo Redentor nas pranchas de João Chianca foi interpretada como uma tentativa de restringir a expressão pessoal e a identidade cultural e religiosa do atleta. 

Imagem: Reprodução Pleno News

A reportagem destaca mensagens de apoio ao surfista que denunciam que ocorreu “intolerância religiosa”. Um usuário das redes sociais afirmou: “Quanta injustiça, intolerância religiosa e hipocrisia da França e dos jogos olímpicos! Não pode prancha com Jesus, mas pode demonizar a santa ceia!” 

Ainda que o portal evangélico tenha relatado que Chianca, em página pessoal do Instagram, tenha explicado que a pintura não foi autorizada devido à natureza religiosa da imagem do Cristo, o que fere as regras estritas dos Jogos Olímpicos quanto à neutralidade, a ênfase foi outra. O Pleno News destacou no título da matéria a ideia genérica de “proibição”, que remete  a intolerância religiosa,  e colocou em evidência as reações dos apoiadores de Chianca.

Imagem: Reprodução: Instagram/Stories de João Chianca, 27 jul 2024

Bereia observou que publicações como a do Pleno News contribuíram para a disseminação de informações que levaram diversos perfis em mídias sociais a atribuírem o caso a uma suposta perseguição a cristãos. 

Imagem: Reprodução Facebook

A polêmica sobre a cerimônia de abertura das Olimpíadas 2024 

Os Jogos Olímpicos Paris 2024 também foram alvo de outra polêmica, relacionada à cerimônia de abertura da competição, em 26 de julho. Durante o segmento intitulado “Festividade”, um grupo de artistas franceses, entre eles drag queens e a DJ Barbara Butch, apareceu por trás de uma longa mesa, em uma composição que foi identificada como uma paródia da “Última Ceia de Cristo” por usuários das mídias digitais. 

Imagem: Reprodução X

Políticos brasileiros ligados à direita e à esquerda reforçaram esta abordagem em páginas pessoais no X. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que “com Deus não se brinca”; o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) classificou a cerimônia de abertura de “zombaria demoníaca da fé cristã.”; o vereador de São Paulo Rubinho Nunes (PL-SP) como “profanação da Santa Ceia” e afirmou que é uma ação de “classe de minorias que querem pautar a sociedade”. O senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) também comentou sobre a cerimônia e afirmou que a única “bola fora” foi a interpretação da Santa Ceia.

Imagem: Reprodução X em 27 de julho de 2024

Veículos de esquerda, como o Diário do Centro do Mundo, publicaram conteúdo crítico aos comentários de políticos da direita, e se referiram à encenação como  “representação da Santa Ceia” e como “show de diversidade”, com protagonismo de “artistas imigrantes, negros, transsexuais, homossexuais e drags”. A revista Fórum, também alinhada à esquerda, descreveu o trecho como “uma representação queer do quadro ‘A Última Ceia’ de Leonardo da Vinci”.

Imagem: Reprodução Diário do Centro do Mundo

Imagem: Reprodução Revista Fórum

Veículos alinhados à direita  também se referiram  à apresentação francesa como uma representação da pintura de Da Vinci. O Pleno News afirmou que se tratou de uma “referência da Última Ceia de Jesus sendo representada por drags queens”. Já a Revista Oeste reportou que a performance “gerou críticas de religiosos em todo o mundo”, e mencionou-a como uma “paródia da Última Ceia”.

Imagem: Reprodução Pleno News

Imagem: Reprodução Revista Oeste

O BZN Notícias relatou que os Jogos Olímpicos de 2024 serão lembrados por apresentarem a pior cerimônia de abertura da história, e a descreveu  como afronta aos cristãos, tendo relacionado ao ocorrido com o caso do surfista João Chianca. Um trecho da matéria diz:

“O mundo cristão ficou indignado com a profanação da Santa Ceia na cerimônia de abertura da Olimpíada 2024, em Paris. Tripudiou do profundo sentimento do cristianismo, que simboliza a comunhão com o corpo e o sangue de Jesus Cristo, a antecipação do seu calvário. Aí vem o Comitê Olímpico Internacional obrigar ao surfista brasileiro João Chianca – Chumbinho – a apagar a imagem do Cristo Redentor das suas pranchas (…)”. 

Imagem: Reprodução: BZN Notícias

Na França, esta parte da cerimônia de abertura das Olimpíadas gerou uma forte reação negativa entre políticos de direita. Muitos condenaram a apresentação, considerando-a desrespeitosa às tradições religiosas e aos valores cristãos. A crítica destacou a paródia como um exemplo de insensibilidade cultural e provocação desnecessária, evidenciando uma preocupação com a preservação dos símbolos e tradições religiosas no espaço público.

A política de direita Marion Maréchal, em um post no X, afirmou: “Para todos os cristãos do mundo que estão assistindo à cerimônia #Paris2024 e se sentiram insultados por esta paródia drag queen da Última Ceia, saibam que não é a França que está falando, mas uma minoria de esquerda pronta para qualquer provocação.” 

Já a Igreja Católica na França criticou a performance, por meio de declaração oficial da Conferência dos Bispos Franceses que continha a frase: “Infelizmente, esta cerimônia apresentou cenas de escárnio e zombaria do Cristianismo, que deploramos profundamente.”

Regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) sobre manifestações religiosas 

O Comitê Olímpico Internacional (COI) é a entidade responsável pela coordenação,  supervisão e promoção dos Jogos Olímpicos. A Carta Olímpica, considerada a “Constituição” do Movimento Olímpico, estabelece os princípios fundamentais, regras e diretrizes que regem a organização e o funcionamento dos Jogos, bem como os direitos e obrigações de quem deles participa.

A Regra 50 da Carta Olímpica proíbe qualquer tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial nas instalações olímpicas. Esta norma ganhou destaque após o gesto, feito pelos velocistas estadunidenses dos 200 ms rasos Tommie Smith e John Carlos, nas Olimpíadas do México em 1968, que remeteu ao movimento antirracista dos Panteras Negras .

Imagem: Reprodução Olimpíadas

Em Paris 2024, após a notificação do COI com base na Regra 50, o surfista João Chianca foi obrigado a trocar as pranchas de última hora, antes da estreia nos jogos . O texto da norma ainda enfatiza que qualquer desvio dessas regras pode resultar em sanções, o que inclui desclassificação. O protocolo vale para qualquer atleta e para qualquer manifestação religiosa, política ou racial, o que descarta que o veto à pintura do Cristo Redentor nas pranchas do brasileiro Chianca tenha representado uma perseguição voltada para cristãos, como o próprio surfista explica na publicação que fez no Instagram.

Cerimônia de abertura: referências religiosas?

O diretor artístico da cerimônia, Thomas Jolly, negou que o relato bíblico da Última Ceia de Cristo tenha sido sua inspiração. Ele declarou à rede de televisão BFMTV: “A ideia era fazer um grande festival pagão ligado aos deuses do Olimpo… Olimpismo”.

O Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos (COJO) também afirmou que não houve intenção de desrespeitar grupos religiosos. A diretora de comunicações do COJO Anne Descamps disse em entrevista coletiva: “Nunca houve qualquer intenção de desrespeitar qualquer grupo religioso”. Ela acrescentou que a cerimônia tinha o objetivo de celebrar a comunidade e a tolerância, e expressou arrependimento por qualquer ofensa causada.

Na polêmica sobre a suposta paródia da Santa Ceia, vários veículos da imprensa e perfis nas redes sociais argumentaram que a referência não era apenas para cristãos, mas para obras de arte que tratam de temas religiosos de forma geral. Exemplos citados incluem o quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, e a pintura de Baco, deus grego do vinho. Matérias como as do G1 e BBC News Brasil sugerem que a performance buscava interagir com o mundo da arte religiosa em vez de atacar a fé cristã diretamente.

Imagem: Pintura ‘A Festa dos Deuses’, obra concluída em 1514 pelo italiano Giovanni Bellini

Imagem: Quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci

O criador da performance afirmou que não houve intenção de zombar ou difamar. Ele explicou que seu objetivo era criar uma cerimônia que promovesse a união e a reconciliação das pessoas, ao mesmo tempo que afirmasse os valores de liberdade, igualdade e fraternidade. Thomas Jolly também ressaltou que acreditava que suas intenções eram claras, ao destacar que a figura de Dionísio foi incluída na mesa como uma referência ao Deus da festa e do vinho, e pai de Sequana, deusa associada ao rio Sena. 

Imagens: frames do segmento na cerimônia de abertura das olimpíadas de Paris 2024

Bereia também ouviu, em conjunto, o mestre em Ciências da  Religião Jorge Miklos e a especialista em Psicologia Analítica Daniela Moura Barbosa, que relataram não ser a primeira vez que uma representação artística causa polêmica. Eles mencionam que, em 1989, o carnavalesco Joãosinho Trinta, da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis (RJ), gerou controvérsia ao apresentar Cristo como um mendigo no desfile do enredo intitulado “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”. mesma forma, em 2020, a Escola de Samba Mangueira, no Rio, também provocou polêmica com o enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, que retratou Jesus como uma figura transgênero crucificada. 

Jorge Miklos e Daniela Barbosa acrescentam que “A Última Ceia” é parte dos rituais cristãos até hoje. Eles recordam que vários artistas clássicos renomados pintaram versões do relato bíblico da Última Ceia além de Leonardo da Vinci, como Andrea del Castagno (1447), Domenico Ghirlandaio (1480), Pietro Perugino (1493-1496) e Salvador Dalí (1955), que apresentou uma versão surrealista chamada “O Sacramento da Última Ceia”.  “Os símbolos circulam no imaginário cultural, carregando significados profundos que transcendem épocas e lugares. Ao longo do tempo, esses símbolos são ressignificados, ganhando novos sentidos conforme são reinterpretados por diferentes culturas e contextos históricos”, explicaram os especialistas.

Os estudiosos observam que “a percepção de blasfêmia em relação à performance artística das Olimpíadas de 2024 pode ser vista como resultado de um fundamentalismo cultural e religioso que literaliza os símbolos e ignora sua dinâmica evolutiva. Fundamentalismos tendem a fixar os significados simbólicos de forma rígida, não reconhecendo que os símbolos culturais são fluidos e sujeitos a ressignificações”, dizem Miklos e Barbosa.

“Assim como a pintura ‘A Última Ceia’ pode ser uma ressignificação cultural, a performance olímpica ressignificou a ‘Última Ceia’, adaptando seu simbolismo a um novo contexto contemporâneo”, explicam Miklos e Barbosa. Eles também ressaltam que a falta de imaginação e de compreensão sobre o que os símbolos representam impedem a percepção. “Este comportamento é recorrente entre muitos religiosos que ainda interpretam os textos bíblicos de forma nítida, sem reconhecer seu caráter metafórico”, afirmam.

Nesse sentido, Bereia também ouviu o doutor em Ciências da Religião, biblista, professor e pesquisador da Universidade Metodista de São Paulo Marcelo Carneiro, que menciona dois aspectos que movem esta reação da parte de pessoas e grupos: “ênfase atual na pauta moral, vendo tudo que tem relação com a cultura LGBTQI+ como uma ameaça; e uma visão de mundo dualista e maniqueísta, transformando o diferente no inimigo. É o nós e os outros de Sartre [filósofo francês]”. 

Marcelo Carneiro afirma que por trás das publicações está uma evidente homofobia e transfobia. “Os grupos religiosos estão agindo de maneira violenta contra pessoas homoafetivas, alegando que são captores da sociedade, da estrutura familiar tradicional, e se apegam ao texto bíblico para condenar o comportamento delas”. 

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Bereia alerta leitores e leitoras que verifiquem o contexto antes de compartilhar notícias que tendem a ser uma exploração temática desinformativa, especialmente no que diz respeito a eventos polêmicos. Este é o caso do veto à pintura do Cristo Redentor em pranchas de surf nas Olimpíadas de 2024 (que não foi uma proibição persecutória) e o da representação de pinturas que remetem a relatos religiosos, na abertura dos jogos.

A ideia de perseguição a cristãos vem sendo explorada politicamente em ambientes digitais religiosos no Brasil, especialmente em períodos eleitorais, para disseminação de pânico social e captura de apoios. Leitores e leitoras devem estar atentos a esta prática e verificar a veracidade de publicações antes de qualquer compartilhamento. 

Referências de checagens:

Band. https://www.band.uol.com.br/noticias/protestos-e-religiao-o-que-e-proibido-nos-jogos-olimpicos-202407301340. Acesso em 30 de julho de 2024.

Brasil de Fato. https://www.brasildefatope.com.br/2017/11/30/ha-49-anos-o-podio-mais-emblematico-das-olimpiadas. Acesso em 30 de julho de 2024.

 g1. https://g1.globo.com/mundo/olimpiadas/paris-2024/noticia/2024/07/28/diretor-da-cerimonia-de-abertura-dos-jogos-de-paris-nega-ter-zombado-da-ultima-ceia.ghtml.. Acesso em 30 de julho de 2024.

Globo Esporte. https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/07/11/com-maioria-feminina-delegacao-do-brasil-tera-277-atletas-nas-olimpiadas-de-paris.ghtml. Acesso em 30 de julho de 2024.

O Globo. https://oglobo.globo.com/tudo-sobre/evento-esportivo/paris-2024/. Acesso em 29 de julho de 2024.

Olympics.

https://olympics.com/ioc/olympic-charter#. Acesso em 30 de julho de 2024.

https://olympics.com/pt/noticias/brasil-dia-3-surfe-jogos-olimpicos-paris-2024. Acesso em 29 de julho de 2024.

Poder 360. https://www.poder360.com.br/olimpiadas/comite-olimpico-internacional-celebra-130-anos-em-2024/. Acesso em 30 de julho de 2024.

Mídia Ninja. https://midianinja.org/paris-2024-protestos-e-a-regra-50-da-carta-olimpica-o-que-esperar/. Acesso em 30 de julho de 2024.

Wikipédia.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Comit%C3%A9_Ol%C3%ADmpico_Internacional. Acesso em 29 de julho de 2024. 

Coletivo Bereia. https://coletivobereia.com.br/a-mentira-que-nao-quer-calar-sobre-perseguicao-a-cristaos-no-brasil/. Acesso em 1 de Agosto de 2024.

Artigo Quinto. https://www.politize.com.br/artigo-quinto/liberdade-religiosa/. Acesso em 1 de Agosto de 2024.

G1. https://g1.globo.com/mundo/olimpiadas/paris-2024/noticia/2024/07/27/olimpiadas-igreja-catolica-francesa-chama-parodia-da-ultima-ceia-de-escarnio-na-franca-as-pessoas-sao-livres-diz-diretor.ghtml. Acesso em 1 de Agosto de 2024.

BBC News Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/olimpiadas/organizacao-de-paris-2024-se-desculpam-por-suposta-parodia-de-a-ultima-ceia/.  Acesso em 1 de Agosto de 2024.

BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgervy94eq0o.   Acesso em 1 de Agosto de 2024.

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Foto de capa: print do YouTube

“Narcopentecostalismo”? Imprensa propaga discurso enganoso ao associar pentecostalismo e tráfico de drogas

Notícias sobre igrejas católicas fechadas, a mando de grupos de traficantes na zona norte do Rio de Janeiro, circularam em veículos de imprensa, entre 6 e 8 de julho passado. Os templos fechados teriam sido os das paróquias de Santa Edwiges e de Santa Cecília, no bairro Brás de Pina, e o de Nossa Senhora da Conceição e Justino, no bairro Parada de Lucas.

De acordo com o que circulou na imprensa, a ordem de fechamento teria partido de Álvaro Malaquias Santa Rosa, narcotraficante conhecido como “Peixão”. Algumas mídias usam termos como “traficantes evangélicos” ou “narcopentecostalismo”, expressões criticadas por especialistas. Bereia checou o uso dos termos. 

Imagem: reprodução DCM

Notícia do fechamento de igrejas católicas 

Conforme divulgado, em 6 de julho, por veículos como o portal G1 e O Dia, três igrejas católicas, em bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro, teriam fechado as portas após ameaças do traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como “Peixão”. Segundo as notícias, denúncias dos moradores indicam que homens armados foram até os templos para forçar o fechamento, e que atividades religiosas foram, de fato, canceladas. 

Além disso, os jornais divulgaram que publicações, que avisavam sobre o fechamento e a suspensão de algumas atividades, foram feitas pela Paróquia Nossa Senhora da Conceição e São Justino, em Parada de Lucas, pela Paróquia Santa Edwiges e pela Paróquia Santa Cecília, ambas em Brás de Pina, e excluídas posteriormente. Após consulta nos perfis de redes digitais das paróquias, Bereia não encontrou as imagens divulgadas. Alguns sites, porém, dizem que as postagens foram tiradas do ar. 

A Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, em nota, informou que as igrejas estavam abertas e com a segurança reforçada pela Polícia Militar. Já a Arquidiocese Católica do Rio afirmou que os templos permaneciam abertos, conforme publicado pelos portais de notícia. O jornal O Globo também noticiou que a Polícia Civil investiga se o fechamento das igrejas foi decorrente de uma ordem do chefe do tráfico.

Imagem: reprodução O Globo

Propagação de discurso enganoso

O jornal DCM, publicou, ainda, em 6 de julho, uma notícia sobre o caso com o título: “Traficante evangélico força fechamento de igrejas católicas no RJ, diz irmandade”. O texto afirma que a denúncia partiu da irmandade das paróquias afetadas, e que a Arquidiocese do Rio informou que as igrejas se mantiveram abertas, apesar das restrições impostas. A matéria registrou também que a facção criminosa comandada por Peixão “opera sob fundamentos evangélicos”.    

Já o portal Metrópoles, apresentou Peixão como chefão do tráfico e evangélico, em texto publicado em 7 de julho. O site de notícias também publicou a nota enviada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro sobre o caso, e destacou que o órgão ressaltou que a “informação surgiu de boatos em redes sociais”. 

Imagem: reprodução Metrópoles

Com o destaque “Traficantes Evangélicos”, a Revista Fórum usou o título “‘Narcopentecostalismo’: Católicos são ameaçados no Complexo de Israel” para propagar o caso, afirmou que “bandidos são adeptos de uma seita pentecostal”, e se referiu a “Peixão” como “narco-pastor”. O texto publicado, em 8 de julho, também traz a opinião de pesquisadores da religião e destaca, entre outros aspectos, o alerta para o uso sensacionalista e incorreto do termo “narcopentecostalismo”, escolhido pelo veículo para o título.  

Imagem: reprodução Fórum

Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão” 

De acordo com a cientista da religião Viviane Costa, autora do livro “Traficantes Evangélicos: quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus” (Ed. Thomas Nelson, 2023), o apelido do chefe do tráfico em questão, “Peixão”, refere-se ao símbolo do Cristianismo do primeiro século, um peixe. Ela explica que o que se sabe sobre Álvaro Malaquias Santa Rosa é o que se vê na mídia, com base em denúncias divulgadas pela polícia e o que circula na própria comunidade onde Santa Rosa cresceu e lidera o tráfico de drogas. Para Costa, “Peixão” é um homem inteligente e estrategista.

Em entrevista à Ponte Jornalismo, em 2023, a pesquisadora afirmou que Álvaro Malaquias “é um homem devoto, que tem uma prática constante de recorrer a Deus pedindo direcionamento para estratégias de guerra, proteção em casos de confronto, que recebe profecias de vitória e as torna pública, que faz orações para que haja segurança nos espaços e que recebe de Deus direcionamentos para avançar, para recuar e para a administração da própria comunidade”.

Imagem: g1

Viviane Costa esclareceu que, segundo informações da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Álvaro Malaquias é um pastor ordenado numa igreja pentecostal em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e à época fazia parte de uma igreja pentecostal em Parada de Lucas, uma das favelas do Complexo de Israel.

Sobre o Complexo de Israel, Costa explica que Álvaro Malaquias “se identifica como evangélico e estrutura as práticas, as dinâmicas, as estratégias, a ética, a estética, a partir dessa experiência religiosa com características de novos movimentos pentecostais”. A pesquisadora  aponta que “Peixão” acredita que Deus o direcionou para livrar a Cidade Alta do Comando Vermelho, facção rival a sua. 

O Complexo de Israel e a Tropa de Arão

O conjunto de cinco comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro, dominado pela facção criminosa Terceiro Comando Puro (TCP), a partir de 2020, durante a pandemia de covid-19, foi denominado Complexo de Israel pelo próprio “Peixão”. A última expansão territorial da facção havia sido em 2016, para incluir a comunidade Cidade Alta. As cinco comunidades que compõem o complexo atualmente são, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas. 

Imagem: g1

Conforme apresentado pela BBC News Brasil, em 2023, a estrela de Davi pode ser encontrada em muros ou bandeiras, nas entradas das comunidades. Na Cidade Alta, o símbolo judaico fica iluminado sobre uma caixa d’água. Outra associação a passagens bíblicas do Antigo Testamento, é a nomenclatura dada ao grupo liderado por Santa Rosa, Tropa de Arão. Arão foi o primeiro líder dos sacerdotes hebreus e irmão de Moisés. 

Imagem: g1

A reportagem da BBC News Brasil aborda, no entanto, que se baseia em estudos da pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Christina Vital para dizer que as “ligações entre o tráfico e o pentecostalismo” existem há quase três décadas. O texto ressalta que a influência de outras religiões sobre organizações criminosas já existiu em outros períodos, portanto, não é exclusividade de evangélicos. Já em relação ao tráfico de drogas com as favelas do Rio de Janeiro, é fato antigo. 

Visão de especialistas sobre os termos adotados pela imprensa

A doutora em Ciências Sociais e pioneira no estudo sobre a relação entre lideranças do tráfico de drogas e igrejas evangélicas nas periferias do Rio de Janeiro Christina Vital afirmou, em entrevista ao Bereia, que não existem dados que comprovem a existência de narcopentecostalismo ou narcorreligião no Brasil hoje. “Vemos pessoas que estão no crime e se aproximam de religiões, não só evangélicas, mas com isso não podemos dizer que há uma teologia criminal específica, que haja uma igreja de traficantes, para traficantes, propagando valores criminosos, violentos e o uso de drogas  à luz da Bíblia ou de qualquer livro sagrado”, explica.

Quanto ao uso dos termos, Vital foi enfática ao alertar para a desinformação carregada por eles. “Estes termos atendem mais a um anseio sensacionalista de uma mídia e de pesquisadores mal-intencionados ou não tão bem informados”, pontua. 

Da mesma forma, em artigo intitulado “Há de fato um ‘narcopentecostalismo’ e ‘traficantes evangélicos’?”, o doutor em sociologia Diogo Corrêa aponta que com o surgimento do Complexo de Israel, a relação entre crime e religião evangélica-pentecostal alcançou uma “nova ‘onda’ de visibilidade”, e com isso os termos têm sido usados pela imprensa para definir o fenômeno. 

No entanto, Corrêa apresenta elementos baseados em sua pesquisa etnográfica na Cidade de Deus (zona oeste do Rio), que resultou no livro “Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus”, que o fazem discordar do uso dos termos “narcopentecostalismo” e “traficantes evangélicos”.

Corrêa explica que se trata de um fenômeno de transformação mútua, no pentecostalismo e no tráfico de drogas, que não significou uma fusão entre ambos, e que tal fenômeno teria produzido uma complexa relação entre coabitação e alternância.  Segundo o autor, moradores, traficantes e crentes são capazes de diferenciar o que é um traficante e o que é um crente.

“Categorias como “traficante evangélico”, “narcopentecostalismo” ou “narcoreligião” não são somente incorretas, como caem no problema ético de sugerir que tráfico e religião ou pentecostalismo se fundiram, tornando-se uma coisa só. “[Estes termos] não descrevem de forma adequada a experiência dos próprios evangélicos – e nem dos traficantes aderentes à cultura pentecostal -, além de incorrerem no risco de sugerir, de forma equivocada, a existência de uma espécie de religião do e para o crime”, indica.  

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Bereia  classifica o uso dos termos “narcopentecostalismo”, “narcopastor” e “traficantes evangélicos”, por veículos de imprensa, como ENGANOSO.  Pesquisadores, com diferentes abordagens sobre a dinâmica das comunidades com a presença de igrejas evangélicas e tráfico de drogas, indicam que há uma coabitação entre estes dois grupos, e que ambos os universos, do pentecostalismo e do tráfico de drogas, sofreram alterações culturais em decorrência do contexto em que coexistem. 

Não há dados empíricos que comprovem a existência de uma religião fundamentada na ação criminosa ou de ações criminosas fundamentadas em ensinamentos religiosos, de maneira a conceber uma nova crença ou doutrina que consolide ambos os universos em um. 

O que é possível comprovar, é a existência de líderes do tráfico de drogas que se identificam como evangélicos, assim como de igrejas nas favelas que se adaptam para existir por conta da dinâmica do tráfico. Portanto, o uso da expressão “narcopentecostalismo”, e outros termos derivados, é incorreto, carregado de sensacionalismo e produz desinformação, pelo teor distorcido que instiga julgamentos negativos sobre um grupo religioso. Neste caso, é o segmento cristão evangélico, em frequente protagonismo na cena pública, que se torna alvo de desinformação, elaborada sob tratamento generalizado (“pentecostais”, “evangélicos”), elementos que alimentam intolerância. 

Referências da checagem:

O Dia https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/07/6877579-trafico-ordena-fechamento-de-igrejas-catolicas-no-complexo-de-israel-aponta-denuncia.html Acesso em: 11 jul 2024

g1

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/07/06/igrejas-catolicas-fecham-as-portas-no-complexo-de-israel.ghtml Acesso em: 11 jul 2024

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/08/14/policia-investiga-acao-do-bonde-de-jesus-contra-terreiros-de-religioes-de-matriz-africana-no-rj.ghtml Acesso em: 11 jul 2024

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-complexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml Acesso em: 12 jul 2024

O Globo

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/07/06/policia-civil-investiga-se-traficante-ordenou-fechamento-de-igrejas-catolicas-em-bras-de-pina-na-zona-norte.ghtml Acesso em: 11 jul 2024

https://oglobo.globo.com/rio/policiais-civis-sao-presos-acusados-de-extorsao-7063003 Acesso em: 15 jul 2024

RBA

https://www.33rba.abant.org.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1597#:~:text=De%20acordo%20com%20a%20narrativa,em%20parceria%20com%20grupos%20milicianos Acesso em: 12 jul 2024

Instagram

https://www.instagram.com/conceicaodelucas/ Acesso em: 13 jul 2024

https://www.instagram.com/p/C50nPcUuTDL/?img_index=1 Acesso em: 13 jul 2024

EXTRA https://extra.globo.com/casos-de-policia/policia-civil-publica-mudancas-no-comando-de-delegacias-em-todo-rio-23345258.html Acesso em: 14 jul 2024

O São Gonçalo https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/139820/mais-uma-danca-das-cadeiras-na-policia-civil Acesso em: 14 jul 2024

UOL https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/07/10/quem-e-peixao.htm#:~:text=%C3%81lvaro%20Malaquias%20Santa%20Rosa%2C%20conhecido%20como%20Peix%C3%A3o%20ou%20Alvinho%2C%20%C3%A9,Vig%C3%A1rio%20Geral%20e%20Cidade%20Alta Acesso em: 14 jul 2024

Ponte Jornalismo https://ponte.org/religiao-nunca-esteve-ausente-do-mundo-do-crime-diz-autora-de-traficantes-evangelicos/ Acesso em 14 jul 2024

BBC News Brasil https://www.bbc.com/portuguese/brasil-66097127 Acesso em: 14 jul 2024

Congresso em Foco https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/ha-de-fato-um-narcopentecostalismo-e-traficantes-evangelicos/amp/ Acesso em: 14 jul 2024

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Foto de capa: Divulgação