O que é marxismo cultural e como o termo tem sido usado pelo extremismo de direita

Em outra matéria desta série, o Bereia explicou o termo “woke”, seu contexto de surgimento e como foi ressignificado pelo extremismo de direita, passando a ser usado como rótulo pejorativo.

Agora, voltamos a atenção para outra expressão que segue caminho semelhante: o chamado “marxismo cultural”. Assim como woke, o termo ganhou espaço no Brasil em discursos religiosos e políticos, apresentado como explicação rápida para mudanças sociais vistas como ameaças à família, à fé cristã e à moral.

Apesar de ser associado à tradição marxista ou à Escola de Frankfurt, o conceito não tem base acadêmica: trata-se de uma construção conspiratória surgida em ambientes conservadores do século XX. No Brasil, a expressão tornou-se recorrente em sermões pregados em igrejas, debates públicos e campanhas eleitorais, sendo usada para denunciar desde propostas educacionais até manifestações culturais.

Compreender as origens e o percurso desse termo é essencial para desfazer simplificações e mostrar como ele foi transformado em arma retórica, servindo mais ao extremismo político conservador do que ao esclarecimento dos debates públicos.

A origem do termo marxismo cultural

A expressão “marxismo cultural” não aparece em um texto sequer de Karl Marx ou em qualquer das correntes do pensamento marxista. O pensamento do filósofo alemão foi construído com a noção de que a transformação da sociedade viria da luta entre classes sociais e da apropriação dos meios de produção pelo proletariado. Em nenhum de seus textos há referência a um plano de “revolução cultural” ou de infiltração em instituições culturais. A teoria conspiratória do “marxismo cultural” deturpou a obra de Marx ao atribuir a ele e a seus seguidores uma estratégia jamais defendida por esta corrente de pensamento.

O uso atual desta noção remonta aos Estados Unidos dos anos 1990, quando o escritor Michael Minnicino publicou o artigo New Dark Age: Frankfurt School and ‘Political Correctness’ [A nova idade das trevas: a Escola de Frankfurt e o “politicamente correto”], na revista Fidelio, do Instituto Schiller, ligado ao movimento liderado pelo político estadunidense Lyndon LaRouche, conhecido por discursos conspiratórios. 

O texto acusava intelectuais da chamada Escola de Frankfurt (círculo de estudiosos na Alemanha dos anos 1930, criador da Teoria Crítica da Sociedade, que influenciou amplos estudos sociais, políticos e segue como referência até hoje) de serem responsáveis pelo “politicamente correto” e por mudanças culturais que estariam enfraquecendo os valores ocidentais. 

O termo “politicamente correto” apareceu nos Estados Unidos nos anos 1970, em movimentos de esquerda que buscavam evitar expressões e atitudes ofensivas, como linguagem racista ou sexista. Mais tarde, setores da direita passaram a usar a expressão de forma negativa, tratando-a como sinônimo de censura, ataque à liberdade de expressão e vitimismo.

Michael Minnicino escreveu: “Os homens da Escola de Frankfurt desenvolveram a ideia de que não se poderia mais confiar na classe trabalhadora para promover a revolução. A tarefa, então, era subverter a cultura em todos os seus aspectos — literatura, música, arte, filosofia — de modo a criar uma nova base para a transformação social.”

Apesar do tom de denúncia, não há registro comprobatório de que os professores Theodore Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse tenham proposto um projeto de “subversão cultural” como descrito por Minnicino. A afirmação é parte de uma narrativa conspiratória que depois se consolidou no termo marxismo cultural.

O texto de Minnicino não foi apenas apropriado por pessoas e grupos conservadores e pela extrema direita política, mas nasceu do ambiente criado por LaRouche, já marcado por visões conspiratórias. Anos mais tarde, Minnicino se afastou do grupo e renegou o artigo, afirmando que seu trabalho havia sido “irremediavelmente deformado” pela necessidade de sustentar a “visão de mundo lunática” de LaRouche. 

Ainda assim, a tese lançada naquele texto já havia se disseminado e acabou sendo incorporada por diferentes setores da direita, até chegar à nova direita e à extrema direita atuais. A ideia ganhou força nos EUA quando grupos da direita religiosa e política passaram a falar em “marxismo cultural” para condenar mudanças sociais como o feminismo, a ampliação dos direitos civis e as políticas de diversidade. 

Raízes antigas de uma “Guerra Cultural”

Segundo o cientista político Jérôme Jamin , a noção de “marxismo cultural” deve ser entendida como um mito político que se apoia em tradições conspiratórias mais antigas, como o “bolchevismo cultural” (como sinônimo de comunismo cultural) propagado pelo nazismo, na Alemanha dos anos 1920 e 1930, que criticava os movimentos modernistas nas artes. Líderes nazistas relacionavam a arte moderna ao marxismo revolucionário russo, classificando-a como uma forma de “arte degenerada”. 

Ao chegar ao poder, o regime nazista promoveu censura às obras modernistas e passou a exaltar a chamada “arte nacional”, com temas propagandísticos que apoiavam o governo de Adolf Hitler e exaltavam a supremacia racial ariana. Pesquisadores indicam que o conceito de bolchevismo cultural funcionava como justificativa para reprimir toda produção intelectual e artística que não se alinhava às diretrizes políticas do regime.

Desta maneira, essas teorias da conspiração de um plano contra a “civilização ocidental” reapareceram mais tarde em outras versões, como o marxismo cultural. Elas sempre servem como rótulo conspiratório para simplificar transformações sociais e atribuí-las a um plano deliberado de subversão. O artigo de Michael Minnicino, em 1992, é visto como o ponto de partida da versão contemporânea deste discurso.

Foi nos anos 2000 que autores conservadores nos Estados Unidos, como William S. Lind, passaram a incluir o nome do pensador marxista italiano Antonio Gramsci na noção. Estes autores tomaram de forma distorcida a noção de hegemonia cultural de Gramsci  como se fosse um plano deliberado de infiltração ideológica: 

“O que chamamos hoje de ‘politicamente correto’ é, de fato, o marxismo cultural: uma tradução de Marx da economia para a cultura, que busca derrubar a civilização ocidental a partir de dentro”, escreve Willian Lind. 

Entretanto, Gramsci desenvolveu o conceito de hegemonia cultural e destacou como as classes dominantes mantêm o poder não só pela economia e pela política, mas também por meio de instituições como a escola, a igreja e a imprensa.

Seu objetivo era compreender como a cultura reforça estruturas de poder. Na versão conspiratória, essa reflexão foi distorcida e apresentada como se fosse um plano secreto da esquerda para controlar a sociedade.

“Marxismo Cultural” no Brasil

No Brasil, a expressão “marxismo cultural” ganhou popularidade sobretudo a partir dos anos 2000, com a atuação do influenciador ultraconservador católico  Olavo de Carvalho. Na linha dos estadunidenses em livros, aulas e vídeos, Carvalho apontava a Escola de Frankfurt e o pensamento de Antonio Gramsci como responsáveis por uma suposta infiltração ideológica em universidades, nas artes e nos meios de comunicação. 

Para ele, esse “plano” visava corromper valores cristãos e dissolver a família tradicional. Essa leitura passou a estruturar a ideia de uma “guerra cultural”, que se tornou marca registrada da nova direita brasileira.

Imagem: Perfil no Twitter (X) @oproprioolavo 

Imagem: Página no Youtube @oproprioolavo

 

Imagem: Página no Youtube @oproprioolavo 

Sob a influência forte de Olavo de Carvalho, políticos ligados ao campo conservador e à extrema direita incorporaram o termo. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados repetiram diversas vezes a expressão “marxismo cultural” em entrevistas, discursos e postagens em redes sociais. Este grupo sempre associandou a ideia a temas como educação sexual, políticas de gênero, diversidade e direitos humanos. O termo também foi mobilizado em campanhas eleitorais como um “rótulo de alerta” contra adversários progressistas.

O discurso ganhou força adicional no campo religioso. Pastores, padres e lideranças católicas e evangélicas identificadas como conservadoras passaram a denunciar o “marxismo cultural” em sermões e artigos, descrevendo-o como ameaça à fé e à família. 

Imagem: Perfil no Twitter (X) @PastorMalafaia

Nas igrejas, a expressão é frequentemente associada a debates sobre educação escolar, costumes e moralidade, funcionando como explicação rápida para transformações sociais que incomodam setores conservadores.

Pesquisadores destacam que esse uso está alinhado ao que já se observava em outros países. Para o historiador João Cezar de Castro Rocha, o que se convencionou chamar de “bolsonarismo” se organizou em grande medida a partir dessa retórica de guerra cultural. O também historiador Flávio Casimiro identifica o termo como parte do arsenal ideológico da “nova direita” no Brasil Já a filósofa Marcia Tiburi classifica o “marxismo cultural” como um rótulo vazio, usado apenas para criar inimigos e justificar perseguições 

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O chamado “marxismo cultural” não é uma teoria científica, mas uma construção conspiratória que atravessou diferentes contextos históricos — do nazismo aos Estados Unidos dos anos 1990 — até ser importada e adaptada ao Brasil. Sua função não é explicar a realidade, mas construir um inimigo fácil de identificar, usado como arma retórica por políticos e líderes religiosos para mobilizar apoiadores. Mais do que esclarecer debates, o termo serve à polarização política e à difusão de desinformação.

Assim como aconteceu com woke — uma palavra nascida no movimento negro e esvaziada de seu sentido original ao ser apropriada como insulto pela extrema direita —, o chamado “marxismo cultural” também se transformou em arma retórica. Neste caso, não a partir de uma experiência social legítima, mas como uma teoria conspiratória criada em ambientes ultraconservadores. Hoje, os dois termos circulam lado a lado nos discursos políticos e religiosos, usados não para favorecer debates, mas para simplificá-los e até mesmo para impedi-los.

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Recomendação de leitura:

O fantasma do Marxismo Cultural
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