A estratégia de desumanização
Ninguém pode negar o fato de já ter se deparado com ofensas verbais em discussões, nas quais um dos interlocutores tenta humilhar seu opositor com palavras que se tornaram verdadeiros adjetivos de desqualificação. São palavras e expressões que ficaram famosas entre nós, especialmente porque os debates políticos e religiosos estão fazendo uso desse costume: a estratégia de desumanização.
Por meio dessa estratégia, busca-se transformar pessoas antagônicas – nem quero aqui, ainda, tratar por “inimigos” – em desumanas. Quando alguém já perde as características de ser humano, não merece, portanto, ser tratado de forma humana. Perde as prerrogativas dos direitos humanos. A consequência direta disso é que se pode agredir, ofender e praticar quaisquer atos de violência contra essa pessoa (ou ex-pessoa). Afinal, ela merece ser vilipendiada, na condição de “não humana” e ameaça aos que “são humanos”.
Tática de guerra
Ocorre que essa estratégia foi engendrada e é utilizada em contexto de guerra. Uma pessoa possuindo uma constituição psicológica normal e que participa de uma batalha na qual é preciso agredir outro corpo humano a ponto de ferir, mutilar e até matar, não sai incólume desse contexto.
Muitos são os relatos de soldados que participaram da guerra e carregam marcas psicológicas profundas das lembranças de seus pares mortos, como também por terem sido obrigados a matar seus “inimigos” das formas mais inimagináveis possíveis.
A estratégia de desumanização tende a amenizar esse sentimento e esse trauma. Quando o soldado internaliza que matou alguém que merecia, por ameaçar a vida de pessoas dignas, sua violência se torna não somente suavizada, mas necessária e heroica.
Com o uso dessa estratégia em contextos políticos e religiosos atuais, temos visto uma tática de guerra sendo utilizada em uma sociedade que não encontra paralelo com um combate por ameaça externa. Some-se a isso a mais atual reflexão sobre a guerra, que nos aponta que abarcamos uma inconsequente ação de exterminar iguais: seres humanos que têm suas famílias, seu trabalho, seus desejos, sua fé e suas necessidades.
Palavras que matam
Vocábulos que tentam desqualificar as pessoas antes de refletir em suas teses e ações têm sido frequentemente usados. Não é muito novidade isso, é verdade, em contextos políticos e religiosos, mas, hoje, especialmente em nosso país, com a mistura evidente entre religião e política, a prática se acirrou.
É comum ouvir os famosos adjetivos que acompanham o “mas ele/ela é”, como, “comunista”, “socialista”, “fascista”, “mortadela”, “coxinha”, etc. Antigamente, já eram comuns, para desqualificar, termos como “nordestino”, “analfabeto”… Até “secundarista” já ouvi.
Nas igrejas, já participei de debates citando teólogos que tiveram seu contraponto com afirmações como “mas ele é liberal”. Ainda se somam a esse, termos como “abortista”, “desigrejado”, “esquerdista” e afins.
Quando, em um debate, um adjetivo desse é utilizado para desqualificar o opositor, descarta-se a ideia e iniciam-se os ataques pessoais. São os argumentos ad hominem, que se esquecem do debate e partem para o ataque pessoal, de ofensa e desqualificação.
Exemplos execráveis
Essas marcas são tão fortes na sociedade que podemos lembrar dois exemplos: no primeiro, um jovem que incendiou um indígena em Brasília justificou seu ato nefasto ao afirmar que pensou que a vítima fosse “um mendigo”! Já no Rio de Janeiro, uma empregada doméstica sofreu um ataque brutal de jovens. Qual foi a explicação? “Pensávamos que fosse uma prostituta”!
Em contexto de guerra, compreende-se (não se justifica, mas se explica); nos embates políticos, em que aniquilar o opositor é o objetivo, entende-se. O que me causa espécie é ver essa tática que chega a justificar um assassinato ser usada por cristãos em todo o território nacional.
Na época de Jesus mesmo, encontramos estigmas como leprosos, prostitutas, publicanos, samaritanos e outros. Sem dúvida, esses adjetivos eram utilizados para diminuir outras pessoas. Essas categorias não foram tratadas dessa forma por Jesus e os exemplos que temos de aproximação dele com pessoas assim foi bem diferente do que a elite religiosa esperava.
A estratégia de desumanização, que tem levado, de fato, religiosos e políticos a ofender, agredir e, até mesmo, matar (em nome de Deus), deve ser execrada por quem entendeu, converteu-se e segue os ensinamentos de Jesus Cristo. Custa-me entender que possa ser usada tão facilmente por quem não tem problemas de psicopatia. Ela não pode ter espaço no coração daqueles que escolheram amar.
**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.
*** Foto de capa: Omar Alnahi/Pexels