Grande jornal noticia como verdade conteúdo de página de humor que ‘vende’ terrenos no céu

Uma suposta venda de terrenos no céu virou notícia, em 25 de junho passado, com a matéria “Igreja vende terreno no céu a R$ 550 por metro quadrado”, do jornal Estado de Minas. De acordo com o conteúdo, o anúncio foi publicado nas mídias sociais pela Iglesia del Final de los Tiempos (Igreja do Fim dos Tempos). 

O valor do metro quadrado no plano espiritual seria de US$ 100 (cerca de R$ 548 na cotação atual), que em conversão para o real fica abaixo da média dos imóveis em bairros nobres das capitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

A matéria traz, ainda, o texto do anúncio, publicado, originalmente, em espanhol no último 29 de maio, em uma página do Facebook: “O Profeta Andrés de la Barra encontra-se com Deus no Reino dos Céus e anuncia que temos terras celestes disponíveis, se quiser informações sobre as condições baixe o aplicativo e leia as informações oficiais. Lamentamos informar que se não respondermos à sua mensagem é por este motivo, da mesma forma que Sua Santidade San Andrés de la Barra nos deu ordem de não responder mensagens referentes a essa publicação”.

Imagem: Reprodução de Estado de Minas

Sites como Coluna Financeira, Notícias Uai, Folha de Italva e Fatos Desconhecidos reproduziram as informações publicadas pelo Estado de Minas, mas sem adicionar detalhes relevantes sobre o caso.

Uma paródia de igreja

A Iglesia del Final de los Tiempos está presente no Facebook, Instagram e Youtube, somando mais de cinco mil seguidores nas mídias sociais. Porém, ao contrário do que a matéria do Estado de Minas afirma, não se trata de uma instituição religiosa formal, mas, sim, de uma paródia – uma imitação jocosa criada para criticar aquilo que está sendo reproduzido. 

Perfis de paródia, também classificados como uma das modalidades de desinformação, são comuns na internet. Um dos mais conhecidos é o Apóstolo Arnaldo, personagem de um líder evangélico criado para satirizar pastores corruptos. Desse modo, o uso da ironia, o exagero e o destaque de traços do alvo da crítica são características das páginas de sátira e estão presentes nos conteúdos publicados pelos perfis da Iglesia del Final de Los Tiempos, de origem latina, em língua espanhola: 

  • venda de símbolos de fé;
  • constantes pedidos de doações em dinheiro;
  • uso de discurso que subjuga as mulheres.

Imagem: Reprodução do Facebook

Desta forma, a página da “igreja” no Facebook não anuncia apenas terras celestiais, mas também oferta certificados de:

  • heterossexualidade;
  • salvação;
  • salvação VIP;
  • indulgências;
  • virgindade (no valor de US$ 2500). 

Em uma publicação de 28 de maio, o profeta Andrés de la Barra, líder da “religião”, pede que as mulheres (chamadas de costelas, em alusão a história bíblica de que a mulher foi criada a partir da costela de Adão) vistam roupa íntima de renda branca durante a “verificação” de sua virgindade – um sabonete íntimo “cristão” vendido pela “igreja” seria de uso obrigatório para obter a certificação de pureza.

Imagem: Reprodução do Facebook

Imagem: Reprodução do Facebook

A página apresenta Andrés de la Barra não só como profeta, mas também como Messias e autor do Terceiro Testamento, um evangelho secreto e exclusivo de seus seguidores – um dos livros dessa “versão final” da Bíblia se chama “Alucinações”. No canal de Youtube da Iglesia del Final de los Tiempos, de la Barra prega contra futebol, ciclismo, academias e os personagens da franquia de jogos Pokémon. Além disso, no final dos vídeos ele pede que os fiéis paguem o dízimo até o dia cinco de cada mês para evitar multas por atraso.

Imagem: Reprodução do Youtube

Casos semelhantes

O anúncio de venda de lotes celestiais não é uma novidade: em maio deste ano, o site Boatos.org verificou um vídeo pelo qual um suposto pastor oferece terrenos no céu com valor a partir de R$ 100 mil. De acordo com a checagem, o conteúdo foi produzido pela página Igreja da Sagrada Oferta, que satiriza igrejas evangélicas.

Em 2022, uma suposta venda de balão com ar profético pela mesma “igreja” também passou pela apuração do Boatos.org, que verificou se tratar apenas de uma piada da página de paródia.

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Bereia conclui que é falsa a notícia de que uma igreja venda terrenos no céu. A matéria do jornal Estado de Minas se baseia apenas na postagem de uma página de humor que satiriza igrejas e religiosos – o conteúdo publicado se resume a montagens e imagens criadas por inteligência artificial. Não foi realizada a devida apuração jornalística para produzir informação qualificada sobre o caso. Pela forma com que se apresenta o texto, indica-se apenas a preocupação de captar leitores e leitoras, com a adequação dos valores em dólares para reais. 

Uma pesquisa atenta foi suficiente ao Bereia para afirmar que não foram encontrados indícios de que existam fiéis, templos ou espaços de culto reais da Iglesia del Final de los Tiempos.  

Bereia alerta leitores e leitoras para publicações sobre religião, em especial sobre grupos destacados no cenário público, como evangélicos, em tom sensacionalista, para captação de público, sem preocupação com informação digna. Tais textos servem apenas para reforçar preconceitos e intolerâncias. 

Referências de checagem:

Perfil Iglesia del Final de los Tiempos no Facebook: https://www.facebook.com/IglesiaApostolicaDelFinalDeLosTiempos. Acesso em 02 de julho de 2024.

Boatos.org: https://www.boatos.org/religiao/pastor-vende-balao-com-ar-profetico-ungido-por-r-500.html. Acesso em 08 de julho de 2024.

https://www.boatos.org/religiao/igreja-esta-vendendo-terreno-no-ceu-por-precos-a-partir-de-r-100-mil.html . Acesso em 08 de julho de 2024.

Youtube: 

https://www.youtube.com/@IglesiaIFT . Acesso em 02 de julho de 2024.

https://www.youtube.com/@arnaldotaveira/videos . Acesso em 05 de julho de 2024.

Site do Apóstolo Arnaldo:  https://www.apostoloarnaldo.com.br/sobre . Acesso em 05 de julho de 2024.

UNESCO Digital Library: Jornalismo, fake news & desinformação: manual para educação e treinamento em jornalismo – UNESCO Digital Library Acesso em 10 de julho de 2024.

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Foto de capa: Tumisu/Pixabay

Notícia imprecisa sobre proibição de Bíblias nos EUA gera confusão sobre perseguição religiosa

* Matéria atualizada às 20:30 para correção de redação

De acordo com matéria distribuída por agências internacionais de notícias, e publicada, inicialmente, no Brasil, pelos jornais Estado de Minas e O Estado de São Paulo, no último 2 de junho, o Estado de Utah, nos Estados Unidos, teria retirado a Bíblia de bibliotecas e escolas. A ação teria sido uma resposta a decisões de políticos conservadores de retirar livros que abordassem questões LGBTQIA+ “de prateleiras educacionais”.

O assunto repercutiu fortemente no Brasil, e a decisão foi noticiada por sites religiosos e portais da grande mídia nos dias seguintes. Com algumas divergências, nem todos os conteúdos foram fiéis aos fatos.

Imagem: reprodução do site Pleno.News

Decisão de remover a Bíblia não foi do estado de Utah

Para ouvir uma fonte local, Bereia entrevistou o pastor da Igreja Metodista Unida dos EUA Rev. Jorge Luiz Domingues sobre o caso. Ele explicou que o banimento da Bíblia das bibliotecas de escolas elementares não partiu do Estado de Utah, mas de apenas um distrito escolar. “O estado aprovou a lei, e o distrito escolar está implementando a partir da solicitação [de um pai ou mãe de estudante]”, afirma.

Segundo o jornal The Salt Lake Tribune, de Utah, a decisão de banir a Bíblia em escolas de ensino fundamental foi tomada pelo Distrito Escolar de Davis, e não pelo estado, como dão a entender as matérias que reproduziram o conteúdo internacional. A entidade é responsável pela educação pública na região de mesmo nome, que pertence ao estado de Utah.

A apuração do jornal local estadunidense aponta que a medida não foi tomada por decisão judicial, nem mesmo legislativa, mas se trata de um consenso do comitê de revisão do Distrito Escolar que vem analisando o pedido de um pai desde dezembro de 2022. O site gospel Pleno News afirmou se tratar de uma “ação judicial” movida pelos responsáveis do aluno, mas não há evidências de que o pedido tenha tramitado no sistema de justiça.

A decisão de recolher as Bíblias das bibliotecas escolares ocorreu em 1 de junho, e foi considerada para escolas de ensino fundamental do condado de Davis. A Bíblia não foi banida de todas as escolas de Utah e nem de todas as bibliotecas. O porta-voz do Distrito Escolar de Davis afirmou ao The Salt Lake Tribune que sete ou oito escolas que contavam com exemplares seriam alvo da remoção.

O parâmetro utilizado pelo comitê para o banimento também não foi o de considerar o livro sagrado para o Cristianismo como pornográfico ou indecente, mas por se compreender ser um conteúdo sensível, por abordar temas vulgares e violentos para crianças e adolescentes. Escolas de Ensino Médio continuarão com seus exemplares, outra informação que também foi distorcida nas versões brasileiras sobre o caso. 

Polêmica em torno da Lei que permitiu remoção da Bíblia

Em 2022, o Estado de Utah aprovou uma lei sobre materiais sensíveis nas escolas que permite que pais de alunos opinem sobre o acesso dos filhos a livros nas instituições e que peçam a remoção de determinados conteúdos das prateleiras das bibliotecas.

Imagem: reprodução do site do jornal Salt Lake City Tribune

Incentivada por grupos conservadores, a lei tinha como principal alvo textos sobre a comunidade LGBTQIA+. Assim, o dispositivo legal, aprovado em março de 2022, permitiu a remoção de livros que apresentassem conteúdo “pornográfico ou indecente”. Entre os livros que já foram alvos de remoção está, por exemplo, o romance “O Olho Mais Azul”, da escritora vencedora do prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison. O livro aborda questões de raça, padrões de beleza e aceitação social.

Ao final de 2022, porém, a mesma lei ensejou um pedido, apresentado pelo responsável de um aluno, para remoção da Bíblia das escolas, sob o argumento de que o livro sagrado seria um dos que têm mais conteúdo sexual.

O autor do pedido apresentou um documento de oito páginas em que listava passagens da Bíblia consideradas ofensivas e que mereciam uma apreciação. O código 76-10-1227 de Utah apresenta definições do que seriam “exibições públicas indecentes”, entre as quais se encontram, por exemplo, “descrições de sexo ilícito e imoralidade sexual”, e foi utilizado para sustentar a reclamação.

Segundo matéria da BBC News Brasil, o idealizador da lei sobre materiais sensíveis nas escolas Ken Ivory, chegou a se posicionar contrariamente à remoção da Bíblia das prateleiras escolares, mas teria mudado de ideia, sob a justificativa de que “tradicionalmente, na América, a Bíblia é melhor ensinada e compreendida em casa e em família”.

Casos semelhantes em outras regiões dos EUA

O Rev.Jorge Domingues ressaltou ao Bereia a existência de casos semelhantes nos Estados Unidos. “Um outro artigo diz que também há uma solicitação para banir o Livro dos Mórmons, o que é uma ironia pois o Estado de Utah é 68% Mórmom”, destaca. Domingues relembra, ainda, o banimento da Bíblia em escolas no Texas, em 2022, e destaca que “há várias iniciativas para banir a Bíblia em estados que aprovaram o banimento de outros livros considerados inapropriados”.

O portal norte-americano Education Week, que se dedica a publicar informações e notícias sobre o ensino primário nos Estados Unidos, já havia veiculadoartigo sobre a questão dos banimentos da Bíblia das bibliotecas escolares. Publicado antes do recente caso em Utah, o texto cita casos ocorridos na Flórida, no Texas e no Missouri.

Conforme apontado por Jorge Domingues, há notícias de que o Livro dos Mórmons passa pelo mesmo desafio enfrentado pela Bíblia, sendo também alvo de pedido de remoção no distrito escolar de Davis, Utah. O jornal The Salt Lake Tribune aponta o efeito em cascata dessa disputa.

Disputa de censuras

Sobre o fenômeno, o Rev. Jorge Domingues explica: “Várias leis estaduais têm sido aprovadas para banir livros considerados inapropriados por legisladores ou políticos conservadores e livros sobre, ou relacionados a, pessoas ou comunidade LGBT. Em resposta, indivíduos ou organizações têm usado estas leis para banir outros textos que contêm material inapropriado de acordo com a legislação. A Bíblia tem sido um desses livros”.

O diretor do programa Liberdade de Expressão e Educação Jonathan Friedman da PEN America – uma organização em prol da liberdade de expressão que monitora desafios relacionados aos livros – em entrevista ao Education Week,  diz que as recentes objeções à Bíblia “ocorreram como uma reação aos esforços para proibir tantos livros”.

A diretora do Escritório da Associação Americana de Bibliotecas para a Liberdade Intelectual Deborah Caldwell-Stone declarou ao portal que apesar dos desafios esporádicos, as reclamações que dizem respeito à Bíblia são, geralmente, uma tática para ressaltar os potenciais danos da censura.

“Quando você escolhe a censura como sua ferramenta para controlar o acesso à informação e controlar a capacidade dos indivíduos de aprender mais sobre várias ideias, inevitavelmente, isso vai varrer ideias e materiais com os quais você realmente concorda”, afirmou Caldwell-Stone.

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Bereia considera o conteúdo checado impreciso. A notícia veiculada pelos jornais Estado de Minas e O Estado de São Paulo, e repercutida por vários outros veículos, oferece conteúdo verdadeiro, mas carece da amplitude necessária para o completo entendimento dos acontecimentos.

Especialmente, a afirmação de que a remoção de Bíblias de bibliotecas escolares se deu pelo fato de o livro sagrado cristão  conter “sexo e violência”, como aparece na manchete, é imprecisa à luz do contexto mais amplo. Este permite afirmar que o banimento se deu em reação a outras censuras anteriormente implementadas, ainda que a decisão tenha se apoiado na previsão legal para retirada de conteúdos “pornográficos ou indecentes”.

Tais informações estão presentes no interior do texto veiculado pelos jornais Estado de Minas e Estadão. Há que se notar, no entanto, que a manchete, tal como foi apresentada, contribui para uma falsa ideia de perseguição contra cristãos, tanto mais em um contexto de rápido compartilhamento de informações pelas redes digitais, em que muitos leitores propagam manchetes como informações completas.

Não sendo o primeiro nem o último acontecimento relacionado a censura no país em questão, é fundamental o resgate do contexto para o real entendimento dos fatos. Em temas frequentemente utilizados para desinformar e criar pânico moral, como é o caso da falsa ideia de perseguição a cristãos, há de se adotar critérios ainda mais rígidos na elaboração de conteúdo informativo.

Referências de checagem:

Distrito Escolar de Davis, Utah. https://www.davis.k12.ut.us/ Acesso em: 6 jun 2023

H.B. 374. https://openstates.org/ut/bills/2022/HB374/ Acesso em: 6 jun 2023

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6p34rd5x7po Acesso em: 6 jun 2023

The Guardian. https://amp.theguardian.com/books/2023/jun/03/utah-school-district-book-of-morman-ban Acesso em: 6 jun 2023

npr. https://www.npr.org/2022/08/18/1117708153/bible-anne-frank-books-banned-texas-school-district Acesso em: 6 jun 2023

Vice. https://www.vice.com/en/article/epzv9j/texas-school-bans-the-bible Acesso em: 6 jun 2023

Education Week. https://www.edweek.org/teaching-learning/why-the-bible-is-getting-pulled-off-school-bookshelves/2022/12 Acesso em: 6 jun 2023

The Salt Lake Tribune.

https://www.sltrib.com/news/education/2023/06/01/bible-is-banned-these-utah/ Acesso em: 6 jun 2023

https://www.sltrib.com/religion/2023/06/02/book-mormon-now-challenged-utah/ Acesso em: 7 jun 2023

https://www.sltrib.com/news/education/2023/03/22/utah-parent-says-bible-contains/ Acesso em: 6 jun 2023

Utah Code 76-10-1227. https://law.justia.com/codes/utah/2006/title76/76_0c153.html Acesso em: 6 jun 2023

PEN America. https://pen.org/ Acesso em: 6 jun 2023

Britannica. https://www.britannica.com/topic/The-Bluest-Eye Acesso em: 7 jun 2023

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Foto de capa: Luis Quintero/Pexels