Retorno à normalidade?

O retorno à normalidade é o tema comum que tem aparecido entre os jornalistas, após a eleição de Lula e a posterior saída de Jair Bolsonaro da presidência. Obviamente, não há normalidade alguma retornando ou deveríamos repensar o que seria esse verdadeiro normal. Bem, se pensarmos em Collor, e temos todos os motivos de sobra para contestar sua idoneidade, seu mandato foi interrompido com um impedimento e, 22 anos depois, o Supremo Tribunal Federal inocentou o ex-presidente. Agora, no possível retorno à normalidade, Dilma foi “absolvida” e repete a mesma história que Collor – a despeito da diferença óbvia entre os dois políticos. Contudo, o que nossa história demonstra é que o normal é presidentes não terminarem seus mandatos: o primeiro, Deodoro da Fonseca renunciou; Washington Luís foi deposto; Vargas se matou; Café filho sofreu impeachment por pressão dos militares; Jânio renunciou. em uma atitude golpista que não deu certo, João Goulart foi deposto pelos militares. E aí entramos na nossa nova democracia onde os julgamentos de Collor e Dilma estão ainda vivos na nossa mente.

O que se quer dizer com isso? Ao que parece, o normal é haver presidentes que caem por pressão militar ou por golpismo qualquer – com alguma exceção que toda regra permite. Porém, é preciso compreender que força “normal” é essa que derruba presidentes. Dilma e Collor caíram pelo que foram inocentados. O que demonstra que o impeachment nada mais é do que uma vontade política, a despeito da participação da justiça e da acusação de crime de responsabilidade. Todo o rito ganha a aparência de legalidade, mesmo não o sendo. Diferente da frase de Júlio César, que dizia que “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”, o rito do impeachment não precisa ser honesto, mas tem que parecer honesto. Mesmo em sua aparência, não se quer dizer que ele realmente seja visivelmente honesto, mas sim que não se possa questionar sua honestidade, ainda que sua desonestidade “salte aos olhos”. Há a pessoa honesta que aparenta honestidade e há o desonesto que alega honestidade para si, mas que ninguém consegue acusar de desonestidade, mesmo que todos saibam que assim o é. Desta forma o rito do impeachment deve parecer. Com que segurança se pode afirmar isso?

Bom, agora temos um ex-presidente que completou seu mandato e isso o coloca em uma condição que apenas alguns conseguiram, nessa República. Mas em que situação?  Temos um pedido de impedimento contra Bolsonaro que o acusa de 23 crimes de responsabilidade; A CPI da COVID o acusa de 10 crimes de responsabilidade. Na reunião que o presidente teve com embaixadores, juristas apontam outros crimes de responsabilidade. E o que aconteceu com tanta possibilidade de crimes? Nada. Bolsonaro seguiu cumprindo seu mandato e, inclusive, com toda a liberdade para deslegitimar a democracia e não entregar a faixa de presidente para Lula, tendo, inclusive, deixado seu vice-presidente terminar o mandato, sem sequer ter renunciado.

O que essa situação diz sobre o processo de impeachment? Que sem vontade política, sem interesse de alguém, ou alguns, um presidente pode destruir a nação. E, também, que se houvesse vontade política, destruiriam a nação para derrubar um presidente. Bolsonaro rebaixou não apenas o cargo da presidência, mas também a própria nação. Por outro lado, Lula nem havia assumido e o mercado ressuscitou, após quatro anos de silêncio. Esse é o jogo normal que mercado e oposição estavam acostumados a jogar e, para eles, tudo voltou à normalidade, com a volta de Lula. Não. Não gostam de Lula e não torcem por um governo bom. Não se trata disso. Trata-se de conseguirem jogar um jogo. É imperativo que o governo Lula seja o melhor governo que ele já exerceu. É importante que ele não falhe e é seguro que há muitos desejando essa falha. Há muitos de olho em um crime de responsabilidade, um gasto excessivo e a qualquer “pedalada” que justifique o que Collor e Dilma viveram.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

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Foto de capa: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Site gospel usa vídeo de participante de reunião do PT para alimentar desinformação sobre perseguição a igrejas pelo novo governo

“‘Pastor do Lula’ quer criar escolas progressista de pastores” é o título da matéria publicada, em 12 de novembro, pelo site evangélico Gospel Prime. A matéria se baseia em uma das gravações publicadas no Twitter pelo pastor das Assembleias de Deus Paulo Marcelo Schallemberger, integrante do Núcleo de Evangélicos do Partido dos Trabalhadores (NEPT). As publicações do pastor relatam sua participação em uma reunião realizada, em 11 de novembro, pelo NEPT com lideranças evangélicas, na Sede do Diretório Nacional do PT, em São Paulo. 

Imagem: reprodução do site Gospel Prime

A matéria do Gospel Prime baseou-se em um dos três vídeos publicados no Twitter pelo pastor, no qual ele tem uma fala na reunião. O site evangélico afirma que Paulo Marcelo “aparece no Diretório Nacional do PT ensinando como ocupar as igrejas” e incluiu o vídeo, com 53 segundos de duração, publicado também no perfil do Twitter do veículo com a chamada “’Pastor do Lula’ ensina como ocupar igrejas e enganar pastores”.

Imagem: reprodução do site Gospel Prime

O conteúdo publicado pelo Gospel Prime não contextualiza a fala do pastor, tão pouco a reunião da qual ele participou, e oferece aos leitores e leitoras uma avaliação: “Diante da forte rejeição do eleitor evangélico, o Partido dos Trabalhadores (PT) vem buscando formas de se infiltrar nas igrejas, incluindo a proposta de criar escolas progressistas de pastores, mas se identificar para atrair os líderes evangélicos”.

As publicações do pastor Paulo Marcelo Schallemberger

Paulo Marcelo Schallemberger tem sido alvo de abordagens negativas de lideranças e mídias evangélicas, desde que se apresentou em público, no início de 2022, como construtor de pontes entre o PT e os evangélicos. Ele ganhou o noticiário político nacional, como um líder das Assembleias de Deus participante da campanha eleitoral do ex-presidente Lula e foi o jornal Folha de S. Paulo que lhe atribuiu o apelido “Pastor do PT”, repetido agora pelo Gospel Prime.

Em abril, Bereia checou informações que circulavam em mídias sociais religiosas sobre o pastor, por indicação de leitores e leitoras, que incluíam várias acusações, verificadas como improcedentes. Nas eleições de outubro passado, Pastor Paulo Marcelo se candidatou a deputado federal (Solidariedade/SP), mas não conseguiu ser eleito, e consta no Tribunal Superior Eleitoral como suplente. 

As publicações de Paulo Marcelo em seu perfil no Twitter, nas quais aborda a reunião do
Diretório Nacional do PT, em 11 de novembro, são três, todas com pequenos vídeos de poucos segundos. Em dois deles, o pastor está falando aos presentes –  um foi selecionado para a matéria do Gospel Prime (o terceiro na ordem de postagens):

Imagem: reprodução do Twitter

Imagem: reprodução do Twitter

Imagem: reprodução do Twitter

No primeiro vídeo, Paulo Marcelo oferece sugestões de como o PT deve se comunicar com as igrejas evangélicas e mostrar que elas têm um lugar no programa de governo. Ele explica que a comunicação é fundamental para superar a estratégia de grupos de direita que demonizam as esquerdas e colocam as igrejas como “reféns de maus líderes”. Segundo o pastor, “na verdade não são homens que verdadeiramente seguem a Deus porque se seguissem a Deus não teriam coragem de mentir, sabendo que estão falando uma coisa que é inverdade”. Paulo Marcelo reforça: “Nós [líderes] temos a responsabilidade de mudar isto”.

No segundo vídeo, utilizado para o conteúdo do Gospel Prime, o pastor refere-se ao valor das políticas públicas para que as lideranças ligadas ao novo governo não sejam mais “reféns de Malafaia e de Macedo”. Segundo ele, com políticas públicas atingindo positivamente pessoas que são fiéis de igrejas evangélicas haverá abertura para que as igrejas conheçam “uma palavra de libertação da mentira do fascismo”. Paulo Marcelo segue com a explicação de como fazer:

“Criando escolas progressistas de pastores em todo o Brasil. Não tem as escolas que eles fazem? Levam os pastores lá? São Paulo, Campinas, Curitiba, enfim, Rio de Janeiro, começa com os núcleos nas cidades, a partir das cidades ir às regiões, vai para os estados. Primeiro na escola de Teologia tal tal tal (sic.). Evitar o nome ‘progressista’. Traz primeiro os pastores para depois você falar que precisar se falar pois qualquer frase assusta.. [corte]”.

A reunião com evangélicos progressistas 

Bereia não conseguiu contato com os organizadores da reunião promovida pelo Núcleo de Evangélicos do PT em São Paulo, em 11 de novembro. Para esta matéria, a equipe levantou com  as coberturas da rede de TV CNN e do portal de notícias paulista Poá com acento, que o evento reuniu evangélicos progressistas, ligados a partidos de esquerda, para discutir como contribuir com o processo de transição em curso e com o futuro governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, com foco na questão social. Foram convidados para a reunião pastores, pastoras e deputados federais eleitos que são membros de alguma igreja evangélica. 

Em entrevista, um dos participantes do evento, o pastor coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Ariovaldo Ramos, explicou que o evento também teve caráter celebrativo da vitória nas urnas, e da participação de evangélicos na campanha. Os presentes tiveram tempo para discutir como apoiar o governo Lula e trabalhar com a base evangélica, além de também dialogar sobre como as lideranças progressistas poderão garantir um processo de interlocução com o governo Lula. 

Ramos reconhece que houve uma “overdose” de evangélicos no governo Bolsonaro, de uma forma que o pastor considera “errada, pois comprometeu a laicidade do Estado”. Porém, o pastor alerta que não se pode desconsiderar que os evangélicos são uma parcela relevante da população e que há de se dialogar com ela e “trabalhar nas bases e construir uma consciência evangélica”. 

A reunião foi pauta do programa Visão CNN, na edição de 11 de novembro. Na abordagem do canal de TV, o jornalista Leandro Resende afirma que, entre os encaminhamentos, estão o chamado a igrejas pequenas e independentes para atuarem com o governo Lula, sobretudo em projetos de assistência social.  

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Bereia classifica as publicações de Gospel Prime como enganosas. O veículo usa um vídeo postado pelo pastor Paulo Marcelo Schallemberger, em matéria sem apuração sobre o evento e o contexto da fala do pastor. A matéria no site e o tuíte do Gospel Prime atuam para alimentar desinformação fartamente utilizada no período eleitoral para impor medo de que um novo governo Lula representaria uma ameaça às igrejas e a cristãos. 

Ao afirmar que o “pastor está ensinando petistas se infiltrarem em igrejas e enganarem pastores”, o Gospel Prime manipula a informação compartilhada pelo pastor Paulo Marcelo, retirando-a do contexto original. 

A publicação se apresenta como matéria jornalística, porém se configura uma interpretação descontextualizada com a intenção de promover rejeição ao pastor Paulo Marcelo e ao governo do presidente eleito em 30 de outubro entre leitores e leitoras evangélicos.

Bereia afirma o valor de um amplo debate público, com o direito à crítica e à oposição a governos, a políticos e a apoiadores deles, marca do processo democrático. Porém alerta que este debate deve ser conduzido com conteúdo verdadeiro, marcado pela dignidade, garantindo a leitores e leitoras o direito à informação.

Referências de checagem:

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/02/pastor-do-pt-leva-a-lula-plano-sobre-evangelicos-com-dicas-sobre-temas-tabus.shtml Acesso em 29 nov 2022

Bereia. https://coletivobereia.com.br/pastor-da-assembleia-de-deus-que-aderiu-a-campanha-de-lula-tem-funcao-pastoral-questionada/ Acesso em 29 nov 2022

Tribunal Superior Eleitoral. https://resultados.tse.jus.br/oficial/app/index.html Acesso em 29 nov 2022

Twitter. 

https://twitter.com/prpaulomarcelo/status/1591201136240865280?s=20&t=QeVajI8AMRaMkK3d8eo2bg, Acesso em 29 nov 2022

https://twitter.com/prpaulomarcelo/status/1591236433368731648?s=20&t=QeVajI8AMRaMkK3d8eo2bg Acesso em 29 nov 2022

https://twitter.com/prpaulomarcelo/status/1591245787862028289?s=20&t=QeVajI8AMRaMkK3d8eo2bg Acesso em 29 nov 2022

Youtube.

https://www.youtube.com/watch?v=15EgDElTph8 Acesso em 29 nov 2022

https://www.youtube.com/watch?v=AHLuMZc_fCA Acesso em 29 nov 2022

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Imagem de capa: reprodução site Gospel Prime

Portais de notícias religiosas desinformam quanto a suposto projeto comunista para crianças

Circula em portais de notícias religiosas um vídeo com uma fala descontextualizada da advogada Laura Astrolabio, sobre um suposto projeto político da “esquerda comunista” que visa infiltrar-se em igrejas evangélicas, para a cooptação de crianças em prol das políticas comunistas. 

Imagem: reprodução do Instagram

Em evento da Revista Fórum, intitulado “Mulheres no poder em um momento bolsonarista!, transmitido ao vivo no domingo, 11 de setembro de 2022, a advogada e estudante de Mestrado em Direitos Humanos (UFRJ) Laura Astrolabio dialogou com a candidata a deputada estadual, Benny Briolly (PSOL, RJ), que se destaca como primeira vereadora transsexual do Rio de Janeiro, e a ativista política e candidata a deputada estadual Chirley Pankará (PSOL, RJ), que é liderança indígena do povo Pankará, sob a mediação do jornalista Anderson Morais. 

Imagem: reprodução site Revista Fórum

O grupo de debatedoras abordou temas ligados às pautas feministas, etnicidades, patrimônio sociocultural, intolerância religiosa, gênero e sexualidade. Tais temas tiveram como fio condutor o combate às pautas políticas conservadoras da extrema-direita. O trecho do debate que vem ganhando repercussão nos meios de comunicação religiosos, por meio de vídeo, é um fragmento da fala de Astrolábio, em que ela afirma.    

“[…] Acho que a gente precisa conversar coletivamente, No mestrado eu cheguei a falar uma vez que a gente tinha que se infiltrar nas igrejas. Outro dia eu encontrei uma amiga minha da época em que eu era da igreja, porque eu fui cristã durante 30 anos, eu já fui até para Jerusalém, no dia em que contar o que foi essa viagem, eu acabo com o Cristianismo no Brasil”, disse, e continuou, “eu falei ‘amiga, vamos voltar pra igreja’, porque hoje eu sou candomblecista, não tenho um terreiro que eu vá frequentar, porque eu não sou religiosa, mas eu amo os orixás, agora, que nós temos que voltar para a igreja, ou ir para ela, a gente tem. Ela [e a amiga] disse que eles (fiéis) não iriam permitir, e eu disse ‘quem disse que a gente vai falar pra eles? a gente vai para a escolinha dominical’. O que mais a igreja quer é pegar uma irmãzinha pra tomar conta das crianças. Enquanto eles estão no culto, tem uma sala de aula cheia de crianças. Aí você pega a Bíblia e começa a falar que Jesus amava os pobres e que os ricos não entrarão no Reino dos céus…”, explicou a advogada. 

Imagem: reprodução do Youtube

A fala em questão ocorre após a participante ser questionada sobre a existência dos “pobres de direita”. Na resposta que abordou a  integração entre política e religião,  a advogada deu um exemplo  para ilustrar como esquerdas podem enfrentar o conservadorismo da extrema-direita: “infelizmente essa pessoas [os pobres de direita] não têm acesso a esses debates, a essas discussões, os debates feitos dentro dos partidos políticos não chega a essas pessoas […], então eu acho que temos que pensar em estratégias para fazer esse debate chegar lá, a eles”, disse. 

O trecho selecionado do discurso de Laura Astrolábio, usado para denunciar planos da “esquerda comunista para ocupar as igrejas”, segundo várias postagens em mídias sociais,  refere-se a possíveis estratégias de enfrentamento da extrema-direita. Na concepção da advogada, as pessoas devem se “armar” (simbolicamente) de seus direitos constitucionais e lutar por suas demandas, “o Estado é laico e a gente tem que cobrar”. Para ela,  a extrema-direita deve ser combatida por meio de ferramentas de reeducação cívica e militância organizadas. 

Ouvida para avaliar o caso, a pesquisadora em Comunicação e Religiões e editora-geral do Bereia Magali Cunha pondera:

Ao falar para um público de esquerda (seguidores da revista Fórum), a advogada Laura Astrolabio opta por usar as igrejas evangélicas em exemplo, por meio de um discurso crítico, com expressões exageradas como ‘eu fui cristã durante 30 anos, eu já fui até para Jerusalém, no dia em que contar o que foi essa viagem, eu acabo com o cristianismo no Brasil’, e de oposição, como ‘hoje eu sou candomblecista, não tenho um terreiro que eu vá frequentar, porque eu não sou religiosa, mas eu amo os orixás’. Ela introduz a fala sobre o processo educativo com ‘a gente tinha que se infiltrar nas igrejas’ e segue com o discurso crítico e o exemplo do espaço importante das escolas dominicais com as crianças”. 

Magali Cunha considera que “não há qualquer problema em alguém enxergar que as  igrejas, por meio das escolas dominicais e do trabalho com crianças, sejam vistas como espaço em que a educação para a realidade da desigualdade social (pobres x ricos) deveria ser praticada. Porém, o que vemos neste caso é que o uso do exagero, “eu acabo com o Cristianismo”, junto com “a gente tinha que se infiltrar”, mais o termo “criancinhas” como alvo de uma possível ação educativa para a crítica, formam um conjunto de expressões inadequadas em um discurso público pela internet, que certamente geram desconforto justificável em pessoas das igrejas evangélicas, e são um ‘prato cheio’ para produtores de desinformação e de pânico moral contra candidaturas de esquerda nestas eleições, tendo como alvo os o segmento evangélico”. 

A professora acrescenta que “na era digital, produtores de conteúdo e participantes de espaços de debate precisam usar de sabedoria com o que expressam publicamente. A máxima hoje é ‘tudo o que você disser pode ser usado contra você e contra seus pares’, afinal, tudo pode ser manipulado e sempre há quem acredite no que se produz deliberadamente para enganar”.

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Bereia classifica o conteúdo disseminado em vídeo em espaços digitais religiosos, com trecho da fala da advogada Laura Astrolábio, em evento da revista Fórum, como enganoso. 

O discurso em questão, que contém termos críticos e exagerados sobre as igrejas, foi recortado, descontextualizado e relativizado para tornar possível a defesa de uma proposta de intervenção política organizada por uma suposta “esquerda comunista”. A fala completa da advogada diz respeito a políticas de militância e enfrentamento ao racismo e misoginia, atuação política baseada em um regime de Estado laico e democrático.  

Referências de checagem:

Bereia. https://coletivobereia.com.br/desinformacao-e-intolerancia-religiosa/ Acesso em: 16 de set. 2022

Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=swbub6ep0Y8 Acesso em: 16 de set. 2022

Documentos Revelados. https://documentosrevelados.com.br/wp-content/uploads/2015/08/carlos-marighella-manual-do-guerrilheiro-urbano.pdf Acesso em: 16 de set. 2022

A tenda das candidatas. http://atendadascandidatas.org/campanhas/a-conta-nao-fecha Acesso em: 16 de set. 2022

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/vereadora-trans-benny-briolly-diz-ter-recebido-ameaca-de-morte-por-e-mail-de-deputado/ Acesso em: 16 de set. 2022

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Foto de capa: frame de live da Revista Fórum

Uma eleição sem evangélicos

Publicado originalmente na Carta Capital

Em 1998 Sergio Arau dirigiu o brilhante curta-metragem “Um dia sem mexicanos”. Alguns anos depois, em 2004, o curta se tornou um filme não tão bom, mas que popularizou a ideia que o roteiro da atriz Yareli Arizmendi desenvolveu e que é inusitada: na Califórnia, em uma manhã aparentemente normal não havia mais mexicanos nos EUA. Eles haviam sumido. O que seria da Califórnia, Estado em que 30% da população é mexicana, sem a presença desses responsáveis principalmente pelos serviços e outros trabalhos fundamentais para que as coisas funcionem? 

Pensar numa situação inusitada como essas pode dar a oportunidade para importantes reflexões e a impressão que tenho é de que suprimir um segmento similar da população, no caso brasileiro os 30% de evangélicos que aqui residem, seria o desejo de alguns, especialmente no dia 2 de outubro. Ter esse dia sem evangélicos parece ser o necessário para aqueles que não querem a reeleição e que esperam ver a alternância de poder na Presidência.

Se sem mexicanos a Califórnia pararia, as pesquisas parecem indicar que sem evangélicos seria certa a eleição de Lula no primeiro turno. São 150 milhões de eleitores habilitados a votar, se tirarmos os 30% de evangélicos, pelos dados do agregador do Estadão, teríamos Lula com cerca de 60% dos votos válidos. Uma vitória no primeiro turno estaria garantida.

Alguns, erradamente, teimam em atribuir uma pretensa culpa pela vitória de Bolsonaro em 2018 a este segmento. Naquela época escrevi um artigo em que busquei demonstrar que obviamente houve um importante papel do grupo na vitória, porém foi mais um dos vários componentes mobilizados pela campanha que redundou na vitória do candidato nas urnas (eletrônicas). Também cabe lembrar que ninguém é só evangélico, as pessoas são múltiplas e vários elementos contribuem para a nossa identidade e tomada de decisão.

Os evangélicos são o grupo religioso que mais considera a opinião de seus líderes na hora de decidir o seu voto, pesquisas indicam que cerca de 1/3 leva a opinião do líder em consideração. Os evangélicos também possuem impressionantes capilaridade social e organicidade, promovendo regularmente reuniões, sendo mais rápida e efetiva a comunicação voltada para esse grande contingente da população. 

No mundo digital também se destacam, 92% destes afirmaram possuir grupos de WhatsApp ligados à sua igreja ou religião. E possuem vários grupos, como demonstrou a pesquisa “Caminhos da Desinformação”. Entre católicos esse percentual foi de 70% e em outras religiões abaixo dos 50%. Essa profusão de grupos são um caminho aberto para a circulação de informação, propaganda eleitoral e, não podemos esquecer, desinformação.

Um outro elemento importante é uma significativa presença de confiança interpessoal entre evangélicos, dessa forma a tomada de decisão relacionada a “em quem votar”, se reveste de uma grande oportunidade para diálogos e trocas que consideram o compartilhamento de uma percepção de projeto que tem na igreja e nos irmãos e irmãs um importante elemento. 

Ter o voto desses fiéis exige investimento de recursos e de tempo dos candidatos, salientando que por haver uma maior importância das lideranças se estabelece um outro patamar de complexidade. Em um artigo publicado em 1996 explorei isso a partir da antropologia política evocando a importância da brokerage e de como a Igreja Universal inovava em um modelo de clientelismo em que a própria igreja desempenhava um papel de intermediária na relação entre eleitor e candidato.

Porém é importante frisar de que penso estarmos longe disso ter um sentido determinístico ou de alimentar teses sobre alienação e dominação. Podemos estar diante, em alguns casos, de situações que têm sido chamadas de “voto de cajado”, em uma atualização do “voto de cabresto” tão bem retratado na literatura sociológica por Victor Nunes Leal. Se isso é fato, por outro lado, também estamos diante do reconhecimento da presença e relevância social de um setor da população que há pouco tempo recebia em muitos casos olhares de desprezo por sua menor escolaridade, origem humilde e posição subalterna. As formas de alcançar esse público estão por ser descobertas e exigem atenção.

Parece que alguma coisa mudou por aqui e, talvez, da mesma forma que ao final do filme os moradores da Califórnia chegaram à conclusão de que não podiam viver sem os mexicanos, pode ser que nessas eleições de 2022 finalmente os partidos estejam devidamente conscientes de que precisam fazer campanha e dialogar com os/as evangélicos/as e suas lideranças de uma forma atenta e estruturada.

Já que não é possível uma eleição sem evangélicos, a disputa passa por garantir o aumento de votos neste segmento, isso parece ser um foco por parte das duas candidaturas à frente nas pesquisas. Isso se torna especialmente central para Bolsonaro, pois todas as suas tentativas de obter mais votos fracassaram em meio aos auxílios e à PEC Kamikaze. Parece que nessa reta final só lhe resta aumentar seus votos junto a este público que lhe deu ampla vantagem em 2018 e que tem dado sinais de uma certa manutenção da fidelidade. A candidatura do atual presidente sabe que precisa ampliar sua presença no segmento e que somente com ela será possível enfrentar Lula em um segundo turno.

Já para Lula a questão é a mesma, só que com o polo invertido. Isso se torna particularmente necessário diante da situação em que algumas das lideranças midiáticas e denominacionais atuam de forma dedicada na defesa da candidatura de Bolsonaro e, por meio de ações variadas como o acionamento de suas redes e instituições em uns casos e em outros até mesmo pela utilização de meios coercitivos, tomam lado e fazem campanha contra Lula. Um desempenho melhor entre evangélicos pode representar a chancela necessária para uma vitória no primeiro turno. O desafio envolve, então, a definição de um “modo petista” de se fazer campanha para/com evangélicos. Esta é uma condição que se coloca não só para essa, como também para as próximas eleições.

Foto de capa: Luis Quintero – Pexels

Postagens em mídias sociais mentem sobre esquerda ter proibido cultos e missas na Argentina

Circulam pelas mídias sociais e meios religiosos a informação de que a celebração de missas e cultos evangélicos foi vedada na Argentina. Segundo as postagens, a proibição teria partido da esquerda política no país. 

Imagem: reprodução de Twitter

Bereia recebeu pedidos de leitores para checar a veracidade da afirmação. Para isso, além de pesquisar em fontes jornalísticas da Argentina, foi contatado o pastor da Igreja Metodista Evangélica Argentina há quase 30 anos Leonardo Félix, que reside no país, e é também Diretor Executivo da Agência de Comunicações da América Latina e do Caribe (ALC notícias), e atual presidente da Associação Mundial para a Comunicação Cristã, região América Latina (WACC-Al).

Cultos evangélicos continuam ocorrendo normalmente na Argentina

Segundo Félix, não há e nunca houve qualquer restrição do tipo à população cristã na Argentina. Ele ainda complementa que, no país, a esquerda dificilmente poderia promover proibições no espaço público, pois não tem uma representação mínima na Câmara dos Deputados ou Senadores, e acrescenta: “aqui, a esquerda sequer possui este poder, já que em nenhum lugar, em nenhum estado, que aqui se chamam Províncias, há governos de esquerda”. O país é uma República regida pelos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.

Atualmente, o vizinho latino-americano é governado por Alberto Fernández e a vice Cristina Kirchner, ambos parte de uma coalizão governante – a Frente de Todos – que é uma conjunção de diversas dissidências do movimento peronista no país. Em linhas gerais, o Peronismo é um regime político de esquerda, construído pelo ex-presidente Juan Domingo Perón . Dentre os seus princípios fundamentais estão a soberania política, a independência econômica e a justiça social.

O pastor Felix ainda informou ao Bereia que conversou com contatos de partidos de esquerda, que não confirmaram qualquer movimento de desautorização dos cultos evangélicos. Tal conteúdo tampouco circula no país, onde o número de pessoas que se identificaram como cristãos evangélicos aumentou de 9% em 2008 para 15,3% em 2019, de acordo com a Segunda Pesquisa Nacional sobre Crenças e Atitudes Religiosas, apesar de o Catolicismo ser adotado como religião oficial.  A Argentina é um Estado Confessional, no qual a liberdade de culto está garantida constitucionalmente.

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Bereia classifica a informação como falsa. Durante o processo de produção desta checagem, além do líder religioso, foram consultados sites de notícias especializados em temas religiosos, assim como canais de mídias sociais, sem que fosse encontrado qualquer indício de intervenção do Estado ou partidos políticos nas instituições evangélicas argentinas. Bereia alerta para este tipo de conteúdo que faz uso político da religião com base em mentira para promover pânico moral entre fiéis contra determinados segmentos sociais. Também recomenda  que, antes de compartilhar qualquer informação em mídias sociais, os leitores e leitoras façam uma pesquisa sobre o tema, a fim de verificar a procedência das afirmações.  

Referências de checagem:

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. http://www.ceil-conicet.gov.ar/wp-content/uploads/2019/11/ii25-2encuestacreencias.pdf Acesso: 15 ago. 2022

El País. https://brasil.elpais.com/internacional/2021-11-15/eleicao-na-argentina-quem-e-quem-no-peronismo.html Acesso: 15 ago. 2022

Estado de Minas.

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/08/12/interna_internacional,1076633/entenda-o-peronismo-movimento-que-marca-a-historia-politica-argentina.shtml acesso: 15 ago. 2022

EBC.

https://memoria.ebc.com.br/noticias/internacional/2013/03/catolicos-sao-maioria-na-argentina Acesso: 18 ago. 2022

Possível repressão de Igreja Presbiteriana do Brasil a “esquerdismo” repercute em noticiários: Bereia verificou

Bereia acompanhou a repercussão de uma proposta de expurgo de membros da Igreja Presbiteriana  do Brasil (IPB) alinhados à esquerda e a partidos políticos. A proposta, compartilhada por grandes mídias de notícias, sites evangélicos e perfis em mídias sociais, fazia parte da documentação a ser apresentada no Supremo Concílio, órgão máximo de deliberação da denominação, entre os dias 24 e 31 de julho, em Cuiabá (MT). 

O documento que continha a proposta (com o selo “Aguardando aprovação”) foi divulgado nas mídias sociais da Secretaria Executiva da Igreja Presbiteriana do Brasil e no aplicativo iCalvinus. Ele foi compartilhado em mídias sociais e viralizou. Trata-se de um relatório assinado pelo Rev. Osni Ferreira, que propunha o que em várias mídias sociais e sites passou a ser chamado de “caça aos comunistas”. O relator, após a redação, divulgou um vídeo no Youtube, “Nós temos que reeleger Bolsonaro”, tornando explícita a orientação política em sua liderança.

Imagem: reprodução do app iCalvinus

A cobertura do caso pela grande imprensa

Além das mídias sociais, vários órgãos da imprensa tradicional, que não costumam pautar assuntos internos das igrejas, noticiaram o concílio da IPB e seus desdobramentos (referências ao final da matéria). 

Daniel Weterman (repórter do Jornal Estado de São Paulo, Brasília) foi o primeiro a publicar, em 21/07/2022, às 07h50, que havia uma proposta para cercear fiéis de esquerda, na IPB, tendo dado destaque, também, o tratamento preferencial ao candidato Jair Bolsonaro. 

Entrevistado por Weterman, contudo, o Rev. Osni Ferreira negou que a Igreja tenha candidato. Também ouvido, o presidente da igreja também procurou afastar conexões com a candidatura de Bolsonaro.“Cada pastor é responsável por aquilo que ele fala, por aquilo que ele pronuncia, e responde ao seu conselho e também ao presbitério. Quando a igreja faz um posicionamento oficial é através da minha pessoa, e nós não fizemos nenhum pronunciamento”, afirmou Roberto Brasileiro Silva ao jornal O Estado de São Paulo. 

O jornalista Matheus Leitão, da revista Veja, que é evangélico, também escreveu sobre o assunto em sua coluna (que se tornou a mais lida da semana naquele veículo). Ele chamou a proposta para o Supremo Concílio da IPB de “a nova vergonha da igreja evangélica”.  Neto de pastor, o colunista abriu espaço para vozes presbiterianas críticas do movimento de alinhamento da igreja com Jair Bolsonaro.

Reinaldo Azevedo, católico romano e jornalista político da rádio Band News FM, abordou o assunto no programa “É da Coisa”. O comentarista cita uma das doutrinas mais enfatizadas pela denominação presbiteriana, a predestinação, o entendimento de que Deus determinou de antemão o “destino” da humanidade. 

“A ideia da predestinação é muito importante para a Igreja Presbiteriana. Eu pergunto aos irmãos presbiterianos: vocês acham mesmo que Jair Bolsonaro é compatível com a ideia da predestinação? Será isso o que Deus nos reservou?”. Reinaldo Azevedo,, além de comentar a proposta, alertou: “se a Igreja Presbiteriana fez a opção de se tornar partido político, deve também abrir mão da isenção de impostos, da qual gozam os evangélicos, suas igrejas, pastores e instituições” . 

Resistências internas

Movimentos de grupos resistentes internos à igreja, além da divulgação pela imprensa, resultaram em pressões sobre a reunião que levaram a ações de inviabilização da proposta. A Folha de S.Paulo noticiou a apresentação de um substitutivo (com uso das regras do Concílio) pelo pastor Cid Pereira Caldas.

No texto apresentado por Caldas consta que a “IPB tem mantido equidistância de radicalismos” e a defesa de que “não é finalidade da IPB manifestar-se sobre partidos políticos”.O relatório substitutivo foi aprovado pelo Supremo Concílio, por maioria, em 29/07/2022, por 738 votos contra 538. 

A Folha também apurou que “Cid Pereira Caldas é presidente do Conselho de Administração do Instituto Presbiteriano Mackenzie e pastor da Igreja Presbiteriana de Botafogo. Ele é próximo do presidente do Supremo Concílio da IPB, Roberto Brasileiro”. No mesmo texto, cita-se que “três membros da cúpula da IPB e interlocutores de Cid afirmaram à Folha, sob reserva, que o relatório inicial tinha potencial para rachar a igreja como ocorreu na década de 1970, durante a ditadura militar. Na época, a Igreja Presbiteriana do Brasil apoiava o governo militar. Indignados, pastores decidiram romper com a liderança da instituição e criaram a Igreja Presbiteriana Unida”. Não foram ouvidos, pela Folha, os representantes na Igreja Presbiteriana Unida (IPU), apesar do Supremo Concílio da IPB também ter aprovado, nesta mesma reunião de 2022, documento no qual declara “que a IPB não reconhece a IPU como genuinamente evangélica”. Também não foram ouvidos os vários lados nessa matéria.

Imagem: reprodução da Folha de S. Paulo

Alinhamento político

Pesquisa do Instituto Datafolha, publicada em 28 e 29 de julho de 2022 constatou que a candidatura de Lula (PT) tinha 18 pontos à frente de Jair Bolsonaro (PL). Em todos os segmentos, o candidato do PT mantinha a liderança, com exceção dos mais ricos (44% dos que ganham até mais de 5 salários mínimos), empresários (54%) e evangélicos ( Bolsonaro tem 43%, contra 33% de Lula).

Este alinhamento do segmento evangélico com a candidatura de Jair Bolsonaro, embora não seja majoritário, tem sido bem constatado nas cúpulas e concílios de várias igrejas. Curiosamente, reproduz-se o posicionamento de uma dissidência entre os presbiterianos (que não faz parte da IPB), a “Igreja Presbiteriana Conservadora” como lugar comum – a pauta anti-esquerda e anti-identitária está disseminada nas igrejas.

A Convenção Batista do Brasil está discutindo a sua matriz doutrinária (princípios) e já expulsou da ordem de pastores batistas o pastor da Igreja Batista da Água Branca (São Paulo-SP) Ed René Kivitz, por suas posições progressistas. Também houve intervenção da Igreja Adventista do Sétimo Dia em uma de suas mais famosas comunidades (Nova Semente) com o afastamento do pastor Edson Nunes. Até mesmo a Igreja Presbiteriana Independente (IPI), ramo dissidente da IPB, que ordena mulheres pastoras, reuniu-se-se em concílio, uma semana após a IPB, com uma pauta para que a Assembleia Geral não acatasse nenhum documento que proponha posicionamento da instituição favorável às relações homoafetivas e de identidade de gênero, além de não receber, nas igrejas locais, pessoas que militam em favor das causas LGBTQIA+. Além disso, o documento também determina uma intervenção na FATIPI (Faculdade de Teologia de São Paulo da igreja) para afastar professores que defendam tais pautas.

Embora oficialmente haja algum silêncio por parte das cúpulas das igrejas históricas no espaço público quanto a questões políticas, na prática, observa-se uma convergência excludente.

De todos os órgãos de imprensa que cobriram o caso do Supremo Concílio da IPB, apenas a coluna de notícias do UOL ouviu pessoas perseguidas por suas posições políticas dentro da Igreja.

***

Bereia conclui que embora os fatos noticiados sobre o clima de exclusão na Igreja Presbiteriana do Brasil sejam verdadeiros, a cobertura da imprensa foi parcial, pois não houve abordagem ampla sobre os movimentos de resistência internos bem como de consideração da memória histórica. A cultura de exclusão presente na IPB e em outras igrejas não foi tratada, o que auxiliaria os leitores a entender melhor o movimento e as medidas internas nas igrejas. Por exemplo,  nenhum veículo noticiou o sombrio momento vivido pelas igrejas durante a ditadura militar – material que está disponível para acesso público.

Referências de checagem:

Veja. 

https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/o-pastor-heroi-brasileiro-perseguido-por-bolsonaristas-e-fundamentalistas/ Acesso em: 3 ago 2022.

https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/a-nova-vergonha-da-igreja-evangelica-com-bolsonaro-agora-em-2022/amp/ Acesso em: 3 ago 2022.

Adventistas. http://www.adventistas.com/2022/07/03/depois-de-remocao-do-pastor-edson-nunes-da-nova-semente-leonardo-goncalves-publica-carta-aberta-a-iasd-na-america-do-sul/comment-page-1/ Acesso em: 3 ago 2022.

Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/lgbt/2022/7/27/perseguio-igreja-presbiteriana-independente-decide-se-pode-excluir-membros-lgbtqia-120800.htm Acesso em: 3 ago 2022.

UOL.

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/28/por-posicao-esquerdista-teologo-e-afastado-da-presbiteriana-diz-jornal.htm Acesso em: 3 ago 2022.

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/07/29/igreja-presbiteriana-reduz-tom-contra-esquerda-mas-mantem-brecha-para-punicao.htm Acesso em: 3 ago 2022.

https://www.uol.com.br/eleicoes/2022/07/20/igreja-presbiteriana-diretriz-anti-esquerda-comunismo.htm Acesso em: 3 ago 2022.

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/28/por-posicao-esquerdista-teologo-e-afastado-da-presbiteriana-diz-jornal.htm Acesso em: 3 ago 2022.

Comissão Nacional da Verdade. http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/16-grupos-de-trabalho/28-papel-das-igrejas-durante-a-ditadura.html Acesso em: 3 ago 2022.

Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil. https://ipcb.org.br/index/posicionamento-da-igreja-presbiteriana-conservadora-do-brasil-em-relacao-a-esquerda/ Acesso em: 3 ago 2022.

G1. https://g1.globo.com/politica/blog/gerson-camarotti/post/2022/07/30/igreja-presbiteriana-rejeita-proposta-que-inibiria-voto-de-fieis-na-esquerda.ghtml Acesso em: 3 ago 2022.

O Dia. https://odia.ig.com.br/brasil/2022/07/6454195-igreja-presbiteriana-reduz-tom-contra-esquerda-mas-mantem-brecha-para-punicao.html Acesso em: 3 ago 2022.

Folha de S. Paulo.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/igreja-presbiteriana-desiste-de-veto-a-cristao-de-esquerda-para-evitar-racha-interno.shtml Acesso em: 3 ago 2022.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/datafolha-bolsonaro-se-descola-de-lula-e-lidera-entre-evangelicos.shtml Acesso em: 3 ago 2022.

Yahoo. https://br.vida-estilo.yahoo.com/igreja-presbiteriana-desiste-veto-crist%C3%A3o-133300164.html Acesso em: 3 ago 2022.

IstoÉ Dinheiro. https://www.istoedinheiro.com.br/igreja-presbiteriana-reduz-tom-contra-esquerda-mas-mantem-brecha-para-punicao/ Acesso em: 3 ago 2022.

Terra. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/igreja-presbiteriana-tenta-barrar-esquerda-e-abre-pulpitos-para-bolsonaro,fad5e1fbcf5a93fd86ff5e8cb8c983c7uj7a1915.html Acesso em: 3 ago 2022.

Leia Já. https://www.leiaja.com/politica/2022/07/19/suposto-documento-de-igreja-caca-obreiros-comunistas/ Acesso em: 3 ago 2022.

Gospel Prime. https://www.gospelprime.com.br/igreja-presbiteriana-quer-comissao-para-combater-influencia-de-esquerda/ Acesso em: 3 ago 2022.

YouTube. https://youtu.be/vNRPICMdSA0?t=2760  Acesso em: 3 ago 2022.

Coletivo Bereia. https://coletivobereia.com.br/wp-content/uploads/2022/08/esquerdista_doc-icalvinus-2022.pdf Acesso em: 3 ago 2022.

Direita e esquerda no Brasil: o imaginário, o digital, o caos

Novas formas de ativismo passaram a compor o cenário político brasileiro, traduzindo as mudanças significativas na organização e mobilização política  na era das novas tecnologias, mídias sociais, influenciadores digitais, disparos de mensagens em massa etc, conferindo à esfera pública digital e à opinião pública um papel fundamental sobre as mediações que realiza entre os cidadãos e o Estado. 

A pesquisa “Cara da Democracia no Brasil” realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação fornece algumas pistas para tentar compreender estas e outras  importantes mudanças no comportamento, nas atitudes, nas crenças e valores dos cidadãos brasileiros com relação à democracia, temas que dominam o debate público desde a eleição de Jair Bolsonaro, como legalização do aborto, descriminalização das drogas e direitos das chamadas minorias. 

De acordo com a pesquisa, o dobro dos brasileiros se diz mais à direita do que  à esquerda no espectro político. Entretanto, devemos levar em conta que a compreensão do significado do que é pertencer à direita ou esquerda não alcança a maioria da população, e muitas percepções mudam ao longo do tempo. 

Direita e esquerda

Os termos direita e esquerda no campo político surgiram no turbulento período da Revolução Francesa de 1789. Durante os acalorados debates na Assembleia Constituinte a respeito do poder que o rei Luís 16 deveria ter a partir daquele momento, o grupo conservador, favorável à manutenção dos poderes da monarquia, ficaram à direita; enquanto os progressistas ou revolucionários, que defendiam diminuir os poderes do rei, sentaram-se à esquerda. 

Com o passar dos anos, as diferenças entre os grupos evoluíram para outros temas, além dos poderes da monarquia, que pouco tempo depois chegou ao fim. Com a direita em busca de uma república vinculada à Igreja e um Estado com mercado liberal e a esquerda lutando por um Estado laico e regulador na economia. Em alguns países os termos progressistas e reacionários, conservadores e liberais ou democratas e republicanos nomeiam esses espectros políticos opostos. No Brasil, mais de 200 anos depois das discussões na França,  os campos da esquerda e direita, com diversos tons entre os extremos de cada lado, continuam polarizando o debate político. 

A pesquisa “A Cara da Democracia”, para tentar compreender onde cada brasileira está posicionado neste debate, apresentou um questionário no qual os entrevistados deveriam marcar de 1 a 10, sendo 1 o máximo à esquerda e 10 o máximo à direita. 

Imagem: reprodução de O Globo

Entretanto, chama atenção na pesquisa – para além de uma direita sedimentada que convive com algumas opiniões progressistas pontuais – o grande número de brasileiros que acreditam em teorias da conspiração. Apresenta-se como um desafio compreender de que maneira essas bizarras teorias ocuparam o imaginário social, o conjunto de crenças, de parte da população.

É espantoso que 20% dos entrevistados acreditam que a Terra é plana, 21% que a cloroquina cura a covid-19, e 27%  não acreditam que o ser humano pisou na lua. No aspecto “ideológico” das conspirações, os números são ainda maiores,  49% acreditam que a China criou a covid-19 e uma das teorias mais difundidas pelo bolsonarismo, o globalismo (ideia de que  a globalização econômica passou a ser controlada pelo “marxismo cultural”), é acolhida por 44% dos entrevistados, que acreditam em uma conspiração global da esquerda para tomar o poder no mundo. O falecido guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho e o ex chanceler Ernesto Araújo difundiram o globalismo incansavelmente. 

Imagem: reprodução de O Globo

Como explica a jornalista e doutora em Ciências da Comunicação Magali Cunha, em seu artigo O lugar das mídias no processo de construção imaginária do “inimigo” no caso Marco Feliciano, “os seres humanos vivem de imagens, vivem de imaginação socialmente construída, o que forma e reforma suas crenças, sua linguagem e suas atitudes frente às demandas da vida e do outro”. 

Desta maneira, “o imaginário é, portanto, um componente da existência humana como experiência marcadamente social, que dá sentido à vida coletiva e é ressignificado por ela. Imaginário é a elaboração coletiva da coleção de imagens formada pelo ser humano, de tudo o que ele apreende visualmente e experencialmente do mundo.” 

O cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Leonardo Avritzer, afirma que Bolsonaro adota uma tática para (des)governar que está relacionada à ampla base constituída nas redes sociais e degrada as instituições a partir de uma rede impressionante de geração de fake news.   Especificamente a respeito da pesquisa “A Cara da Democracia” e número de brasileiros que acreditam em teorias da conspiração, Leonardo Avritzer destaca que há os dois caminhos para entender a adesão de brasileiros aos apelos conspiratórios: “Há, primeiramente, o nível baixo de escolaridade, especialmente em questões como se a terra é plana. Em outros temas, há um amplo processo de desinformação nas redes sociais, especialmente quando recebem informações das estruturas de confiança delas, como instituições religiosas, família, ou local de trabalho. 

Na campanha eleitoral de 2018, Jair Messias Bolsonaro reuniu os discursos conservador tradicional, neoliberal, populista e religioso em uma nova combinação e elaborou uma retórica sem precedentes no Brasil. Tal rearticulação discursiva materializa um projeto hegemônico para a constituição de uma nova base e agenda política, liberal na economia e conservadora nos costumes, que é uma das facetas de um projeto político mais amplo de reestruturação da hegemonia do bloco centrado na elite econômica e financeira do país em novas condições. 

De acordo com o sociólogo Jessé Souza, “distorcer o mundo social é parte do projeto das classes dominantes para subjugar os demais segmentos da sociedade e se apropriar da riqueza nacional e só a percepção adequada da dimensão cultural e simbólica da vida social nos permite uma compreensão mais profunda e verdadeira da vida que levamos como indivíduos”.  No Brasil de Bolsonaro, as pautas morais e o inimigo comunista alimentam o imaginário de grande parte da população. As mídias sociais são o caminho.

“Engenheiros do Caos”

Na obra “Os Engenheiros do Caos: Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições, Giuliano da Empoli (2019) refaz os caminhos percorridos por figuras como Gianroberto Casaleggio _ cofundador do partido italiano Movimento Cinco Estrelas e um dos primeiros a utilizar a internet e as redes sociais para fazer política, Steve Bannon – guru de Donald Trump e um dos principais nomes da ultradireita no mundo, Milo Yiannopoulos – comunicador e “blogueiro” inglês, apoiador convicto da “liberdade de expressão” e crítico feroz do “politicamente correto” e Arthur Finkelstein – conselheiro de Viktor Orban, presidente ultraconservador da Hungria, que juntos “estão em vias de reinventar uma propaganda adaptada à era das selfies e das redes sociais, e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático”. Esses são os Engenheiros do Caos. 

O engajamento técnico: curtidas, comentários e compartilhamentos, tão buscados pelos executivos de marketing e publicidade das grandes empresas, é também o objetivo desses “profissionais” da esfera pública digital. Assim, colocam os algoritmos das redes sociais digitais ao seu favor, pois se os programadores do Facebook ou Instagram, por exemplo, trabalham para atrair e prender a atenção dos usuários pelo maior tempo possível, os algoritmos e ferramentas dos Engenheiros do Caos têm a mesma finalidade, capturar a razão dos indivíduos, neste caso, através da emoção, com iniciativas como o projeto Brasil Paralelo, produtora de conteúdo de extrema-direita, inspirado nas ideias de figuras como Olavo de Carvalho. Buscam “recontar” a História do Brasil,  e as teorias da conspiração são a matéria prima de suas produções e documentários. Um projeto que à primeira vista pode parecer independente e feito por alguns jovens conservadores com “uma ideia na cabeça”, é parte de um movimento bem orquestrado, organizado e muito bem financiado.                          

Não importa se as posições apresentadas são absurdas, mentirosas ou fantasiosas, pois estão pautadas em uma questão numérica de engajamento e não são baseadas em valores éticos. A meta é identificar e hackear as aspirações e os temores dos usuários das mídias sociais digitais e fazer com que interajam com outros que defendem as mesmas posições e com as páginas ou perfis que apresentam estes conteúdos.

Magali Cunha explica que exércitos precisam de inimigos e a Teologia de um Deus guerreiro e belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade de identificação de inimigos a serem combatidos, através dos tempos estes inimigos foram, em maior ou menor grau, a Igreja Católica, as religiões afro-brasileiras, os comunistas e mais recentemente, a população LGBTQIA+. Parte das estratégias no quadro das disputas político-ideológicas baseadas no enfrentamento de inimigos estabelecidos simbolicamente é criar uma “guerra” pela visibilidade, que comumente envolve números e exposição nas mídias. 

As consequências na política nacional

 Jair Bolsonaro e os seus próprios Engenheiros do Caos deram ainda uma nova roupagem a esse discurso, unindo a ameaça aos valores tradicionais da família e da ameaça comunista. Esses temas não são novos, mas a utilização das redes sociais digitais é a novidade.

Jessé Souza afirma que “colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso”.  De nada adianta os Engenheiros do Caos proclamarem as virtudes do governo atual e demonizar os governos de esquerda se ninguém acreditar nisso. E essa lavagem cerebral, ou melhor, privação sensorial, é turbinada pelas notícias falsas, teorias da conspiração, manipulação de dados e desinformação, turbinados pelas mídias sociais digitais e legitimadas por políticos, religiosos e influenciadores digitais. Algumas vezes, um indivíduo representa tudo isso, como o pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia. 

Nessa bolha sinistra que comporta as mais inusitadas ideias e conspirações, os indivíduos em busca de acolhimento, reconhecimento e alguma explicação para seus anseios, parecem cada vez mais presos e hipnotizados. As teorias da conspiração, preconceitos e ódio sempre estiveram entre nós, no entanto, as redes sociais digitais conectaram pessoas com interesses em comum, inclusive os mais negativos. Os Engenheiros do Caos perceberam este poder das mídias sociais digitais e a utilizaram para manipulação da informação com fins políticos. 

Derrotar Jair Bolsonaro é, para muitos analistas, fundamental para estancar esse processo do que podemos chamar de privação sensorial. Temos o componente religioso e conservador, um grande número de evangélicos e católicos representados por líderes políticos e influenciadores digitais nada cristãos, além de um grande contingente, independentemente de classe social ou nível de escolaridade, que lê cada vez menos, escreve cada vez menos, interpreta cada vez menos e tem nas mídias sociais digitais sua única fonte de informação. 

Contudo, mesmo derrotando o atual presidente nas urnas, esse grupo extremista e seus métodos continuarão em atuação na esfera pública, buscando provocar uma ruptura no sistema democrático. Estes seres não estão mais nas sombras, são métodos e táticas são debatidos em artigos, livros e documentários, mas como um espectro sinistro, são difíceis de abalar ou capturar.

Imagem de capa: Gerd Altmann por Pixabay

Ministra Cármen Lucia é acusada em mídias digitais de assinar carta pró-aborto

* Matéria atualizada às 11:31

Circulou nas mídias sociais e portais de notícias gospel a notícia de que ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármem Lúcia Rocha, participou de uma reunião fechada com ativistas feministas e assinou carta pró-aborto. Nas matérias vinculadas ao tema é apontado ainda que a reunião realizada pela ministra em seu gabinete contou com cerca de 30 mulheres ligadas a partidos de esquerda progressistas, como a ex-senadora Marta Suplicy, resultando em uma carta pública em defesa do aborto. 

Imagem: Reprodução portal Gospel Prime

De acordo com os sites de notícias, a reunião aconteceu em ambiente fechado e houve, por parte da ministra e de Marta Suplicy, a tentativa de “disfarçar” a defesa do aborto usando o termo “direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, criando assim uma “carta pró-aborto”, que legalizaria e incentivaria o procedimento.

Imagem: reprodução Twitter Gazeta do Povo

Bereia checou as informações. A carta assinada pela ministra se refere à Carta Aberta Brasil Mulheres, texto publicado pelo portal Brasil mulheres, fruto da reunião realizada em 28 de janeiro de 2022, organizada pela ex-senadora Marta Suplicy em sua casa. O encontro contou com a participação de 28 mulheres convidadas, dentre elas a ministra Cármen Lúcia, a escritora e filósofa Djamila Ribeiro, a líder do movimento Sem-Teto do Centro Carmem Silva e a secretária municipal de Cultura de São Paulo Aline Torres, além de outras. O debate durou pouco mais de dez horas, e aprovou 19 tópicos com demandas dirigidas aos futuros presidenciáveis. 

O texto final intitulado “Carta Aberta Brasil Mulheres” tem temas variados que se estendem, desde o pedido por políticas públicas para mulheres negras, afirmação de direitos à população LGBTQ+, direito à saúde reprodutiva feminina até propostas em prol dos direitos de mulheres sob custódia do sistema prisional. Em entrevista à Folha de São Paulo, Suplicy afirma que “são propostas para que a sociedade reflita sobre essas demandas que essas mulheres têm. Aqui são mulheres de várias áreas, de várias condições, com muito sofrimento, muita dor, muita alegria, muita superação, muito sucesso. Tem de tudo. É uma somatória de bagagens mil”, afirmou. A ministra Carmém Lúcia estava presente durante o processo de debate e escrita da carta, chegando a discursar durante a reunião. 

Pautas sobre a legalização e regulamentação do aborto foram apresentadas e dabatidas na reunião, e, por opção das mulheres presentes, o termo “aborto” foi tratado como tema geral referente à saúde reprodutiva feminina, não havendo nenhuma inferência direta na criação de um projeto pró-abortivo. 

Fonte: Captura de tela canal Brasil Mulheres no Youtube 

A carta 

A carta aberta dirige-se ao público geral e também aos futuros presidenciáveis, contando com 19 pontos. Leia na íntegra:

  1. Não aceitar qualquer retrocesso nas leis que garantam os direitos das mulheres. Não vetar avanços oriundos do Congresso Nacional aos direitos das mulheres;
  2. Paridade transversal de gênero e equidade de raça nas instituições públicas, políticas e privadas;
  3. Estímulo e facilitação de candidaturas femininas competitivas. Garantia de cumprimento da legislação eleitoral em relação às mulheres;
  4. Garantia da alocação de recursos para políticas públicas destinadas a meninas e mulheres nas leis orçamentárias (plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei do orçamento anual) e ferramentas efetivas para acompanhamento da execução desses gastos;
  5. Desenvolvimento de macropolíticas econômicas e sociais com vistas à geração e manutenção de empregos e renda para mulheres. Acesso a crédito para mulheres empreendedoras; conexão com inovação, programas de educação empreendedora para geração de renda; acesso ao mercado por meio de cotas de compras de empresas públicas e privadas. Qualificação profissional, para autonomia financeira, de mulheres negras, indígenas, quilombolas e em situação de vulnerabilidade social;
  6. Implementação de uma política de renda básica universal capaz de mitigar a pobreza, a fome, as desigualdades socioeconômicas e violências decorrentes;
  7. Universalização da educação infantil, garantindo o atendimento aos indicadores nacionais de qualidade para esta etapa de ensino. Promoção da oferta educacional laica e gratuita e a ampliação da escolaridade. Cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação. Incentivo à educação em ciência, tecnologia e empreendedorismo para meninas e mulheres, com atenção à juventude negra. Priorização na educação em geral e na educação de jovens e adultos (EJA), possibilitando que as mães estudem no mesmo período que os filhos e/ou criando espaços de cuidado para crianças no local de estudo da mãe;
  8. Construção de um programa nacional de incentivo a formação de novas gerações de atletas femininas (cis e trans) em diversas modalidades, incentivando o investimento na manutenção das potências esportivas que atuam e representam o Brasil.
  9. Ampliação de políticas de ações afirmativas étnico-raciais reparatórias – educacionais, de paridade econômica e memória – visando a erradicação das desigualdades socioeconômicas existentes na sociedade;
  10. Promoção da saúde integral da mulher ao longo de todo o ciclo de vida, com especial atenção à mulher idosa. Manutenção e expansão dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Investimento em pesquisas científicas, campanhas preventivas e de estímulo à vacinação. Valorização e defesa do Sistema Único de Saúde (SUS);
  11. Reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidados, como centrais à vida; reengenharia do tempo e fortalecimento da economia dos cuidados para melhoria das condições de vida e bem-estar das mulheres. Atenção ao tema da economia do cuidado (ou do trabalho reprodutivo) por meio de políticas públicas e arcabouço normativo que valorizem o trabalho, remunerado ou não, das mulheres que cuidam;
  12. Respeito e preservação dos direitos de todas as famílias em suas múltiplas manifestações. Ampliação da licença parental com equidade de gênero. Educação masculina para os cuidados. Políticas públicas que se guiem pela proteção das mulheres nas violências intrafamiliares. Garantia de vagas em creches de forma contínua, em período integral, para todas as crianças na condição de serviço público essencial. Iniciativas de amparo às crianças e adolescentes com mães presas, órfãos do feminicídio ou mães em situação de extrema vulnerabilidade;
  13. Enfrentamento ao discurso de ódio, violência política e institucional e cerceamento da liberdade de expressão de todas as mulheres, em especial proteção contra os ataques às mulheres jornalistas, políticas, artistas e defensoras de direitos humanos;
  14. Defesa da vida de meninas e mulheres, cis, trans e travestis. Enfrentamento ao feminicídio, às violências doméstica, política, física, psicológica, obstétrica, simbólica, moral e patrimonial. Estabelecimento de uma política integral de acolhimento e cuidado de mulheres e crianças em situação de violência. Desenvolvimento de um programa nacional de prevenção à violência sexual e de acolhimento às vítimas e às famílias de vítimas. Formulação de um marco civil de gênero;
  15. Adoção de uma abordagem pacífica para a reforma da política de drogas, com atenção às mulheres que respondem por delitos relacionados a drogas, cuidado pautado na redução de danos. Garantia de direitos e incentivo a produção de dados sobre o tema;
  16. Reforma no modelo de segurança pública – enfrentamento ao encarceramento em massa, aos índices de homicídio da população negra, efetiva implementação da lei de execuções penais (acesso aos autos do processo, remissão pela leitura e cultura, garantia de direitos sexuais, reprodutivos e saúde menstrual, trabalho decente, educação nas áreas tecnológicas e de cultura, estrutura adequada das cadeias e prisões, acesso ao direito de defesa), garantia de saúde mental para pessoas presas e seus familiares. Consulta a pessoas trans, travestis, não-binárias ou intersexo sobre a preferência pela custódia em unidade masculina, feminina ou específica, se houver, com a devida garantia de proteção em qualquer das unidades. Envolvimento dos três entes federados na inclusão e garantia de direitos de adolescentes em conflito com a lei, pessoas encarceradas e seus familiares e egressas;
  17. Recriação do Ministério da Cultura. Desenho e implementação de políticas de memória que valorizem as mulheres. Fomento à cadeia produtiva cultural nacional (leis de incentivo). Políticas de incentivo ao livro e à leitura, com formação de público leitor. Valorização de artistas e sua produção. Criação e manutenção de aparelhos de cultura. Retomada do vale cultura. Respeito à liberdade de expressão artística e cultural;
  18. Valorização dos saberes de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, na garantia da justiça climática e enfrentamento ao racismo ambiental, com implementação e cumprimento das normas ambientais de espectro local e global;
  19. Garantia da implementação de políticas intersetoriais para a proteção integral de mulheres refugiadas, migrantes legais e ilegais.

Bereia classifica a notícia como imprecisa, com título enganoso. A carta em questão existe e foi assinada pela ministra, porém o documento trata de um esforço coletivo de mulheres em prol de melhores condições de vida para este segmento da população, não havendo incentivo ou sinalização de legalizar o aborto, mas sim a defesa da manutenção e expansão dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A ministra Cármen Lúcia é uma das mulheres que participaram do projeto, mas não sua principal argumentadora ou organizadora. A abordagem dada pelos veículos busca atribuir a ela um expressivo poder sobre a redação final do manifesto, não levando em consideração outras mulheres e pautas envolvidas no processo. 

Bereia avalia que este tipo de desinformação faz parte de um repertório que busca: 1) alimentar pânico moral em torno da afirmação de que grupos de esquerda e progressistas são defensores do aborto com vistas ao processo eleitoral 2022, repetindo o que ocorreu em pleitos anteriores para conquista de público religioso para propostas de cunho conservador, negadoras da manutenção e da ampliação de direitos para mulheres; 2) sustentar discursos anti-STF, que têm sido pauta de grupos bolsonaristas em mídias sociais, desde o primeiro ano do mandato do atual governo. Estes dois repertórios desinformativos vêm sendo verificados pelo Bereia e por outros projetos de checagem de conteúdo.

Foto de capa: Nelson Jr./SCO/STF

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Referências: 

Brasil Mulher. https://brasilmulheres.com.br/ Acesso em: 07 de fev. de 2022

Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=5D81js5L-K8&t=3s Acesso em: 07 de fev. de 2022

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2022/01/grupo-liderado-por-marta-suplicy-pede-direitos-as-mulheres-cis-e-trans-em-carta-a-nacao.shtml acesso em: 07 de fev. de 2022

Geledés. https://www.geledes.org.br/carta-aberta-brasil-mulheres/ Acesso em: 07 de fev. de 2022 

Twitter. https://twitter.com/gazetadopovo/status/1489294791397552133?s=20&t=mAgEwleRRGTOjzRVWVYI0Q cesso em: 07 de fev. de 2022

Templos, igrejas e protestos

Nesses dias, a imprensa ávida por qualquer notícia sensacionalista que legitime denúncias contra movimentos populares e partidos considerados de esquerda, se deleitou com imagens e narrativas do que chamaram de invasão de uma igreja em Curitiba. Autoridades eclesiásticas e civis protestaram contra o desrespeito ao lugar sagrado e o assunto está sendo debatido na própria câmara de vereadores da cidade. 

O debate se dá sobre o fato de os manifestantes terem entrado na igreja depois da missa e terem expressado dentro do templo a denúncia contra o assassinato truculento e cruel de Moïse, jovem congolês, barbaramente torturado e assassinado, em um quiosque na Barra da Tijuca, e também da morte de outro negro, baleado por vizinho policial, que o confundiu com um ladrão. Naquele final de semana, em diversas regiões do Brasil, ocorreram manifestações de protestos contra esses atos extremos de racismo contra negros. Em Curitiba, no centro histórico da cidade, o ato se reuniu em frente a uma Igreja, que foi historicamente de confraria negra. Depois do horário da missa, no final da tarde, os manifestantes entraram na Igreja e encerraram ali o seu protesto pacífico. 

Sobre o fato, podem se fazer várias considerações. Antes de tudo, em termos metodológicos e estratégicos, organizações populares e partidos progressistas tomaram posições críticas em relação ao ocorrido. De fato, o grupo que fazia a manifestação não sofreu nenhuma perseguição. Não fugia de nenhuma repressão e não precisava ter ocupado a igreja, sem permissão dos responsáveis pelo templo. 

Do ponto de vista institucional, todos sabem que a maioria dos eclesiásticos católicos concorda que igrejas sejam usadas para missas de posse de governadores ou prefeitos de direita. No entanto, considera desrespeito ao lugar sagrado qualquer manifestação de categorias populares que possa ser vista como de esquerda. 

Em Roma, o Papa Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e defender a vida de migrantes africanos, mas essa ainda não é a sensibilidade de muitos ministros e fiéis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que “vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, esse assunto parece não fazer ainda parte do anúncio da fé e da missão da Igreja.  

Na época da ditadura militar brasileira, em Recife, estudantes que protestavam contra a repressão ocuparam uma igreja no centro da cidade. Assim que soube, o próprio arcebispo Dom Helder Câmara foi para a igreja e se colocou lá ao lado dos estudantes até conseguir que eles pudessem sair do templo em segurança. O mesmo ocorreu em Salvador (BA) onde a igreja ocupada pelos rapazes e moças foi a basílica do Mosteiro de São Bento. O abade Dom Timóteo Anastácio não somente abriu as portas da igreja como declarou o Mosteiro como espaço de abrigo e santuário de proteção da juventude. Do mesmo modo, em São Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Igreja Matriz foi abrigo para assembleias dos metalúrgicos em greve perseguidos pela ditadura. 

Atualmente, embora em outro contexto político, a sociedade tem direito de cobrar dos responsáveis das igrejas a coerência profética com o evangelho de libertação. Originalmente, o Cristianismo não tinha templos e sim igrejas. Enquanto os santuários se colocam como locais sagrados, igrejas significam espaços de assembleia. 

Quando o apóstolo Paulo chamou as comunidades sobre às quais escrevia como “igrejas”, estava afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo império, mas que, nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje, quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja? 

Ao mesmo tempo que desejamos que os movimentos populares sempre se esmerem por respeitar educadamente a todos os ambientes e deem exemplo de diálogo com todas as pessoas com as quais se encontram, pedimos a Deus que os discípulos de Jesus aceitem retomar o caráter profético da fé cristã. 

Mesmo sabendo que a postura do arcebispo e da Arquidiocese de Curitiba tem sido, em geral, mais aberta e solidária, sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente não se oponham, como fiquem felizes quando suas igrejas forem ocupadas pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.

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Foto de capa: Fotografia Curitiba

A indignação de São Benedito no trágico fim de Moïse Kagambe

As informações disponíveis na mídia e redes sociais sobre o protesto contra o assassinato do refugiado político congolês de Moïse Kagambe, num quiosque da Barra da Tijuca/RJ, em 24 de janeiro de 2022, tiveram uma dupla conotação. De um lado, visibilizar a indignação que o ato brutal contra o trabalhador informal, que ironicamente procurou segurança no Brasil ao fugir da guerra em seu país, e a necessidade de manifestar o grau de barbárie que se instalou como uma forma de solução de conflitos. De outro lado, marcar o posicionamento político dos presentes no ato – organizado pelo vereador da Câmara de Curitiba/PR Renato Freitas (PT), em 5 de fevereiro e 2022 –, denunciando o racismo e violência estrutural entranhadas na sociedade brasileira, bem como a urgente necessidade de sua superação. Porém, o ato que tinha forte potencial de indignação acabou sendo confusão. 

Segundo declarações do próprio organizador, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, erguida por escravos em 1737, foi escolhida por ser considera símbolo de resistência contra a escravidão em solo brasileiro. Numa primeira leitura, a opção simbólica foi uma evocação histórica acertada pelo peso político e religioso que possa ter. Porém, durante o protesto vieram à tona acusações à Igreja Católica sobre os resquícios de racismo religioso que a acompanham, revelando a longa convivência do cristianismo com a escravidão, uma das diversas dimensões que o termo encerra. Tanto o aspecto simbólico quanto os conteúdos (racismo religioso, racismo estrutural, violência, perda de humanidade) do protesto são válidos e legítimos, mas, talvez a performance na ocupação da igreja não tenha tido o impacto desejado. Isso porque, protestos em espaços sagrados têm sua própria lógica e a eficácia política advêm do uso da linguagem religiosa (por exemplo vigílias frente à igreja, silêncios prolongados, velas e cruzes, procissões etc.). 

Além disso, forma parte do impacto desses atos as articulações com os grupos religiosos, como por exemplo, neste caso, a pastoral do imigrante, pastoral do negro, pastorais sociais. Tudo isso, contribui para angariar adesão à “causa”, legitimidade no uso do espaço e reverbera entre os fiéis e a sociedade a performance que tem como palco o espaço sagrado. Constata-se no protesto liderado pelo vereador um duplo barulho: uma contradição entre os conteúdos da denúncia do racismo religioso e a escolha assertiva da igreja como palco performático. Essa colisão neutralizou o objetivo principal do ato e o protesto rumou por caminhos contrários e indesejados, até para os organizadores. Todavia, estão por vir as consequências e o seu desfecho, possivelmente com repercussões jurídicas, administrativas e processuais para seus envolvidos.

Sem dúvida que, uma das reações institucionais é a de preservação patrimonial,  zelo pelo uso do espaço sagrado, o que é válido e legítimo. Muitas vezes a defesa desse espaço (territorial e simbólico) obriga seus guardiões (sacerdotes e bispos) a invocar o direito à defesa da liberdade religiosa e reagir perante possíveis ameaças de profanação, depredação. Mesmo assim, seguramente, que tanto o pároco quanto a Arquidiocese concordam que o assassinato de Moïse Kagambe foi um ato de barbárie e uma afronta à convivência entre seres humanos. Certamente a adesão a toda manifestação de indignação é endossada pela Igreja Católica, pois isso a faz coerente com a ética cristã que prega, e, ao mesmo tempo alinha-se com o Papa Francisco que não cansa de denunciar os atos de xenofobia e de racismo que sofrem os refugiados nos diversos países, o que não exclui o Brasil da listagem. 

Fora das repercussões no âmbito eclesiástico e judiciário, o ato de protesto traz uma revelação que nos lembra cenários anteriores acerca do clima pré-eleitoral. O crescente ambiente de polarização social, propiciando enfrentamentos nas esferas públicas, religiosas e familiares vem em crescendo desde 2014, elevando a temperatura em 2018. Este ano parece não se vislumbrar diferente. A produção de desinformação, conteúdos falsos, incentivo ao ódio, deslegitimarão das instituições democráticas, descrédito dos mecanismos democráticos tem sido a tônica que pauta a pandemia e o clima da contenda no acesso ao Planalto. Evidentemente que, o ganho político que o protesto possa gerar dependerá do contexto eleitoral, ora pode ser objeto de inúmeras distorções que mirem o público religioso, nutrindo imaginários de ameaça e agressão religiosa, ora pode ser apenas um incidente episódico que cai no esquecimento. 

No entanto, o interessante é observar como o fato provocou certas reações e posicionamentos das pessoas nas mídias sociais. Muitas ficaram indignadas diante do que se denominou como “invasão” e cujos argumentos trazem à tona o pensamento ultraconservador, político e religioso, que percorre suas reações. Assim, percebe-se como é gerado, imediatamente, um posicionamento de um nós contra eles, sejam eles do Partido dos Trabalhadores ou de outras alas da Esquerda. As acusações perpetuam clichês que desqualificam seus militantes como sendo baderneiros, desordeiros, arruaceiros etc. Até aqui nenhuma novidade, pois são termos já presentes nos idos anos de 1989, no primeiro pleito eleitoral pós-ditadura militar. O novo, onde emerge um alerta, é quando se passa de um posicionamento antagônico, próprio da arena política, para uma identificação do outro como inimigo, seja indivíduo seja coletivo, com uma motivação inerente à linguagem bélica. No campo religioso esse inimigo assume conotação teológica, sendo demonizado. Tal passagem, política e religiosa, se torna perigosa porque situações de violência estrutural, como a que vivemos, o inimigo deve ser eliminado de qualquer forma e a qualquer custo. Assim,  um pensamento polarizado leva identificar e classificar os outros sob o prisma da ameaça o que muitas vezes se concretiza em agressão (física, verbal, simbólica, moral) como forma ofensiva de defesa, muitas vezes justificada religiosamente. 

Há um outro elemento interessante nessas reações contra o manifesto na Igreja de São Benedito: invocar a perseguição aos cristãos como objetivo do ato político. Em países como na Índia, Coreia do Norte, Afeganistão, Argélia, entre outros, onde os cristãos são minorias, frequentemente se verifica hostilidade e perseguição a eles. Não é o caso do Brasil, que é histórica, demográfica e culturalmente cristão, contudo, há um imaginário de perseguição religiosa que as elites pastorais e influencers religiosos vem cultivando nos últimos anos sob o mote de cristofobia. Entretanto, as acusações de uma perseguição cristofóbica, na verdade, esconde a justificativa de uma ofensiva contra grupos considerados inimigos da religião cristã. De acordo com essa lógica cristofóbica existem grupos que conspiram contra o cristianismo e impedem os fiéis o direito de exercer sua liberdade religiosa e/ou a possibilidade de impor a moralidade cristã como moralidade pública a ser assumida na sociedade brasileira, independente de serem todos seus membros religiosos de outros credos ou de não ter religião. Evidentemente que, há um elemento comum na desqualificação da esquerda política e na cristofobia: a manifestação de uma alteridade tida como inimiga. De tal forma que, identificar o antagônico e/ou o diferente (religioso ou não) como inimigo que deve ser eliminado, promover ódio entre pessoas e grupos diferentes, resolver de forma violenta atritos e problemas comuns, valorizar a linguagem violenta, machista e homofóbica são alguns dos traços ideológicos caracterizam grupos de ultradireita, cada vez mais atuantes internacionalmente. Desgraçadamente, esses traços devem nos acompanhar na atual conjuntura sociopolítica-eleitoral.

Enfim, se é verdade que o ato de protesto diante do trágico fim do asilado Moïse Kagambe descortinou finas nuances políticas, religiosas e ideológicas, também é certo que a evocação simbólica de São Benedito pode inspirar o fortalecimento da indignação: mecanismo eficaz contra a naturalização da violência que como suave torpor adormece consciências.

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Foto de capa: reprodução do Facebook

Mensagem anônima que circula em mídias sociais usa pânico moral contra partidos de esquerda

A seguinte mensagem circula por diversos grupos de evangélicos no WhatsApp:

A mensagem não tem autoria, não apresenta fontes, e não esclarece os motivos pelos quais defende que os candidatos dos partidos supostamente coligados com o “PT e a Esquerda” não devam receber votos. Apenas lista 16 partidos com a indicação de que “não podemos deixá-los vencer e tomar os municípios”. O texto chama para a divulgação e para o esclarecimento dos “cidadãos de bem” que ainda estariam “desinformados”.

O Coletivo Bereia recebeu de leitores/as a indicação para verificação desta mensagem de contracampanha política e encontrou alguns pontos que a classificam como desinformação.

1. “Partidos coligados com o PT e a Esquerda”

Nestas eleições municipais de 2020 no Brasil, pela primeira vez, candidatos ao cargo de vereador não poderão concorrer por meio de coligações. O Congresso Nacional, por meio da reforma eleitoral de 2017, aprovou diversas modificações na legislação eleitoral, dentre elas, o fim das coligações na eleição proporcional. Com isso, o candidato a uma cadeira na câmara municipal somente poderá participar do pleito em chapa única dentro do partido ao qual é filiado. Para o cargo de prefeito, continua sendo possível a união de diferentes partidos em apoio a um candidato.

As coligações formadas em todos os municípios do país podem ser consultadas no site do Tribunal Superior Eleitoral. A postagem que circula em mídias sociais verificada pelo Coletivo Bereia não informa quais coligações para Prefeituras envolveriam estes partidos com “o PT e a esquerda” e ainda inseriu o Partido dos Trabalhadores (PT) na própria lista.

Curiosamente, o PT e o Partido Social Liberal (PSL), expoentes da atual polarização política no país em nível nacional, fazem parte da mesma coligação em 136 municípios. O PSL não consta nesta lista alarmista divulgada contra o “PT e a esquerda”.

2. Partidos de direita e de centro classificados como esquerda

Entre os 16 partidos listados na postagem que circula entre grupos religiosos, estão um que não existe mais, o PPL (Partido Pátria Livre) e o PPS (Partido Popular Socialista, vertente do antigo PCB – Partido Comunista do Brasil), que também não existe mais como tal, pois alterou o nome para Cidadania. Só este tipo de erro já descredencia a lista.

Há ainda, na postagem, um partido que não têm qualquer identidade com a esquerda, o DEM (Democráticos), que tem raízes na direita brasileira sustentadora da ditadura militar (originalmente ARENA – Aliança Renovadora Nacional, depois PFL – Partido da Frente Liberal) Também constam na lista apócrifa, dois que são identificados com o centro: PSDB (Partido Social Democrático Brasileiro) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro).

O jornal O Estado de São Paulo publicou matéria, em 2019, sobre a classificação dos partidos no Brasil, depois de ouvir como cada um se autoidentifica, tendo publicado o seguinte gráfico-síntese:

Para o cientista político da FGV Cláudio Couto, a autodenominação de centro é uma tentativa retórica dos partidos se mostrarem mais moderados. “Alguns que se definem como centro são claramente partidos de direita, o que não quer dizer que seja uma direita radical. Já o PSL a gente não sabe o que é, ainda mais depois dessas confusões que ele se meteu, mas se a gente for tomar pelo bolsonarismo ele seria uma extrema-direita, não uma direita moderada”, afirmou Couto.

Ainda que se tome por base nesta autoidentificação, a mensagem que circula nas mídias sociais desinforma e confunde ao listar como “coligados”, no sentido de alinhados, partidos que de forma alguma se enquadrariam na esfera ideológica da esquerda.

3. Pânico moral

Bereia já tratou em matéria anterior sobre o uso do pânico moral em conteúdos desinformativos que circulam em espaços digitais. Ao usar o termo “não podemos deixá-los vencer e tomar os municípios”, a mensagem induz à noção de um perigo, com base em ideia construída no Brasil por campanhas de direita, de que governos de esquerda representam uma ameaça, atrelando-a a temas como “corrupção”, “destruição das famílias”, “comunismo”.

Segundo o pesquisador Richard Miskolci no artigo “Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay”, a construção de bases políticas conservadoras e de extrema direita, e a adesão a elas, têm sido conquistadas por meio do pânico moral, da retórica do medo, para gerar insegurança e promover afetos.

Pânicos morais são fenômenos que emergem em situações nas quais sociedades reagem a determinadas circunstâncias e a identidades sociais que presumem representarem alguma forma de perigo. São a forma como as mídias, a opinião pública e os agentes de controle social reagem a determinados rompimentos de padrões normativos e, ao se sentirem ameaçados, tendem a concordar que “algo deveria ser feito” a respeito dessas circunstâncias e dessas identidades sociais ameaçadoras. O pânico moral fica plenamente caracterizado quando a preocupação aumenta em desproporção ao perigo real e geral. O que foi construído no Brasil em relação à esquerda política, a partir de 2014, como base para o processo de impeachment de Dilma Rousseff, e que alimentou a campanha eleitoral de 2018, reverbera ainda em 2020 nesta contracampanha que circula nas redes.

Pesquisas científicas, como a de Richard Miskolci, indicam a circulação de intensa quantidade de material desinformativo, baseado em pânico moral e medo para disseminação de conteúdos que se revertem em apoio a grupos políticos de extrema direita.

4. O clima anti-campanha entre cristãos

Lideranças religiosas alinhadas com o pensamento progressista se uniram e lançaram o Movimento pela Bancada Evangélica Popular nas eleições de 2020. O mesmo ocorreu com o grupo Cristãos contra o Fascismo. Este movimentos lançaram dezenas de candidatos por partidos identificados com a esquerda para o pleito de 2020.

A Bancada Evangélica Popular define a iniciativa como um movimento que deseja participar de forma direta na política e à luz da Palavra de Deus, promover políticas públicas concretas que cessem com a desigualdade social e promover justiça, paz e dignidade para todas e todos.

Seu propósito é ocupar as câmaras e assembleias com uma Bancada Evangélica Popular, indicando e apoiando irmãos e irmãs que se dispõem a esta luta nas candidaturas, de forma pluripartidária. Não há intenção de promover um pensamento único, mas parte do princípio que o papel dos cristãos evangélicos, como agentes do Reino de Deus, é promover a transformação social.

A campanha do Movimento pela Bancada Evangélica Popular e de Cristãos contra o Fascismo tem alcançado grande repercussão nas mídias noticiosas. UOL, Folha de São Paulo e Yahoo Notícias, por exemplo, deram espaço ao grupo evangélico progressista.

A visibilidade desta iniciativa vem provocando reações negativas de atores importantes do cenário político-religioso, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que em seu site e no jornal Folha Universal, fez a seguinte publicação: “O que está por trás da Bancada Evangélica Popular. Grupo de esquerda deseja criar uma bancada socialista voltada para cristãos”.

De acordo com a matéria, partidos de esquerda apresentam um discurso de justiça social e apoio aos direitos do povo, no entanto, quando chegam ao poder, restringem a liberdade individual e perseguem o cristianismo. Além disso, defendem os ideais do comunismo e do socialismo, como o Partido dos Trabalhadores, que governou o país por treze anos. Por fim, a publicação afirma que “a ideia não é defender a direita política, apesar de esta ser mais coerente com a necessidade das pessoas”.

Já o Deputado Pastor Marco Feliciano (Republicanos -SP) publicou em seu Twitter um vídeo pedindo aos “cristãos católicos e evangélicos e ateus que são de bem” para não votarem em candidatos do PT, PC do B e PSOL , pois estes partidos defendem a “chamada ideologia de gênero” e “atacam políticos conservadores”, além de não concordarem com o pensamento cristão. Fazendo uso do pânico moral no ataque aos candidatos de esquerda, o deputado diz que cristãos devem votar nos políticos que defendem a “família tradicional” e a “família civilizatória”.

O Coletivo Bereia publicou diversas matérias sobre divulgação de pânico moral em relação a “ideologia de gênero” e “proteção à família”: São falsos vídeos sobre suposta Operação Storm no Brasil, É verdadeiro que Disney tem protagonista bissexual em série, mas portal evangélico faz apelo enganoso, É impreciso que Xuxa lançará livro sobre homoafetividade para público infantil, Presidente Bolsonaro mente ao dizer que “esquerda” quer descriminalizar pedofilia e O Presidente do Brasil e a falaciosa ideologia de gênero. A mais recente verificação do Bereia sobre a temática identifica o uso eleitoral do pânico moral em torno da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668, de 2017, ajuizada pelo partido de esquerda Socialismo e Liberdade (PSOL), que visa garantir que escolas previnam e coíbam práticas de homofobia em seus espaços. Bereia mostrou como são enganosos conteúdos que afirmam que a ação foi movida pelo PSOL, “para tornar obrigatória a ideologia de gênero nas escolas públicas e privadas”.O Movimento pela Bancada Popular fez uma transmissão ao vivo em sua página no Facebook, em 6 de outubro, para acusações feitas pela Igreja Universal do Reino Deus .

A partir desta verificação, o Coletivo Bereia classifica a mensagem que circula em mídias sociais de grupos evangélicos como falsa. Além de apresentar características recorrentes de material desinformativo (não contém autoria, registra informações equivocadas, faz uso de pânico moral e de tom alarmista e convoca ao compartilhamento imediato), o conteúdo se soma à contracampanha empreendida por algumas lideranças religiosas que se autoidentificam como “conservadoras” ou “de direita”, como reação à ampliação da visibilidade da atuação política de esquerda neste período eleitoral, em especial de grupos cristãos.

A desinformação, sobretudo para desqualificar a articulação política de movimentos progressistas evangélicos, está sendo utilizada como ferramenta político-eleitoral e como contracampanha, desinformando, confundido e impondo medo sobre eleitores.

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Referências

Twitter Marco Feliciano, https://twitter.com/marcofeliciano/status/1314255134503960577 Acesso em 13/10/2020.

Site Bancada Evangélica Popular, https://www.bancadaevangelicapopular.com/ Acesso em 09/10/2020.

Página no Facebook Bancada Evangélica Popular, https://www.facebook.com/BancadaEvangelicaPopular/?ref=page_internal Acesso em 09/10/2020.

Live Resposta às Fake news da Igreja Universal Contra a Bancada Evangélica Popular https://www.facebook.com/BancadaEvangelicaPopular/videos/636527180343176 Acesso em 15/10/2020.

Yahoo – Igreja Universal lança ofensiva contra Bancada Evangélica Popular por ser considerada de “esquerda”, https://bit.ly/3lNqFhY Acesso em 13/10/2020.

UOL, https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/09/09/contra-neopentecostais-1-bancada-evangelica-de-esquerda-se-lanca-em-2020.htm Acesso em 14/10/2020.

Igreja Universal, https://www.universal.org/noticias/post/bancada-evangelica-popular/ Acesso em 15/10/2020.

Coletivo Bereia https://coletivobereia.com.br/sao-falsos-videos-sobre-suposta-operacao-storm-no-brasil/ Acesso em 30/10/2020.

Coletivo Bereia https://coletivobereia.com.br/e-verdadeiro-que-disney-tem-protagonista-bissexual-em-serie-mas-portal-evangelico-faz-apelo-enganoso/ Acesso em 30/03/2020.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/e-impreciso-que-xuxa-lancara-livro-sobre-homoafetividade-para-publico-infantil/ Acesso em 29/10/2020

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/presidente-bolsonaro-mente-ao-dizer-que-esquerda-quer-descriminalizar-pedofilia/ Acesso em 30/10/2020

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/o-presidente-do-brasil-e-a-falaciosa-ideologia-de-genero/ Acesso em 30/10/2020

Portal UOL, https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/09/09/contra-neopentecostais-1-bancada-evangelica-de-esquerda-se-lanca-em-2020.htm Acesso em 03/11/2020

Folha de São Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/07/liderancas-religiosas-lancam-bancada-evangelica-popular-para-lancar-candidaturas.shtml Acesso em 03/11/2020

Yahoo Notícias, https://br.noticias.yahoo.com/igreja-universal-lanca-ofensiva-contra-bancada-evangelica-popular-por-ser-considerada-de-esquerda-150741391.html Acesso em 02/11/2020

Jornal O Estado de São Paulo, https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,maioria-dos-partidos-se-identifica-como-de-centro,70003135964 Acesso em 02/11/2020

Presidência da República, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13488.htm Acesso em 05/11/2020

Congresso em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/coligacoes-pt-e-psl-eleicoes-2020/ Acesso em 01/11/2020

TSE, https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais-1/repositorio-de-dados-eleitorais Acesso em 01/11/2020

Grupos evangélicos e olavistas ajudaram a espalhar fake news de Bolsonaro sobre esquerda e pedofilia

Publicado originalmente pela Agência Pública. Reportagem de Ethel Rudnitzki e Mariama Correia.

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Maior portal de notícias evangélicas do país, o Gospel Prime publicou, ainda em maio, texto onde afirmava haver um crescimento de “grupos pela legalização da pedofilia nas redes sociais”. Embora amparado em argumentos falsos e vagos como “muitos usuários das redes sociais relataram a criação de grupos para esse fim”, a publicação do site – listado pela CPMI das Fake News – circulou em grupos de WhatsApp cristãos e foi amplamente compartilhada por evangélicos nas redes sociais no começo de julho.

Reprodução/Facebook
Fake news que associa pedofilia à esquerda circulou em grupos evangélicos

O mesmo argumento do Gospel Prime apareceu no Twitter do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), na terça-feira (14). Bolsonaro aproveitou a apresentação de um Projeto de Lei que aumenta a pena para pedófilos para afirmar, sem provas, que “a esquerda busca meios de descriminalizar a pedofilia, transformando-a em uma mera doença ou opção sexual”. O presidente mentiu, como mostraram várias checagens, incluindo esta do UOL e do Projeto Comprova, mas conseguiu atiçar ainda mais grupos religiosos radicais e discípulos do autodeclarado filósofo Olavo de Carvalho, que representam grande parte da sua base aliada.

Personalidades cristãs conservadoras também fizeram coro com Bolsonaro, como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), que é católica. Ela afirmou ser “muito comum esquerdistas relativizarem o sexo com menores de 14 anos”. O post de Janaína tinha quase seis mil curtidas e 900 compartilhamentos até a quinta-feira (16). O lutador de MMA evangélico Vitor Belfort, também postou no Twitter uma mensagem parabenizando Bolsonaro e Damares Alves pelo projeto e repetiu a fala de que a esquerda “busca meios de descriminalizar a pedofilia”.

Outros religiosos envolvidos na política, como o pastor e deputado estadual Léo Portela (PSL-MG), com mais de 20 mil seguidores no Twitter, também ajudaram a disseminar a fake news, assim como políticos bolsonaristas, a exemplo do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL-RJ), e seguidores de Olavo de Carvalho, como o youtuber Bernado Kuster, ambos investigados no inquérito do STF que apura a disseminação de fake news. O boato também foi repercutido por outros portais de direita e circulou por grupos bolsonaristas no WhatsApp.

Reprodução/WhatsApp
Correntes que associam pedofilia à esquerda circulam em grupos bolsonaristas no Whatsapp
Reprodução/WhatsApp
Fake que associa pedofilia à esquerda repercutiu em portais e grupos de direita

Mentiras e moralismo

Bolsonaro usa fake news sobre pedofilia para ganhar apoio de lideranças religiosas conservadoras porque sabe que esse tema dialoga com o “moralismo cristão”, na visão do pastor progressista e crítico do atual governo, Ricardo Gondim. “As fake news fazem parte do arcabouço desse moralismo, que tem na ministra Damares, evangélica, um elemento muito representativo no governo federal”, considera.

Herbert Rodrigues, sociólogo e autor do livro “Pedofilia e suas narrativas”, diz que o tema da pedofilia foi capturado politicamente pela direita e pelas bancadas religiosas há alguns anos. “Desde a CPI da pedofilia no Senado(2008 -2010). Todos os membros da CPI eram homens. Muitos ligados à chamada bancada evangélica e tinham perfil conservador e punitivista. O presidente da CPI era o ex-senador Magno Malta, que é pastor evangélico”, lembra.

Entretanto, pelo menos a partir das eleições de 2018, Rodrigues observa que a extrema direita passou a associar a pedofilia com a esquerda mais sistematicamente. “Na minha opinião trata-se de uma estratégia fascista”, diz. Para a pesquisadora da USP Isabela Kalil, que estuda bolsonarismo e política antigênero desde 2013 este “é um tema recorrentemente usado como cortina de fumaça”. Ela acredita que não à toa o tuíte do presidente Bolsonaro foi publicado em um momento de crise do governo, na semana seguinte à soltura de Fabrício Queiroz, investigado por esquema de ‘rachadinhas’ quando era assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos).

Isabela observa ainda que a questão da pedofilia sempre consegue chamar atenção de lideranças cristãs e abastecer correntes de fake news. “Embora seja um assunto muito específico e grave, faz parte de um pacote de desinformação antigênero, que inclui outras fake news, como a ‘mamadeira erótica’ e o ‘kit gay’. Há, na visão de certos grupos, uma conspiração pela sexualização precoce das crianças, e isso é associado ao movimento LGBT e às feministas. Nessa perspectiva, a pedofilia seria a ponta de um iceberg nesses discursos enviesados”, considera.

Propagação de fake news acontece de forma estratégica

Em 2016, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e colunista do site Gospel Mais, gravou um vídeo falando sobre mudança de sexo em crianças e ideologia de gênero. Nele, Malafaia afirma que pedofilia é ideologia de gênero, e que “é um jogo dos esquerdopatas”. Com mais de 70 mil visualizações, o vídeo continua disponível no Youtube.

Reprodução/Youtube
Pastor Silas Malafaia espalha boato que associa pedofilia à esquerda em vídeo de 2016

Dois anos depois, uma imagem que afirmava que Fernando Haddad, na época candidato à presidência da República pelo PT, era autor de um projeto pró-pedofilia, viralizou nas redes sociais. A montagem falsa fazia referência ao Projeto de Lei (PL) 236/10, que nem era de autoria de Haddad, nem tratava de legalização da pedofilia, como mostrou o Estadão.

Apesar disso, no começo deste ano, a ministra Damares fez referência ao mesmo PL em entrevista onde afirmou haver risco de legalização da pedofilia no Brasil.

O ex-deputado Federal Jean Willys (PSOL) também foi caluniosamente acusado de defender a pedofilia em 2018, pelo ainda deputado Federal Alexandre Frota (PSDB), condenado por disseminar fake news, na época aliado de Bolsonaro.

Recentemente, um tuíte falso, defendendo um pedófilo, também foi atribuído ao youtuber Felipe Neto, que tem feito críticas ao atual governo.

Acusar alguém de pedofilia ou de apoio à pedofilia é quase infalível enquanto tática para enfraquecer inimigos políticos e despertar apoio de grupos conservadores, avalia a pesquisadora Isabela Kalil. “Não tem como ser a favor da pedofilia. É um tema que perpassa a educação, mobiliza as famílias, é repercutido pela opinião pública. Desperta um pânico moral nas pessoas, mas por vezes carrega um pacote, como um Cavalo de Tróia que, quando aberto, está cheio de ideias antigênero, antiLGBT e de posições transfóbicas, também bandeiras de grupos católicos e evangélicos conservadores”.

Para Isabela, a falsa associação entre esquerda e pedofilia voltou à tona em um momento particularmente estratégico para o governo federal, que lançou em abril, no meio da pandemia, o Observatório da Família, dentro do ministério de Damares Alves. O Observatório teria a finalidade de “produzir conhecimento científico sobre a família e servir de referência para a criação de políticas públicas”. “O projeto foi lançado como se não fosse nada. Em um olhar mais atento se vê que é uma ameaça de grave retrocesso de direitos públicos, de desmonte do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – que envolve Comissão da Verdade, cotas raciais, políticas LGBTQI+. É bom lembrar que o PNDH tem sido um empecilho para o avanço de pautas conservadoras, muitas delas cristãs”, considera.

Embora a mentira pareça só uma afirmação descontextualizada, a desinformação obedece a um processo bem articulado e em cadeia: “Você cria um medo ou um problema e depois se apresenta a solução. No exemplo mais recente de Bolsonaro, para o medo da pedofilia, a solução é o PL e ainda outras ações do governo, como o Observatório da Família”, analisa Isabela Kalil.

Fake news importada

A pesquisadora também observa que as fake news circulam em movimentos encadeados. No caso do boato que associa a defesa da pedofilia à esquerda, a origem é estrangeira e é resgatada em momentos oportunos.

A reportagem do Gospel Prime cita um suposto movimento de legalização da pedofilia chamado MAP, sigla em inglês para pessoa sexualmente atraída por menores de idade. O texto afirma que “circulam rumores na internet de que uma das pautas dessa militância é inserir P (de pedófilo) à sigla LGBTI”. A notícia é falsa. O portal evangélico brasileiro traduz o texto do site latinoamericano “Notícias Cristianas”, que por sua vez importou uma notícia falsa dos Estados Unidos, verificada ainda em 2018 pela organização de fact-checking Snopes. Na verdade, MAP é um termo criado por uma organização norte-americana que auxilia pedófilos em busca de tratamento, diz a checagem.

Mas a associação de pedofilia com a esquerda é ainda mais antiga que isso. No Brasil, ela foi propagada pela figura de Olavo de Carvalho. Em um texto de 2002, intitulado “Cem anos de pedofilia”, o autoproclamado filósofo e atual guru de Bolsonaro elenca uma série de elementos que estariam por trás do que ele chama de “movimento de indução à pedofilia”. Entre eles estão as teorias de Sigmund Freud, o movimento feminista, e até o advento da pílula anticoncepcional e da camisinha. Para Carvalho, que é bastante religioso, “por toda parte onde a prática da pedofilia recuou, foi a influência do cristianismo — e praticamente ela só — que libertou as crianças desse jugo temível”.

Depois do texto, o guru continuou propagando essa falsa teoria para seus seguidores e a resgatando em momentos oportunos. Uma das aulas de seu curso online de filosofia (COF) de título “Poder e Pedofilia – um breve resumo” foi relembrada por seu aluno e youtuber, Bernardo Küster na ocasião da polêmica a respeito da mostra “Queer Museu” no MASP. Em vídeo, olavista argumenta que a exposição faz parte do grande projeto da esquerda de legalizar a pedofilia, como já dizia seu guru.

Reprodução/ Facebook
Youtuber olavista Bernardo Küster, repercutiu boato ainda em 2017

Sistematicamente portais de desinformação liderados por seguidores de Olavo de Carvalho também ressuscitaram essa teoria. No último dia 15, o site Estudos Nacionais, do aluno de Olavo Cristian Derosa, publicou um texto que buscava legitimar a afirmação de Bolsonaro. “Esquerda quer descriminalizar a pedofilia? Entenda a declaração de Bolsonaro e sua repercussão” dizia.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Presidente Bolsonaro mente ao dizer que “esquerda” quer descriminalizar pedofilia

Publicado originalmente no UOL Notícias, com adaptações do Coletivo Bereia

Postagem do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Twitter, em 14 de junho de 2020, foi intensamente compartilhada em mídias digitais de pessoas e grupos cristãos. Ele acusou “a esquerda” de buscar “meios de descriminalizar a pedofilia“, ao falar sobre um PL (Projeto de Lei) apresentado pela Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, na segunda-feira, 13 de julho, que sugere aumento na pena de crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes. 

Inicialmente, a fake news surgiu em 2015, tendo como alvo a deputada Maria do Rosário (PT-RS) e o ex-deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Voltando a circular em 2017, quando foi desmentida pelo então deputado em suas redes sociais.

Os criadores da mentira chegaram a adulterar fotos dos dois deputados para forjar cartazes e folders dizendo que a pedofilia não seria crime, e sim doença. Tais fotos não existem, bem como nunca foi apresentado nenhum projeto de lei com esse conteúdo, como a imprensa alertou na época.

Durante as eleições de 2018, o candidato do PT à Presidência da República, Fernando Haddad, foi alvo de uma notícia falsa que afirmava que ele defendia a legalização da pedofilia. O projeto Comprova verificou , na ocasião, que o PL 236/2012 tramita no Senado desde 2012, não propõe a legalização da pedofilia e não tinha relação com o PT e com Haddad.

A proposta foi apresentada pelo ex-presidente e ex-senador José Sarney (MDB-AP) e estava sob a relatoria do senador Antonio Anastasia (PSDB). O projeto de lei em questão trata de uma proposta de novo Código Penal.

No artigo 186, o projeto propôs a redução de 14 anos para 12 anos o limite de idade da vítima na qualificação do crime de “estupro de vulnerável”, um agravante do crime de estupro. Acima do limite de idade, a violência sexual não deixaria de ser considerada crime de estupro

Formulada por juristas e debatida por cerca de sete meses, a proposta de mudança se baseia no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que considera crianças aquelas pessoas que têm até 12 anos de idade incompletos.

Pedofilia é transtorno mental, diz OMS 

Pedofilia não é um crime, mas um transtorno mental reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) desde os anos 1960. 

Pelas leis brasileiras, qualquer ato que atente contra a dignidade sexual da criança é tipificado como crime, como o estupro de incapaz (artigo 217-A do Código Penal) e a pornografia infantil (prevista nos artigos 240 e 241 do ECA). Não é só no Brasil, mas também no resto do mundo, não existe qualquer dispositivo legal que criminalize a pedofilia. 

Segundo reportagem publicada pelo TAB/UOL, não existe cura para a pedofilia. Por isso, é preciso acompanhamento médico constante — terapia e, em alguns casos, medicação hormonal para inibir o desejo sexual — para tratar os impulsos. O tratamento não é só importante para o pedófilo como também o impede de fazer vítimas. Quando um pedófilo comete abuso sexual, aí sim ele passa a ser um abusador e deve responder pelos seus atos perante a Justiça. 

No entanto, nem todos os abusadores de crianças são pessoas portadoras do transtorno.

O principal problema é que o uso indiscriminado do termo obscurece a verdadeira questão: a pedofilia é classificada no conjunto de uma desordem mental; ao passo que o abuso sexual infantil (a pornografia infantil) se refere ao perpetrador de abuso sexual e não implica, necessariamente, doença mental, mas crime“, explicou  Herbert Rodrigues, sociólogo, professor da Missouri State University (EUA) e autor do livro “A pedofilia e suas narrativas” (Editora Multifoco). Portanto, a pedofilia seria uma doença mental que poderia ser classificada sob o termo de molestador infantil. 

Mesmo que pedófilos sejam classificados como molestadores infantis, nem todos os molestadores podem ser considerados — ou diagnosticados — como pedófilos.

Na mesma linha, psiquiatras especializados entendem que a banalização do termo “pedofilia” é uma das causas que impedem pessoas com essa doença de procurar ajuda e evitar algum tipo de abuso contra crianças. Além disso, nem sempre os casos de abusos sexuais contra menores são cometidos por pedófilos, mas muitas vezes por pessoas que se aproveitam de uma situação de vulnerabilidade da vítima para agir. O psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC), avalia que cerca de 30% a 40% dos agressores sexuais de crianças são, de fato, pedófilos.

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Referências de checagem

BR Política Bolsonaro mente no Twitter que esquerda quer descriminalizar pedofilia

Comprova – Projeto não torna a pedofilia um ato legal nem tem participação de Haddad.

Senado Federal- 236/2012

Twitter – Bolsonaro

UOL – Bolsonaro distorce ao postar que esquerda quer descriminalizar pedofilia

UOL – PEDÓFILO PROCURA AJUDA

UOL – Por que a discussão sobre abuso sexual infantil precisa evoluir no Brasil.