Ao encontro da verdade sobre gravidez precoce: o problema social que não pode escolher esperar
Há poucos dias, precisamente em 06.12.2019, tomamos conhecimento e nos indignamos com mais um desserviço do Ministério de Direitos Humanos, Mulher e Família, ao ler a seguinte notícia publicada na Revista Fórum: “Contra gravidez na adolescência, Damares promove seminário com pastor do ‘Eu Escolhi Esperar’ ” .
O movimento coordenado pelo pastor Nelson Junior e sua esposa, Angela Cristina, tem o propósito de “encorajar, fortalecer e orientar os solteiros cristãos a esperar até o casamento para viver suas experiências sexuais”. Logo, questionei-me: “Como o dinheiro público, de uma pasta tão relevante (ao menos deveria ser), está sendo investido para tratar o problema social da gravidez na adolescência?” . São 400 mil casos por ano no Brasil, com maior incidência no Nordeste, seguido pelo Sudeste e pelo Norte do país.
O atual presidente eleito, Jair Bolsonaro, em 30.11.2018, após sua vitória no segundo turno, anunciou uma mudança para seu governo, que seria alterar o nome do Ministério dos Direitos Humanos para Ministério da Família. Afirmou o capitão reformado: “Nós temos uma política de direitos humanos de verdade e não é essa que está aí”. E acrescenta: “E terá o nome de Família, que é tão cara e importante para nós”.
Nos primeiros dias de seu mandato compôs o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos. Mas o que temos observado é que não foi somente uma mudança de nome, obviamente. Pastora Damares Regina Alves, advogada, assessora parlamentar, com largos anos de atuação política e atual pastora da igreja da Lagoinha (anteriormente pastora da igreja pentecostal, O Evangelho Quadrangular), assumiu a pasta em meio a muitas controvérsias, processo judicial e um eloquente discurso de posse que foi sintetizado por ela com a frase: “O país é laico, mas esta ministra é terrivelmente evangélica”. Mas voltemos à afirmação do terrível desserviço à qual nos referimos inicialmente.
Dados do IBGE/Censo Demográfico 2010, indicam que a proporção de adolescentes e jovens brasileiras entre 15 e 19 anos que ainda não estão inseridas no mercado de trabalho ou mesmo na escola, é maior entre aquelas que já tiveram filhos. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), ocorrem aproximadamente 70 nascimentos para cada mil adolescentes, um índice acima da média para a América Latina, Caribe e também da taxa mundial.
Se lançarmos um olhar na perspectiva de gênero, podemos afirmar, sem dúvidas, que as meninas são as mais prejudicadas pela gravidez precoce, pois devido as maiores exigências no cuidado com os bebês, a maioria delas precisa se afastar dos estudos por não ter com quem deixar a(s) criança(s), além dos riscos que correm por gerar filhos tão cedo.
A SBP alerta, além do aspecto social envolvido, para questões de saúde, pois a gravidez na adolescência está associada a uma série de riscos para a menina e o bebê, como elevação da pressão arterial e crises convulsivas (eclâmpsia e pré-eclâmpsia) na jovem grávida e prematuridade e baixo peso nos bebês.
Nas últimas duas décadas a gravidez na adolescência tornou-se um importante tema de debate e alvo de políticas públicas no Brasil, o que resultou na diminuição, entre 2004 e 2015, de 114 mil nascimentos não planejados. Foram 661.290 nascidos vivos de mães entre 10 e 19 anos, em 2004, para 546.529, em 2015. Efetivamente, uma considerável redução de gravidez precoce em relação a anos anteriores. Mas, apesar dos avanços, o número de gravidez não planejada na adolescência ainda é grande, representando cerca de 18% do total de nascidos vivos no país.
De qualquer forma, a redução da gravidez na adolescência entre 2004 e 2015 foi significativa. O cenário mudou devido a iniciativas como a expansão do Programa Saúde da Família, com mais acesso a métodos contraceptivos e ao Programa Saúde na Escola, que oferecia informação de educação em saúde, conscientizando adolescentes a fazer escolhas livres e assim planejar melhor a vida.
É necessário ressaltar que a gravidez precoce, não planejada, também é fruto de violência. A cada 20 minutos uma menina de até 18 anos é vítima de estupro. De janeiro de 2017 a dezembro de 2018, 50.899 crimes contra adolescentes nessa faixa etária foram registrados, o que preencheria o número de habitantes da cidade de Campos do Jordão, no interior de São Paulo.
Para enfrentar tamanho problema, temos no extenso território brasileiro somente 85 hospitais cadastrados como referência de serviço ao Aborto Legal. Tudo isso nos leva a refletir sobre a carência de políticas públicas efetivas, como os programas já mencionados, que apontam maneiras de conscientizar cada vez mais adolescentes a fazer escolhas livres e responsáveis.
Na contramão desses eficientes programas do Ministério da Saúde, que deveriam ser aprofundados e melhorados, o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos utiliza dinheiro, tempo e infraestrutura pública em uma campanha, a meu ver, fraudulenta. Não há dados, ao menos não os encontrei, de que o movimento cristão convidado para o Seminário tenha tido algum êxito, ao menos nas igrejas em que atua, no sentido de convencer solteiros e solteiras a não fazer sexo. Que hipocrisia! A ‘coisa pública’ deve ser sempre embasada em dados, a fim de que se justifique o investimento.
Uma pasta que despreza a realidade, já que a própria coordenadora-geral de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, Cecília Pita, afirmou que “não vai abordar o uso de preservativos e outros métodos contraceptivos porque isso já é realizado com políticas da área da Saúde e da Educação” e que “entende que é preciso, sim, ter educação sexual, mas que é preciso informar sobre os benefícios de uma iniciação (sexual) tardia, e os prejuízos de uma iniciação precoce”, decididamente não está preparada para as problemáticas que o país enfrenta.
A impressão que se tem é que o Ministério coordenado por Damares Alves anda na contramão da realidade social, incentivando a abstinência como política pública sem nenhuma referência às condições sociais das adolescentes na gravidez precoce.
O referido seminário foi mais um desserviço e uma irresponsabilidade diante de dados alarmantes como o que temos em nosso país. Gastar dinheiro público em um evento promovido dentro da Câmara dos Deputados, em preparação para a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência para estimular a abstinência sexual como melhor método contraceptivo, é também um escárnio contra esses 18% do total de nascidos vivos entre janeiro de 2017 a dezembro de 2018, fruto de gravidez precoce, além de um desprezo contra as 50.899 meninas estupradas que engravidam sem desejar. A maioria delas nem consegue acessar os poucos serviços de Aborto Legal do país.
Infelizmente, estamos diante de uma pasta que tem se tornado irrelevante à medida de sua atuação irresponsável.