A voz do sangue clama

As notícias que inundaram nossas redes sociais nos últimos dias, acerca do extermínio do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips mostraram a face brutal que banha nosso território de sangue desde a colonização. Muitas coisas deveriam vir à tona nas nossas reflexões, especialmente se somos seguidores de Jesus Cristo. Para além da comoção midiática que fenece, que nossos corações encontrem razões para dar continuidade a relevante história que estava sendo escrita por estes e tantos outros. 

Primeiramente, precisamos erguer um memorial que não seja apagado pelo tempo e cumpra a função de nos lembrar da missão profética que eles exerciam, denunciando que as violências ao corpo da terra e aos corpos dos vulneráveis se tornaram insustentáveis. As palavras fortes destes homens, precedidas pelas de outros mártires como Chico Mendes e Dorothy Stang, precisam ter continuidade antes que vivamos a realidade de uma terra arrasada. 

Na verdade, já estamos experimentando os efeitos dos maus tratos a Casa Comum como a destruição de espécies inteiras da fauna e flora, o aumento da temperatura, a escassez de água potável e alimentação sem veneno e, acima de tudo, o apagamento da herança indigena, fundamental a nossa formação como povo brasileiro. O direito à memória destes homens precisa ser respeitado pois evoca a vida e esta é uma questão justa conforme o Evangelho ensina.

Em segundo lugar, em tempos brutos como estes que vivemos, recusar-se ao silêncio e prosseguir na luta pela verdade e pela justiça é algo admirável mas que não deveria ser extraordinário: pelo contrário, deveria ser nossa forma de ser no mundo. O amor que Bruno e Dom tinham pela criação, pelos povos do Brasil e o empenho na defesa do direito à vida digna deve nos incitar a fazer a diferença onde vivemos.

Nossas comunidades de fé precisam ser estabelecidas a partir do desejo visceral de modificar a vida das pessoas para melhor, não por proselitismo mas pelo fato de que carregamos em nós a vida de Cristo. Esta precisa ser a nossa práxis de todo dia a fim de que a história da igreja evangélica no Brasil seja pintada com as tintas da solidariedade e não mais a partir do terrível apoio a políticas de morte que em absolutamente nada glorificam o nome de Deus.

Por fim, urge desejar que a justiça corra como um rio (Amós 5.24) mais do que nunca. Até quando suportaremos ambientalistas sendo violentamente dizimados por defenderem a harmonia com a criação de Deus em suas diversas redes de conexão? Permaneceremos silentes diante da morte de homens e mulheres que dedicaram os melhores anos de suas vidas à defesa dos povos historicamente invisibilizados como são os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos e tantas outras comunidades tradicionais? Não podemos banalizar isto, irmãos e irmãs!

O testemunho de vida e amor de Bruno e Dom nos confronta com a necessidade de ter coragem de estar ao lado dos que estão sendo vítimas de múltiplos silenciamentos e violências. Quem tem familiaridade com o texto sagrado não pode fechar os olhos e lidar com este tema como se não houvesse ligação com a fé que professamos. Recebemos a divina ordem para ”soltar as ligaduras da impiedade, desfazer as ataduras do jugo, deixar livres os oprimidos e despedaçar todo o jugo” (Isaías 58.6). O que ainda esperamos?

A ressurreição de Cristo nos ensina a potente lição de que a vida vence no final e que precisamos estar ao lado dela e dos vulneráveis sempre. A voz do sangue destes homens clama desde a terra e enquanto a igreja permanecer adormecida, infelizmente não seremos testemunhas dignas do Cristo.