Elogio do prazer: um direito dado por Deus, e que não pode ser negado por Deus

Foi com um certo medo que aceitei o convite para falar no encontro dos Cristãos Inclusivos do Paraguai. Quem me conhece, sabe. Não é o meu espaço. E, não há nada de desconforto nisso, nem de discordância. Apenas do lugar onde me encontro dentro das inúmeras batalhas que temos travado.

No entanto, me movo por desafios. Me movo pelo que acredito, pelo que faço. E, era chegado o tempo de sair do meu lugar e me deslocar para outras construções. A experiência no Paraguai foi uma das mais significativas nesse ano que está caminhando para o fim.  É chegado novembro, as luzes começam a se apagar, mas as minhas estão acessas, já sinalizando as estradas para 2024.

Divido com vocês o que falei no Grand Hotel Paraguay, para um grupo de 70 pessoas. Estava ao lado da pastora Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), e nossos cafés e almoços foram aulas, onde nos encontramos em nossas similaridades e respeito em nossas poucas discordâncias. Também estava ao lado a queridíssima Emily Quevedo, de Colômbia Diversa, movimento de direitos da comunidade LGBTQIA, com sede em Bogotá. Emily já é uma nova velha amiga, cujas trocas já acendem mais luzes, e apontam mais caminhos.

Para vocês, o que falei – com toda honestidade e alguns equívocos, que optei por manter, para um dia olhar para trás e conseguir medir o quanto cresci.

Elogio del placer: un derecho dado por Dios, y que no puede ser negado por Dios

Eu tenho um cantor preferido. Quando eu era uma menina, ele tinha uns 30, 40 anos. Agora que sou uma mulher feita, mãe, ele já tem 78 anos. E, acreditem, que se ele me chamar, eu vou (um detalhe, nessa hora a audiência paraguaia disse que iria também. Tive que falar que al parecer tendremos, yo, una nueva guerra con Paraguay).

Esse artista, Chico Buarque, tem duas canções sobre as quais quero falar, e vou juntar essas canções com um texto bíblico de Genesis e outro de Apocalipse. A palavra do início e do fim.

Uma das canções se chama Sobre Todas as Coisas, e foi escrita em 1993. Uma parte dela diz assim:

Não, nosso Senhor
Não há de ter lançado um movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao criador

Ou será que o Deus
Que criou nosso desejo é tão cruel?
Mostra os vales onde jorra o leite, o mel
E esse vales são de Deus

Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado?
Desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado
Vendo alguém abandonado?
Pelo amor de Deus

Ainda que Chico Buarque se declare um agnóstico, há nessa canção uma dimensão profunda da Graça de Deus, essa é a beleza da arte, onde podemos ser qualquer coisa.

Mas, voltando à música: Deus não fez nada para si mesmo, para que se torne cada vez mais Deus. Os movimentos da terra e do céu não são para circular em torno dEle. Os movimentos de terra e céu são os que garantem a nossa existência no tempo e no espaço.

Vejam, o compositor diz que Deus criou nosso desejo. E, claro, se criou o desejo ele não pode ser cruel, ou contraditório, nos impedindo de satisfazer os desejos diante de vales onde jorram leite e mel.

Deus não precisa de leite e mel. Nós precisamos. São imagens potentes pensar em leite e mel relacionados ao prazer. Sei que de mim jorra mel, quando estou em toda a minha plenitude. Essa é a minha identidade sexual.

Creiam, não foi fácil construir essa identidade considerando que mulheres negras são objetificadas, menosprezadas em suas vontades, há uma construção social de que não somos amáveis, não somos bonitas, não somos aceitáveis. Cresci sob esse signo, e romper com isso foi (e ainda é) um processo doloroso.

Acreditem, ainda lido com esses monstros, que emergem nos meus relacionamentos pessoais, na minha exposição pública, nas disputas de narrativas e de poder.

O fato é que o artista diz algo muito caro e sensível a todos nós nessa vida:  Deus até fica zangado vendo alguém abandonado.

Pensar na minha heterossexualidade negra, cisgênero, e pensar na diversidade sexual existente é pensar que o abandono não é o nosso lugar.

Nosso desejo não é um capricho de Deus.

Não somos marionetes nas mãos do Sagrado, vejamos o que diz Gênesis 3.22 – Então, disse Deus: Eis que o homem (o ser humano) é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente.

Nós somos responsáveis pelos nossos atos de consciência, isso é divino! É benção, é graça!

Em Apocalipse 3.15-16 está escrito: “Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente! Assim, porque você é morno, não é frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo de minha boca”. 

Assumir o abandono é nos colocarmos como mornos. Celebro a ousadia dos cristãos que assumem suas sexualidades diversas, que não aceitam ser mornos. Nem aceitam estar nesse lugar, onde não se esquenta ou se gela. Eu tenho escolhido ser quente, muito quente. Bom ter a companhia da diversidade, no calor que emerge de nós.

A outra canção de Chico Buarque se chama “Geni e o Zepelim”.

Aparentemente, a música fala da exposição da condição feminina. Uma mulher que faz de tudo, na cama e na vida, para continuar viva. Nisso, ela consegue se relacionar com todos – desde os poderosos até a pessoas mais simples, as viúvas sem valor. Apesar de Geni ser tratada como uma prostituta pelo imaginário popular (como a Maria Madalena dos Evangelhos, e isso é assunto para um outro texto, uma outra construção), a música não revela qualquer pista que nos permita inferir que ela mantenha relações sexuais em troca de dinheiro.

Há uma outra coisa que não está na música, mas está na obra completa, pois Geni é parte da Ópera do Malandro: Geni é uma mulher trans. Nasceu Genivaldo. A Ópera do Malandro se ambienta nos anos 40 – e foi escrita em 1978 – e fala de um Brasil de jogos ilegais, prostituição, golpes, fala de uma polícia corrompida, de levar vantagem em tudo.

Apesar do tempo, é uma Ópera ainda moderna. Mas, não vou seguir falando da Ópera do Malandro, eu quero falar da Geni. Que assim como a comunidade LGBTQIA+, e assim como mulheres negras, e assim como mulheres, tem exposta a sua condição. Por qualquer motivo, não hesitam em cuspir na Geni.

Por que razão nos tacam pedras?

Já me jogaram muitas pedras. E não vou enumerar quantas. Nem se foram grandes ou pequenas, pois não quero fazer comparativos de sofrimentos.

Mas, sei que jogam pedras nos que assumem sua diversidade.  Você consegue pensar sobre todas as pedradas que recebeu? Como essas pedras te atingem?

Não é só a exposição de uma mulher, de uma pessoa que não cumpre o papel originalmente designado para ela. Sobre Geni, está tudo dito na canção.

E sobre quem humilha Geni? Só sabemos que há um gosto em humilhar.

Há aqui, uma outra noção de prazer, o de um prazer distorcido, que não é leite e mel, nos que humilham aos outros, pois esses usurpam o lugar de Deus.

Se julgam superiores a Deus.

Sabemos que não nos querem vivos. Tenho certeza de que se pudessem, matariam a todos os negros. Somos a lembrança viva do que foi a escravização. 

Somos a lembrança do que são capazes de fazer com um ser humano – que é roubar toda e qualquer dignidade que possa habitar em um corpo. Eles sabem disso, mas seguem nos responsabilizado, dizendo que nos vitimizamos para que suas consciências sejam aplacadas.

Tenho certeza de que no processo com assumir sexualidades não normativas é parecido. Não ser o que é estabelecido como padrão é ser exposto, e muitas vezes ser humilhado. O lamentável é que nem as nossas igrejas e comunidades de fé são espaços acolhedores. Tenho alguma implicância com o termo igreja inclusiva, pois toda igreja deveria ser inclusiva, não?

Jesus foi inclusivo – basta lembrar que até com o coletor de impostos do império romano ele jantou. E não havia ninguém pior que um coletor de impostos, a personificação do opressor.

E a vez dos oprimidos sempre chega, e sempre chegará. Essa é a nossa esperança: irá chegar um novo dia, uma nova terra, um novo céu. E, nesse dia, em uma só vez, a liberdade iremos cantar.

O dia da Geni chegou.

A cidade estava ameaçada e dependia dela a sobrevivência de todos que a tinham humilhado. Dependia dela a vida dos que cuspiam nela, dos que jogavam pedras.

Ela tem nas mãos a chave da vida.

Essa chave sempre está nas mãos das mulheres, dos oprimidos, dos humilhados. Geni, o Genivaldo que desabrochou em uma nova identidade, está com as chaves nas mãos.

E o surpreendente acontece. Ela resolve redimir a cidade. Ela, apesar de todo nojo, se deita com um ser desprezível para salvar as pessoas que a maltratavam.

Geni que desde menina aprendeu a ter prazer com os meninos atrás da rua, atrás da cantina, abdica do seu prazer. Como é triste pedir que uma pessoa renuncie a seu desejo e prazer. Ela despreza o leite e o mel, em contrapartida a vida continuará seguindo seu curso.

Era de se imaginar que a partir desse fato, Geni fosse colocada entre as heroínas da história de sua cidade, de seu povo. Mas, tão logo o perigo desaparece, tão logo o zepelim parte, pois Geni honrou seu acordo, ela volta a seu lugar humilhada, desprezada, xingada. Romi me fez pensar, nesse ponto, que Geni é como os profetas, que anunciam a vida e logo em sequência são marcados pelo desprezo.

Como mulher negra, consigo sentir o que Geni sentiu. Construímos, debaixo do açoite, a América Latina. Terminamos de construir e demos até um sorriso, vendo que tudo que construímos era muito bom. Daí nos privaram de usar os lugares que  fizemos.

Vocês devem sentir o que Geni sentiu quando há palavras, gestos e atitudes que querem colocá-los outra vez dentro do armário. E não há como respirar dentro de armários.

Encerro, por enquanto, dizendo que é necessário olhar para Cristo. Que essa é a única saída que consigo propor. Não como escapismo, ou rota de fuga. Cristo é o suporte para a vida.

Agora, vamos esquecer Geni.  Eu, pois, trouxe  a música para esse diálogo pela minha incapacidade de compreender todos os desafios que enfrentam os cristãos Inclusivos, não somente do Paraguai. Mas, os do Brasil, os da América Latina – que sempre é bombardeada com os dardos inflamados do fundamentalismo religioso (que é político) e de moralismos excludentes.

Mas, olhando para Cristo, quero que guardem a seguinte mensagem: Que quem segue a justiça e a bondade achará a vida, a justiça e a honra, como diz em Provérbios 21.

Lembrem-se que fomos crucificados com Cristo. Sendo assim, já não vivemos mais nós. Vivemos pela fé no filho de Deus, e o dom gratuito de Deus é a vida. E o prazer é parte essencial da vida. Vivamos!

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Jackson David/Pixabay