“Terrivelmente católico”? A cobertura noticiosa sobre o perfil religioso de Kassio Nunes Marques
No dia 2 de Outubro, o Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) indicou o jurista Kassio Nunes Marques para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo o protocolo para o preenchimento do cargo. Ele vai substituir o decano Celso de Mello, que se aposenta da corte no próximo dia 13. Kassio Nunes Marques é desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) e precisa ser confirmado pelo Senado para tomar posse na mais alta corte do país.
Essa é a primeira de duas indicações ao STF que Bolsonaro pode fazer em seu mandato. O próximo ministro a deixar a corte será Marco Aurélio Mello, ao completar 75 anos em 2021. Em julho de 2019, o presidente prometeu que indicaria alguém “terrivelmente evangélico” em uma das duas ocasiões, uma delas em evento com apoiadores religiosos. Apesar da pressão da bancada evangélica no Congresso Nacional, Bolsonaro decidiu por um nome católico que tem sido interpretado como um aceno ao Nordeste (o indicado é piauiense) e ao “Centrão”. O “Centrão” é um grupo informal de parlamentares de diversos partidos de centro e centro-direita que apoiaram governos ao longo do tempo de forma a garantir ao Planalto maioria no Congresso, em troca de cargos e verbas para projetos..
Reações de evangélicos
Apesar de seguir a fé católica, o nome de Nunes gerou reação de integrantes da bancada evangélica e de lideranças evangélicas influentes na política por outro motivo. O jornal O Globo destaca que evangélicos cobram que o indicado se declare “conservador”. “Até agora ele (Kassio Marques) não veio a público dizer se é conservador, se é a favor do aborto, se é a favor de jogos de azar, se é a favor de casamento homossexual, se valoriza a família. Se for um conservador, parabéns, boa indicação. Mas até agora nem o indicado nem o próprio presidente está mostrando o currículo de conservador dele”, afirmou o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) à reportagem do jornal carioca.
Após o anúncio de Kássio Nunes Marques, o pastor evangélico Silas Malafaia, padrinho político de Sóstenes Cavalcante, criticou a indicação. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, ele criticou o fato de Nunes ter sido levado ao TRF-1 por indicação da então presidente Dilma Rousseff (PT). O jurista entrou no tribunal em 2011 para preencher a vaga destinada a advogados.
Em seu primeiro vídeo comentando a decisão de Bolsonaro, o destacado pastor da Asssembleia de Deus Vitória em Cristo também criticou o fato da indicação ser apoiada pelo “Centrão”. Para a Folha de S. Paulo, no entanto, ele descartou a hipótese de que se opõe a Kassio Nunes Marques porque queria uma nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” na primeira vaga indicada por Bolsonaro. No último dia 5, o presidente se comprometeu novamente a indicar um evangélico na próxima ocasião, sugerindo que o nome pode ser até mesmo um pastor.
Diferentemente do pastor Malafaia, a Igreja Universal, do Bispo Edir Macedo, e o deputado federal Marco Feliciano (Republicanos-SP), apoiaram a indicação de Bolsonaro. A igreja de Edir Macedo afirma que “pode representar um acréscimo à nossa suprema corte, sempre no caminho do desejável equilíbrio que toda a sociedade brasileira demanda e espera do Poder Judiciário”. Já Marco Feliciano não vê problema no indicado ser católico nem em sua indicação ao TRF-1 ter sido feita pelo governo petista. O pastor diz confiar no “feeling do presidente” e na promessa de Bolsonaro, de que a próxima indicação será de um evangélico.
Perfil religioso de Kassio Nunes Marques
Utilizando como parâmetro as cobranças do deputado Sóstenes Cavalcante, Bereia buscou decisões de Nunes que toquem nesse temas citados.
Apesar de ser possível identificar decisões em prol da liberdade religiosa, elas não deixam claro o que ele pensa a respeito de temas caros à bancada evangélica. A sua mais nítida defesa da liberdade religiosa é uma decisão que garantiu a Testemunhas de Jeová o direito de não receberem transfusão de sangue forçada, uma vez que a religião dessas pessoas impede essa prática.
Já a respeito de casamento entre pessoas do mesmo sexo, em setembro de 2011, o desembargador decidiu a favor de conceder a cota-parte de pensão a um viúvo de união estável homoafetiva, tendo levado em conta a situação de saúde do viúvo. Em maio daquele ano, o STF havia reconhecido a união estável homoafetiva no país.
O jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem que cita a expectativa de que Marques seja resistente ao aborto. Entretanto, em 4 de outubro, a deputada estadual paulista Janaína Paschoal (PSL) postou críticas no Twitter a respeito de uma menção à questão do aborto na dissertação de mestrado de Kássio na Universidade Autônoma de Lisboa (UAL).
A primeira citação ao aborto vem na esteira da exposição de um debate sob a interpretação de Constituições. Nunes explica a existência de uma visão “substancialista”, que interpreta a lei maior para defender direitos fundamentais. Em contraposição, existe a visão “procedimentalista”, que lê a carta magna visando o procedimento democrático.
Nesse sentido, como exemplo de visão substancialista, Nunes explica a argumento de Dworkin:
“Para Dworkin, essa questão [do aborto] não deveria ser decidida na via democrática, uma vez que inevitavelmente atrairia discussões de aspecto moral, que devem ser evitadas, já que a predominância da vontade de uma maioria tida como conservadora violaria a sua teoria de igualdade de representação. Se decidida por juízes, estes aspectos possivelmente não teriam o mesmo peso na formação do seu convencimento.” (p. 25).
Em sua publicação, Janaína Paschoal diz que seria importante saber o que Nunes pensa sobre o tema. E, de fato, pelo trecho em que toca no assunto, não é possível saber qual é a visão do indicado de Bolsonaro sobre o aborto. Questionado sobre isso em comentários no Facebook, o presidente respondeu: “Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada)” e complementou dizendo que o indicado está 100% alinhamento com ele.
A ADPF 442
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um instrumento jurídico previsto pela Constituição em seu Artigo 102. De acordo com a Lei 9.882/99, que regulamenta esse instrumento, uma ADPF busca “evitar ou reparar lesão a um direito fundamental resultante de ato do Poder Público” (Art. 1). É o STF que julga as ADPFs.
A ADPF 442 foi apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017 questionando os artigos 124 e 126 do Código Penal que criminalizam o aborto. A arguição defende que as razões jurídicas que instituíram esses artigos não se sustentam mais e pede que interrupções da gravidez (induzida ou voluntária) até 12 semanas de gestação sejam descriminalizadas. Em agosto de 2018, a ministra Rosa Weber, relatora da ADPF 442, conduziu uma audiência pública sobre o tema. As exposições dos participantes estão disponíveis no site do STF.
No dia seguinte, a deputada estadual voltou a comentar sobre o tema em sua rede: “Bolsonaro disse que garante que Dr Kassio não é favorável à legalização do aborto. Eu prefiro que Dr Kassio garanta pessoalmente. Se ele falou sobre o currículo, também pode falar sobre essas questões, que perpassam seus escritos, de forma a sugerir uma visão liberal demais.” Até o fechamento desta matéria, o indicado de Bolsonaro não havia se pronunciado sobre o assunto. Bereia continuará acompanhando o caso em sua Torre de Vigia.
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Foto de Capa: TRF-1/Reprodução
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Referências
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