“Deus, pátria e família”: o que é o neoconservadorismo em destaque na política do Brasil – parte 2

No contexto da tensão social produzida pelo conjunto de acontecimentos políticos ligados à direita extremista, descritos no primeiro artigo deste estudo, surge, no Brasil, um novo ator político ligado ao neoconservadorismo religioso: o evangélico pentecostal. O aprofundamento do conservadorismo moral defendido por figuras religiosas e, particularmente, disseminadas pelo presidente da República Jair Bolsonaro (2019-2022), desde que se colocou no centro do debate, faz com que busquemos compreender a relação entre o ex-presidente e tais preceitos.

Um ponto importante, defendido pelo pesquisador Geoffrey Pleyers, é que não haveria uma batalha ideológica opondo evangélicos e católicos, como costumeiramente se imagina, mas sim, uma disputa em torno do fundamentalismo religioso. A polarização se daria entre progressistas e conservadores, independentemente da identificação religiosa.  Ele esclarece como a categoria “evangélicos” agrega diferentes denominações e subdivisões, por isso seria uma análise superficial dizer “os evangélicos”, pois foram os ‘cristãos conservadores’ que ajudaram a eleger Bolsonaro.

As igrejas evangélicas históricas enfrentaram embates ideológicos/teológicos, com influência de correntes norte-americanas, quando o pentecostalismo sofreu cisões tendo sua fé “renovada”. Após a abertura democrática e elaboração da constituição de 1988, a atuação política sofreu uma guinada. Com uma miscelânea de partidos políticos à disposição, mas preferencialmente pelos de direita e centro-direita, representantes de igrejas pentecostais passaram a ocupar espaços dentro do executivo e legislativo, almejando cargos mais altos.

Em sua maioria, a membresia das três maiores igrejas do segmento pentecostal: Assembleia de Deus (AD), a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ) é composta por  pessoas pretas e pardas . Nesse contexto de crescimento numérico e de ocupação do espaço público, é criado, nestes espaços, um imaginário de povo, “povo de Deus”, “povo brasileiro”, como se tratasse de uma religião que o representasse. Mesmo compondo uma minoria, em 1986 pentecostais somam um terço do parlamento e a partir de então passam a ser um dos protagonistas da política brasileira, almejando cargos cada vez mais altos, confrontando os limites do establishment.

Em pouco menos de meio século, esses grupos passaram se articular politicamente e a fazer parte do cenário atual. Na primeira metade do século 20 um evangelismo fundamentalista missionário é popular entre classes médias e baixas, simpatizante do capitalismo, mas que rechaça o envolvimento com a política. Por outro lado, o chamado neopentecostalismo, que se estabelece com força a partir dos anos 1980, se opõe a essa visão, se alinhando à política e à Maioria Moral estadunidense.

Um sintoma do neoconservadorismo moral e religioso na política foi a consolidação da Bancada Evangélica por meio da criação da Frente Parlamentar Evangélica, em setembro de 2003, com deputados e senadores de diferentes siglas e partidos, mas que se propunham a defender pautas relacionadas ao Cristianismo. Para ter governabilidade e aprovar medidas de cunho social, o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) à época, com o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, se viu obrigado a fazer alianças com o grupo, permitindo-lhe mais espaço em cargos do Poder Executivo e participação em projetos sociais.

A força política adquirida permitiu que os políticos evangélicos avançassem na demanda por pautas nevrálgicas ao neoconservadorismo. Uma das ações foi a campanha, em 2011, no início do terceiro mandato do PT no governo federal, contra um material didático-pedagógico que seria destinado às escolas públicas, cujo conteúdo visava conscientizar estudantes contra a homofobia. Parlamentares católicos e evangélicos ameaçaram embargar políticas sociais e econômicas caso o governo não cancelasse o projeto. O então deputado Jair Bolsonaro (Partido Progressista), junto com representantes da Bancada Evangélica, passaram a chamar o material enviado para as escolas públicas nessa campanha de “kit gay” para fazer acusações ao projeto de que serviria para perversão sexual dos estudantes. 

Nesse sentido, embora as lideranças do PT nos três mandatos de governo (2002-2016), sob a Presidência de Lula e Dilma Rousseff, não tivessem uma afinidade religiosa com esses grupos religiosos, colaboraram com seu fortalecimento ao realizar alianças para concessão de cargos e ceder a pressões.

Como afirmou a cientista política Wendy Brown: “O ressentimento é energia vital do populismo de direita”. Ou seja, para os cristãos neoconservadores, o avanço de pautas progressistas constituem uma ameaça, por isso se sentem ameaçados com o avanço da agenda LGBTQI+ (criminalização da homofobia, casamento e adoção por casais homoafetivos), incorporação da temática igualdade de gênero em processos educacionais (caso da rejeição ao Plano Nacional de Educação, em 2014), e atuam de maneira a cercear direitos já conquistados.

O embate entre homossexuais e cristãos conservadores reforçou a retórica denominada “cristofobia”, uma forma de apropriação do termo e contra-argumento, pois o acusado de homofobia se colocada no papel de vítima de intolerância religiosa sobre o qual teria sua liberdade religiosa ameaçada. Outra reação dessa bancada religiosa foi PL 234/2011 que regulamentava a atuação de psicólogos no tratamento da homossexualidade, conhecido popularmente como ‘cura gay’.

Já a ideia de esforço individual é uma cruzada contra políticas distributivas e identitárias que beneficiariam determinados grupos sociais em detrimento de grupos que precisariam sobreviver com seu próprio esforço. O antropólogo Ronaldo Almeida relaciona a valorização da ideia de meritocracia à Teologia da Prosperidade, popular entre neopentecostais, mas que se expande entre outras ramificações evangélicas. Refere-se ao princípio de que o desenvolvimento financeiro e a prosperidade material são benesses pelos esforços nos empreendimentos individuais e participação religiosa. Bolsonaro chegou a dar o título da sua proposta de plano de governo 2018, de “O caminho da prosperidade”, uma clara referência a esta teologia. Almeida observa ainda como Bolsonaro se autodenomina “pessoa de bem”, buscando criar uma conexão com trabalhadores honestos, vítimas de violências do crime e da corrupção do Estado.

É nesse sentido que o neoconservadorismo está presente na esfera pública nacional e em diferentes setores sociais, mas é o segmento religioso que tem liderado campanhas de cunho cristão e pautado temas moralistas com perspectiva excludente.

Referências

ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estudos. São Paulo: CEBRAP. v. 38 n. 01. Jan.-Abr. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/rTCrZ3gHfM5FjHmzd48MLYN/abstract/?lang=pt

BAHIA, Joana; KITAGAWA, Sergio Tuguio Ladeira (2022). Religious conservatism in Brazilian politics: The discreet presence of Calvinist political theology in the public sphere. In: Revista del CESLA International Latin American Studies Review. Disponível em: https://www.revistadelcesla.com/index.php/revistadelcesla/article/view/775

BROWN, Wendy. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas “democracias” do século XXI. In: ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara; MELO, Mariana (Orgs.). Neoliberalismo, neoconservadorismo e crise em tempos sombrios. Recife: Editora Seriguela, 2021.

BURITY, Joanildo. A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder?. Conferência Conservadorismos, Fascismo, Fundamentalismos: 12 dez 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/311582235  

CAMURÇA, Marcelo. “Um poder evangélico no Estado Brasileiro? Mobilização eleitoral, atuação parlamentar e presença no governo Bolsonaro”.  Revista do NUPEM, vol. 12 nº 25, 2020. Disponível: https://periodicos.unespar.edu.br/index.php/nupem/article/view/5597  

CARRANZA, Brenda. Evangélicos: o novo ator político. In: GUADALUPE, José Luis P.; CARRANZA, Brenda. Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI.  Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020. Disponível: https://www.kas.de/pt/web/brasilien/einzeltitel/-/content/novoativismo-politico-no-brasil . PLEYERS, Geoffrey. 2021. “El ascenso político de los actores religiosos conservadores. Cuatro lecciones del caso brasileño”. Encartes, v 3, n.6, set 2020-fev 2021. Disponível em  https://encartes.mx/pleyers-ascenso_politico_religiosos_conservadores_brasil/

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.***Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Deus, pátria e família”: o que é o neoconservadorismo em destaque na política do Brasil – parte 1

De 2018 a 2022, vimos a figura do ex-presidente Jair Bolsonaro (PSL) declarar seu lema “Deus Pátria e Família” com a retórica de “conservadorismo”. Em seu discurso na 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o político chegou a declarar: “O Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família a sua base”. Ao longo da mesma fala, ele fez um apelo à comunidade internacional pela liberdade religiosa a fim de combater o que chamou de “cristofobia”. Tais declarações trazem à tona dois elementos centrais na composição das bases do que se convencionou chamar “bolsonarismo”: religiosidade e neoconservadorismo. 

Para entendermos a origem desse discurso, teremos que retomar brevemente o conceito de neoconservadorismo. Conservadorismo é um movimento amplificado, não só de ideias, mas de convenções sociais e reações a mudanças do mundo moderno. Apresenta um discurso de retorno a ordem, de previsibilidade, controle de excessos morais para fortalecimento da unidade nacional. Sua esfera de influência se dá na política, cultura, arte, sexualidade. Em sua raiz histórica, conservadores se constituíam como contrarrevolucionários, posicionando-se em oposição a qualquer pensamento que questionasse a ordem do establishment, em especial revoluções lideradas pelo proletariado, defendendo assim a ordem burguesa. 

Já o neoconservadorismo se origina na década de 1950, em Nova York. O movimento foi estimulado no contexto da Guerra Fria, de enfrentamento do comunismo e da União Soviética, e pelo avanço de ideias feministas e de movimentos culturais liberais. No neoconservadorismo algumas características se destacam: defesa do nacionalismo exacerbado; religiosidade como sustentáculo do Estado; luta contra comunismo, ideologia sionista e defesa incondicional do Estado de Israel; associação ao neoliberalismo – não intervenção do Estado na economia –, além de salvaguarda e manutenção das instituições tradicionais, hierarquias e desconfiança de alterações sociais bruscas, buscando manter a política estável com mudanças lentas e sólidas. 

O movimento foi constituído na década de 1970 por grupos dominantes do capital e setores moralistas da classe trabalhadora, explica David Harvey. Tal associação inspirou ideias centradas na defesa tradicional da formação familiar, defesa de determinada doutrina cristã e concepções direitistas em oposição a ideias progressistas relacionadas ao feminismo, direitos LGBTs, programas de inserção social. Era uma aliança entre grupos divergentes, cristãos evangélicos, judeus, promotores da Guerra Fria, defensores da família tradicional, intelectuais, militares, liberais. 

O discurso cristão é uma das bases do conservadorismo nos Estados Unidos e tem sido de maneira semelhante aqui no Brasil. É constituído por setores evangélicos e evangélicos conservadores. Essa nova direita tem um discurso anticomunista e se posiciona contrário a medidas que promovam o Estado de bem-estar social. Foi com o apoio desse grupo que o presidente Ronald Reagan foi eleito em 1980 e o Partido Republicano conquistou maioria no congresso. Embora constituíssem um grupo pequeno, portanto minoritário, argumentavam que sua organização e coerência fazia com que se tornassem a “Maioria Moral”, por isso assim se autodenominavam.

Nesse período, grupos conservadores evangélicos ainda tinham a si mesmos como missionários imbuídos da missão de levar o Evangelho aos países da América Latina. Os Estados Unidos, vistos como detentores da moral, seriam os únicos capazes de levar os valores cristãos onde o pecado se precipita. Para eles, a ideia de livre mercado converge ou conversa com o princípio de livre arbítrio, por isso Cristianismo e capitalismo seriam uma união ideal. 

Havia ainda o anticomunismo em oposição à chamada Teologia da Libertação, movimento que se propaga em círculos evangélicos progressistas na América Latina, a partir dos anos 1960, mas ganha mais intensidade na Igreja Católica e se populariza. A proposta partia de uma análise socioeconômica de instrumentalização da fé visando a responsabilidade social, políticas distributivas, libertação dos povos marginalizados e políticas de responsabilidade social.

Nesta perspectiva da direita evangélica está o sionismo na defesa de Israel. Há uma leitura que relaciona judeus e cristãos a partir do Antigo Testamento, sendo notável a preferência pelos textos desta parte da Bíblia em pregações e discursos, em especial entre pentecostais e neopentecostais. Pesquisadores, como John Mearsheimer e Stephen Walt chamam essa característica de “sionismo cristão” e os motivos que teriam levado grupos tão distintos a se unirem teria sido suas atividades e áreas de interesses em comum.

Outra bandeira de sustentação do neoconservadorismo é a “pauta moral”. Para as lideranças que abraçam esta perspectiva, haveria papéis sociais e sexuais hierárquicos, direcionados a homens sobre mulheres no cuidado e educação dos filhos. Por isso, uma reação antifeminista chegou a se opor a políticas de combate a violência doméstica, pois alegavam que esse seria um problema possivelmente solucionado com a valorização e fortalecimento da instituição “família”, mesmo argumento utilizado para defender palmadas de pais e responsáveis em crianças. 

No que confere ao militarismo anticomunista, os Estados Unidos viam na União Soviética e a ameaça comunista um inimigo a ser combatido, por isso, o fundamento conservador se configura um elemento de combate a ideologias e discursos. Tal pauta moralista conservadora e anticomunista estava presente não apenas nos discursos e costumes, como também na indústria cultural estadunidense fabricada e exportada por meio de filmes de Hollywood, cantores e estilos musicais. 

Pesquisadores apontam os desajustes sociais e o consequente fortalecimento de medidas punitivistas como consequência do avanço do neoliberalismo e neoconservadorismo. Ou seja, na medida em que as desigualdades, exclusão, marginalização avançam, cresce também a violência. Nisso, transparece a conveniência do discurso pró-armamento e em defesa de uma política combativa por parte do Estado. Indivíduos comuns são tolhidos e culpados, enquanto o sistema exclusivista beneficia determinadas classes.

No Brasil, a ala conservadora pós-década de 1990 foi ao encontro dessa agenda neoliberal defendendo a entrada do capital estrangeiro e enxugamento da máquina estatal. Somado a isso, o neoconservadorismo se fortaleceu a partir desse período com pautas morais e em defesa de valores cristãos, ganhando ressonância em igrejas neopentecostais. 

A internet se tornou um espaço de fortalecimento e expansão desse ideal conservador, que pode ser observado no Brasil, ocupado por movimentos direitistas, surgidos a partir dos protestos de 2013, como: Vem pra Rua, Movimento Brasil Livre, Revoltados Online, Proteste Já!. A união desses grupos conservadores, somado ao fortalecimento do antipetismo (o Partido dos Trabalhadores/PT estava no poder do país nesse período) e o crescimento da presença evangélica no espaço público, são elementos que nos ajudam a compreender a ascensão do neoconservadorismo ao poder no Brasil a partir de 2016, o que será tratado no segundo artigo deste estudo.

Referências:

BURITY, Joanildo. Itinerário histórico-político dos evangélicos no Brasil. In: ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara; MELO, Mariana (Orgs.). Neoliberalismo, neoconservadorismo e crise em tempos sombrios. Recife: Editora Seriguela, 2021.

CAMILO, Rodrigo Augusto Leão. A Teologia da Libertação no Brasil: das formulações iniciais de sua doutrina aos novos desafios da atualidade. II Seminário de Pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais. Goiânia: UFG, 2011. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/253/o/Rodrigo_Augusto_Leao_Camilo.pdf 

HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2005.

LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Editora Zouk, 2019

MEARSHEIMER, John J. e WALT, Stephen M. The Israel Lobby And U.S. Foreign Policy. Nova Iorque: Farrar, Straus And Giroux.NETTO, Leila Escorsim. O conservadorismo Clássico: elementos de caracterização e crítica. São Paulo: Cortez, 2011.

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***Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil