Publicações que exaltam desempenho positivo economia da Argentina escondem grave crise social no país

“A Argentina hoje tem inflação controlada e a moeda que mais se valoriza no mundo. Já o real é a moeda que mais se desvaloriza. Como é bom ter um presidente”. Esta foi a afirmação do deputado federal de identidade evangélica Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em publicação de 2 de dezembro no seu perfil no X. A declaração foi feita no compartilhamento de uma publicação que apresenta um ranking de variação cambial das moedas em 2024.

Imagem: Reprodução/X

O mesmo ranking foi divulgado pelo presidente da Argentina Javier Milei, em seu perfil no Instagram. A informação sugere uma valorização de 40,1% do peso argentino entre dezembro de 2023 e outubro de 2024, com dados atribuídos à GMA Capital baseados no BIS (Bank for International Settlements). 

O conteúdo divulgado pelo deputado faz parte de um conjunto de publicações que circulam no Brasil em exaltação da condução da economia pelo governo da direita extremista argentina Javier Milei, não só em mídias sociais mas também na grande imprensa. Essas postagens e matérias jornalísticas têm servido como material crítico ao governo Lula com forte circulação em ambientes digitais religiosos.

Imagem: Reprodução Estadão e O Globo

O levantamento utilizou como fonte o GMA Capital, com base em dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), e mostrou que entre dezembro de 2023 e outubro de 2024, o peso argentino valorizou, enquanto o real apresentou desvalorização. 

Ao compartilhar os dados no Instagram, o presidente Milei afirmou que, embora ainda não tenha encerrado as atividades do Banco Central da Argentina, como planeja, conseguiu proporcionar aos argentinos “a melhor moeda do mundo”.

Imagem: Reprodução/Instagram

Bereia analisou as informações e verificou a veracidade das informações. 

O que dizem os dados

Os dados divulgados por Milei e Bolsonaro foram produzidos pela GMA Capital, consultoria financeira argentina, com base em informações do Bank for International Settlements (BIS). O BIS é uma organização internacional que atua como banco central dos bancos centrais, estabelecendo metodologias padronizadas para análise de dados financeiros globais.

Bereia fez uma verificação dos dados do  BIS, entre os meses de dezembro de 2023 e outubro de 2024,  que revela algumas discrepâncias em relação ao ranking divulgado, entretanto não foi possível determinar a metodologia utilizada pela GMA Capital. 

Imagem: Gráfico do Bank for International Settlements – entre dezembro 2023 e outubro 2024 

Segundo os dados oficiais, o real brasileiro e o peso argentino, assim como demonstra o gráfico acima e o compartilhado pelo deputado, foram as moedas que mais se desvalorizaram e se valorizaram, respectivamente. O BIS utiliza o conceito de taxa de câmbio real efetiva, que considera não apenas a variação nominal da moeda, mas também outros fatores econômicos como inflação e fluxos comerciais entre países. 

A inflação na Argentina está controlada mas…

Em outubro de 2024, a inflação na Argentina atingiu 2,7%, o menor valor desde novembro de 2021, conforme o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) divulgado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) daquele país. O resultado ocorre em meio a um ajuste econômico conduzido pelo presidente Javier Milei, que assumiu o cargo em dezembro de 2023, nas bases ultraliberais anunciadas por ele desde a campanha eleitoral. 

Entre as medidas, o governo Milei paralisou obras federais, suspendeu os repasses financeiros para os estados e retirou subsídios para serviços essenciais, incluindo água, gás, luz e transporte público. A justificativa é a contenção da recessão e a redução dos gastos públicos.

Como resultado dos cortes, no primeiro trimestre de 2024, o governo Milei alcançou o primeiro superávit fiscal desde 2008. Ele alega que o objetivo é atingir o “déficit zero” até o final do ano. Porém,  a retirada dos incentivos provocou um aumento expressivo nos preços ao consumidor e a consequente redução na capacidade de consumo da população.

Outro resultado é que a inflação na Argentina também desacelerou significativamente, tendo passado de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,7% em outubro de 2024. Essa redução é atribuída à queda no potencial de consumo da população e às medidas que restringiram a emissão de moeda pelo governo.

A desaceleração da inflação na Argentina ainda não trouxe alívio significativo para a vida da população. Os preços de serviços públicos, transporte e alimentos permanecem elevados, enquanto o salário mínimo, de 271,5 mil pesos (equivalente a 1.600 reais), não acompanha a inflação de três dígitos.  

Por outro lado, a economia enfrenta retração. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo trimestre de 2024, em relação ao mesmo período do ano anterior, resultados piores do que o esperado por analistas. Enquanto isso, cortes de subsídios e o aumento no custo de produtos básicos pressionam ainda mais os argentinos, em um cenário de salários estagnados e perda de poder de compra.

Dados positivos para quem?

Apesar de apoiadores do presidente argentino e o mercado financeiro aclamarem os resultados do dólar e  da queda da inflação argentina, os custos têm sido altos para a qualidade de vida da população. Bereia levantou os principais pontos críticos resultantes dessa política econômica conforme análises publicadas por diferentes fontes.

1. Aumento da Pobreza

Em setembro de 2024, um levantamento do Indec revelou que o número de argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou no primeiro semestre de 2024, e alcançou 15,7 milhões de pessoas, o que corresponde a 52,9% da população, ou 4,3 milhões de famílias. O Indec considera abaixo da linha da pobreza os cidadãos cujo rendimento familiar não cobre necessidades básicas como alimentação, vestuário, transporte, educação e saúde.  

Durante os primeiros seis meses do governo de Javier Milei, 3,4 milhões de pessoas ingressaram nessa faixa, o que representa um aumento de 11,2 pontos percentuais em relação ao segundo semestre de 2023. Naquele período, 41,7% da população (12,3 milhões) viviam na pobreza. 

A pesquisa também apontou que 5,4 milhões de pessoas (18,1% da população) vivem em situação de indigência, um aumento em relação ao fim de 2023, quando esse grupo somava 3,5 milhões (11,9%). Entre as famílias, 1,4 milhão foram classificadas como indigentes, ante 870 mil no segundo semestre de 2023.  Indigentes são definidos pelo Indec como aqueles sem acesso a alimentos suficientes para atender às necessidades diárias de energia e proteínas. Esse aumento representa o maior crescimento da pobreza nos últimos 20 anos na Argentina.

2. Vulnerabilidade de crianças 

    Com quase 25 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza na Argentina, segundo o relatório recente do Indec, mais da metade da população, aproximadamente 53%, é pobre. A situação mais alarmante, no entanto, é a das crianças: mais de 66% dos menores de 14 anos estão na pobreza, o que significa que duas em cada três crianças vivem em condições precárias.

    Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), publicado em agosto passado, destacou que, diariamente, um milhão de crianças na Argentina vão dormir sem jantar, enquanto 1,5 milhão pulam refeições ao longo do dia. Para aqueles que ainda têm acesso à comida, o aumento nos preços dos alimentos mais nutritivos tem dificultado a alimentação saudável. A desnutrição infantil pode afetar gravemente a saúde das crianças, e comprometer o futuro do país.

    3. Queda na renda e no emprego

      Embora o desemprego na Argentina esteja relativamente baixo, com taxa de 7,6% após um aumento de 1,9 ponto no primeiro semestre de 2024, o aumento da pobreza é atribuído a outros fatores. Embora os mais vulneráveis recebam “planos sociais”, que surgiram após a crise de 2001-2002, a explicação para o crescimento da pobreza está na queda do poder de compra. Os salários não acompanharam a inflação, e isso resulta em um fenômeno novo no país: o aumento do número de trabalhadores pobres.

      Esse problema é ainda mais agravado pelo crescimento do emprego informal, que hoje representa cerca de 47% dos trabalhadores. De acordo com o Instituto Gino Germani, da Universidade de Buenos Aires, 70% dos trabalhadores informais vivem abaixo da linha da pobreza. Além disso, 30% dos trabalhadores formais, ou mais de 2 milhões de pessoas, também estão em situação de pobreza. 

      Esta crise social tem gerado protestos da população em manifestações de rua, como as realizadas nos primeiros dias de dezembro de 2024. 

      Imagem: Reprodução Veja e Clarín

      Uso dos dados positivos argentinos para criticar o governo do Brasil

      Classificado como um bom presidente pelos aliados do Brasil, como na postagem do deputado Eduardo Bolsonaro checada pelo Bereia, Milei e seus números positivos têm sido usados em contraposição ao governo Lula e a alta taxa do dólar em relação ao real nas últimas semanas.

      A desvalorização do real, que já acumula cerca de 15% desde o início de 2024, revela um cenário complexo onde os fundamentos econômicos contrastam com as movimentações do mercado financeiro. Os dados econômicos apresentados pelo ministro da Casa Civil Rui Costa, mostram um país com crescimento do PIB de 3,2% em 2023, projeção de 3,5% para 2024 e o menor índice de desemprego da série histórica, atingindo 6,2% segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

      O movimento especulativo contra o real que coloca o dólar em patamares bem superiores, ocorre em um momento em que o país mantém reservas internacionais superiores a 350 bilhões de dólares e apresenta superávit na balança comercial de US$ 1,13 bilhão e registra IPCA acumulado de 2,27% até maio de 2024, dentro da meta estabelecida.

      A pressão sobre a moeda brasileira tem características específicas do chamado “mercado”. Na prática, este se resume a cerca de 160 pessoas, principalmente executivos de bancos e instituições financeiras que participam da pesquisa Focus do Banco Central. São estes atores que dominam as operações cambiais, representando grandes conglomerados financeiros.

      A movimentação do mercado financeiro representa, no Brasil,   oposição às políticas econômicas desenvolvidas pelo atual governo,  que alega ter como prioridade garantir direitos e reduzir a pobreza e a fome. Para os atores do mercado, isto representa peso aos gastos públicos.

      Os gastos governamentais atuais são criticados por estarem em níveis elevados, conforme o discurso do mercado financeiro que pressiona por cortes no orçamento federal, ainda que o governo busque aumentar a arrecadação para atingir o déficit zero. No entanto, foi enviado ao Congresso um projeto econômico pelo governo, com foco na redução de privilégios e manutenção de direitos. Contudo, essa abordagem não atendeu às expectativas do mercado financeiro, o que resultou na alta do dólar.

      De acordo com a jornalista especializada em economia Miriam Leitão, a principal preocupação do mercado financeiro está no aumento da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) para os bancos, com o objetivo de financiar a desoneração da folha salarial de 17 setores e dos municípios com até 156 mil habitantes. Em contraste, a questão que, segundo ela, interessa a quem tem “bom coração”, é a diminuição da carga tributária sobre armas, prevista na reforma tributária.

      Mesmo com dados econômicos favoráveis, como o menor desemprego da série histórica e crescimento econômico acima do esperado, o mercado financeiro mantém pressão constante por redução de gastos públicos. A conjuntura evidencia uma postura ideológica que transcende os indicadores econômicos reais e que são centrais no pensamento neoliberal: a constante pressão por redução do papel do Estado na economia, mesmo em momentos onde os indicadores econômicos, como crescimento do PIB e geração de empregos, mostram resultados positivos.

      Bereia ouviu a jornalista argentina Cláudia Florentin Mayer, integrante do Conselho Editorial do Bereia sobre as informações que circulam com exaltação às medidas econômicas do governo Milei. Ela afirma que a valorização da moeda em relação ao dólar está atrelada à redução de 40% no valor do peso argentino necessário para a compra de dólares, em comparação com dez meses atrás. A jornalista ainda observa que essa valorização pode ser vista como um aspecto da avaliação da moeda, mas que leva em consideração apenas a taxa de câmbio.

      “Para que uma moeda seja forte, outros aspectos devem ocorrer: a produção nacional – que está em queda -, o volume do PIB (que está em queda atualmente), a renda per capita que está muito abaixo do necessário, o salário mínimo que não cobre a cesta básica, etc. Existem muitos outros fatores de falta de proteção social e de pobreza que não são medidos quando vemos apenas a queda da inflação e da moeda”. 

      Claudia Mayer também observa que as análises apontam que o governo Milei parece enfatizar unicamente o objetivo do “déficit zero”, sem considerar outros aspectos socioeconômicos relacionados à vida da população .

      ***

      Bereia classifica o conteúdo sobre a valorização do peso argentino, divulgado pelo deputado  Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para criticar a desvalorização recente do real brasileiro como impreciso. Embora os dados do Bank for International Settlements (BIS) confirmem que o peso argentino foi a moeda mais valorizada e o real a mais desvalorizada no período analisado, este dado isolado omite os contextos econômicos mais amplos dos países.

      O deputado, ao compartilhar o ranking de valorização monetária sem o devido contexto, desinforma pois induz o público a uma interpretação equivocada da situação econômica, utilizando dados isolados para construir um conteúdo que não reflete a realidade completa. Quando comparada a taxa de inflação, a Argentina acumula 193%, enquanto no Brasil a taxa é de 4,76%. Quando levados em conta os índices sociais de qualidade de vida na Argentina, a situação é bastante crítica em relação à do Brasil.

      Bereia alerta seus leitores sobre a importância de avaliar dados econômicos dentro de seu contexto mais amplo. Números são frios e precisam ser interpretados em relação a outros elementos da realidade local. Indicadores isolados, como a valorização de uma moeda, podem favorecer especuladores financeiros mas mascarar problemas econômicos estruturais quando não são analisados em conjunto com outros dados macroeconômicos relevantes. A verificação do Bereia ressalta a necessidade de buscar fontes diversas e análises mais abrangentes para compreender adequadamente a situação econômica de qualquer país.

      Referências de checagem:

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/11/13/inflacao-argentina-outubro.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/06/24/pib-argentina.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/19/recessao-na-argentina-se-aprofunda.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/26/argentina-pobreza.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/milei-divulga-ranking-mostra-peso-argentino-como-moeda-mais-valorizada-2024/ Acesso em: 3 dez 2024

      BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cr4x931xnzro Acesso em: 3 dez 2024

      Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/12/16/interna_internacional,1331930/cronologia-da-crise-argentina-de-2001.shtml Acesso em: 3 dez 2024

      InfoMoney. https://www.infomoney.com.br/politica/rui-costa-diz-que-reacao-do-mercado-e-ataque-especulativo-contra-o-real/ Acesso em: 4 dez 2024

      IHU Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/640974-o-que-esta-por-tras-do-ataque-especulativo-a-moeda-brasileira Acesso em: 4 dez 2024

      Seu Dinheiro. https://www.seudinheiro.com/2024/bolsa-dolar/dolar-real-ataque-especulativo-o-que-e-rens/ Acesso em: 4 dez 2024

      ii. Documentos e bases de dados:

      Bank for International Settlements (BIS). https://www.bis.org/ Acesso em: 3 dez 2024

      Trading View – Indicadores Econômicos Globais. https://br.tradingview.com/markets/world-economy/indicators/inflation-rate/ Acesso em: 3 dez 2024

      Meio. https://www.canalmeio.com.br/2024/12/04/miriam-leitao-mercado-financeiro-teme-incerteza-fiscal-mas-aceita-autoritarismo/. Acesso em: 5 de dezembro de 2024.

      Nem normal, nem novo normal, mas bem viver

      *Publicado originalmente no IHU em 07 de Julho de 2020.

      Metade de 2020 vai passando e estamos diante de uma pandemia gravíssima. Em alguns lugares do mundo com mais gravidade: Brasil, por exemplo; outros com menos: Nova Zelândia, por exemplo. E a crise econômica que já estava instalada antes e está piorando durante, será agravada depois da pandemia afetando todo planeta.

      De janeiro até agora uma pergunta tem se repetido: “Como será a vida no pós-pandemia?” As primeiras previsões, por parte de muitos, era otimista: “Teremos um mundo melhor”. Mas o tempo foi passando e fomos assistindo situações das mais grotescas.

      Muitos estão comemorando a volta ao “normal”. Outros falam de um “novo normal”. Apontaremos aqui para outra direção. Talvez tal direção seja “um sonho acordado da mente humana”, como diria o filósofo L. Feuerbach, quando se referia à religião, lá no século dezenove. Contudo, antes de chamar a utopia do Bem Viver de irrealizável, pelo menos se pergunte o que é “normal” ou o tal “novo normal”. Faça um esforço, se possível, de olhar a realidade e verificar se o que está acontecendo é uma situação na qual toda a vida que peregrina por este planeta vai em direção, no modelo que predomina, isto é, de relações capitalistas, de conduzir a natureza, e nela o ser humano, a um grau superior de convivência e harmonia. A um grau no qual possamos afirmar que há condições de alcançar dignidade fundamental de existência para todos os seres vivos. O que seria o “normal” ou o “novo normal”?

      1. O normal

      Fui ao dicionário buscar sinônimos: habitual, natural, comum, usual, corriqueiro, frequente, ordinário, trivial, banal, vulgar.

      Seria habitual não se espantar diante de quase 70 mil mortos e daqui uns dias bem mais? Ou buscar aquelas explicações estapafúrdias que dizem: “Durante o ano morre muito mais gente!”? Lembrando que a COVID-19 já matou muitos mais gente que qualquer outra doença, e mesmo acidentes de trânsito, e antes do fim do ano. Por que foi habitual o espanto com a morte de 71 pessoas no acidente com avião da Chapecoense?

      É natural que diante de uma pandemia com alto índice de contágio saiamos às ruas para comprar quinquilharias, ou algo que não seja realmente necessário? Mas alguns podem dizer: “Minhas meias estão velhas, preciso ir ao shopping adquirir meias novas. Ora, como posso ser feliz sem meias novas?”. É natural pensar assim?

      É usual agredir pessoas que se dedicam a salvar vidas porque estas estão dizendo que o seu parente morreu de COVID-19 e não de infarto?

      O que nos leva a agir de forma trivial com pessoas que pensam diferentes de nós?

      Vivemos relações na qual naturalizamos o que não é natural. Odiar é comum, mas não é comum cultivar o ódio. É frequente que cometamos erros com determinados saberes. Por exemplo, posso não saber qual é capital do Butão, mas afirmar que a terra é plana é um pouco demais, não é normal. Vivemos uma banalização do saber e, muitas vezes, admiramos o vulgar.

      Ora, em mundo onde um por cento da população detém a maior parte da riqueza produzida, é fundamental que se encontre entre os outros noventa e nove por cento, aliados e aliadas, conscientes ou inconscientes, que digam ser a vida destes um por cento normal.

      É normal que depois da pandemia voltemos aos níveis de consumo anteriores, que continuemos a olhar para o nosso próprio umbigo comprando, comprando, e comprando? Inclusive comprando muito remédio para nos manter de pé para continuar comprando? Quem acredita que um crescimento infinito é possível em um mundo finito, conclui um economista americano em 1973, ou é louco ou é economista.

      Podem dizer ainda: “É só mais uma pandemia. Morrerão milhares, mas depois a vida continua normal”. É o “normal” que está nos matando, e não apenas a COVID-19. É o normal que está aumentando o número de suicídios no mundo, que está fazendo crescer, assustadoramente, o consumo de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, inclusive drogas vendidas nas farmácias livremente. Enfim, é o normal que está aumentando a desigualdade planetária e você acreditando que um dia será uma pessoa normal.

      2. O novo normal

      Aqui existe uma enorme dificuldade. O Google não ajuda muito. As possibilidades são quase infinitas. Um montão de intelectuais quer ser o primeiro a definir o “novo normal” no pós-pandemia. Poucos vão em direção contrária, e os que vão quase não são ouvidos, pois são falas que dizem, por exemplo, que não será possível continuar a organizar a sociedade planetária em base ao que se chama “desenvolvimento”, mesmo que seja o tal “desenvolvimento sustentável”.

      Ouvir um dirigente de futebol afirmar que a federação montou um protocolo invejável para que as partidas fossem absolutamente seguras é altamente reconfortante (sic). Poxa, não mais o normal, é um “novo normal”.

      Alguns poucos estão pensando, de fato, em um novo modelo de sociedade, pois tudo indica que o normal ou novo normal não será capaz de responder a crise civilizatória que está aí. E se novas pandemias surgirem, pior ainda.

      De um lado temos políticos e partidos, nos quais tem gente boa, batendo cabeça para definir quem vai ocupar o cargo de “gerente” na prefeitura, no estado ou no país. Sim, gerentes da estrutura de poder do capital. O poder é econômico e pouco governamental.

      Do outro lado trinta por cento da população planetária que não tá nem aí para o resultado das relações de produção: “farinha pouca meu pirão primeiro”. São aliados dos tais um por cento que realmente tem poder e ainda podem arrastar os que precisam se alimentar agora, pois estes não podem esperar que a sociedade resolva as contradições sociais rapidamente.

      Ora, vem logo a pergunta: “o que fazer então?”.

      3. O Bem Viver

      Qualquer pessoa que afirmar ter uma solução para a crise civilizatória que estamos vivendo, seria como uma pessoa que afirma saber física quântica. Porém, o fato de não ter uma resposta pronta e acabada não significa que devamos nos render ao que esta aí. Precisaremos pensar de forma processual e por etapas. Os visionários muitas vezes sofrem muito. Percebem a necessidade de mudança com profundidade, mas ainda não conseguem propor exatamente um caminho que possa contagiar a maioria, pois a maioria ainda pensa dentro de uma estrutura mental que pode ser chamada de “normal”.

      É fato: “esta economia mata”, diz o Papa Francisco. Assim sendo, é preciso repensar o modelo. E assim, ainda na linha de Francisco, diante de uma “terceira guerra mundial em parcelas que instalou um genocídio”, será necessário reorientar o caminho que a humanidade está fazendo.

      E, por incrível que pareça não se trata de criar algo absolutamente novo, mas de resgatar uma sabedoria que pode ser chamada, em linhas gerais, de Bem Viver.

      Os povos tradicionais encontraram uma forma de sobreviver que possibilitou uma força de resistência capaz de passar pela dominação colonial sem desaparecer. Uma das expressões que os povos andinos usam para denominar este modo de vida é sumak kawsay, que pode ter como uma tradução possível o Bem Viver. Trata-se de buscar relações humanas calcadas não na acumulação, no desperdício, em sugar da natureza tudo o que for possível para um modo de vida opulento, mas na reciprocidade, na solidariedade, na empatia e na harmonia com o conjunto da natureza.

      Começa a surgir gente que pensa este modelo em sintonia com a situação da humanidade no presente estágio civilizatório. Como exemplo podemos citar o equatoriano Alberto Acosta, o uruguaio Eduardo Gudynas, e o boliviano Pablo Solon, entre outros e outras. Também em outras latitudes, como na Europa se pode citar a francesa Genevieve Azam e também francês Serge Latouche na linha do decrescimento, isto é, na afirmação de que o modelo desenvolvimentista está fadado a esgotar a vida planetária.

      Muitos podem dizer: “Doce utopia, muito bonito, contudo irrealizável”. Talvez. Contudo, estamos vivendo relações capitalistas faz tempo. De forma mais agressiva nos últimos duzentos anos. O socialismo real acabou não se configurando como alternativa. Houve, sem dúvida, crescimento humano neste processo. Porém, também sem dúvida, tal crescimento custou caro. Não estaria na hora de redirecionar o que se entende por “progresso” na direção de um maior equilíbrio nas relações que compõem a vida no planeta? Vamos “pagar para ver” para onde o “deus mercado” nos conduzirá?

      Sim, precisaremos pensar e agir de forma processual. Precisaremos estabelecer etapas. Precisaremos encontrar a intercessão que une todos e todas que acreditam em outro mundo possível. Precisaremos na etapa atual, por exemplo, defender a democracia como instrumento político que permita o debate e a configuração do novo horizonte. Mas não podemos nos render ao modelo político representativo que está esgotado. Não podemos mais confiar totalmente no modelo econômico totalmente extrativista.

      Seguindo aquela ideia gandhiana, precisaremos ser a mudança que desejamos no mundo. Anciãos, adultos e jovens, homens e mulheres, deveremos constituir um novo padrão de vida, não um novo normal. Quanto tempo será necessário? Não há previsão possível. Previsível é que da forma como está não haverá futuro. Trabalhemos agora no terreno pedregoso para que outras gerações possam plantar, e outras ainda possam colher.

      É interessante que muita gente que prega o normal se afirma cristã. Termino esta reflexão no domingo no qual o texto bíblico é o Evangelho de Mateus 11,25-20. Neste trecho Jesus faz uma oração ao Pai dizendo:

      “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos”.

      Parece que boa parte dos cristãos não confia muito nisso. O Papa Francisco tem sido uma grande exceção. Ele tem afirmado que nada pode ser feito para o povo, mas somente com o povo, isto é Bem Viver, isto é o UBUNTU da tradição africana: eu só posso ser se você for comigo. Essa é a nossa esperança, sem messianismo, sem salvadores da pátria. Quem viver verá.