Vídeo editado associa Dalai-Lama a pedofilia e abuso infantil

Nas últimas semanas teve grande repercussão nas mídias sociais um vídeo do 14º Dalai Lama, líder religioso do budismo tibetano e Nobel da Paz, interagindo com uma criança. Nas imagens o religioso aproxima o rosto do rosto de um menino, diz a frase em inglês “suck my tongue” (chupe minha língua) e coloca a língua para fora. 

O conteúdo compartilhado, em sua maioria acompanhado de mensagens de repúdio, associam o ato a casos de pedofilia e abuso infantil praticados por líderes religiosos, tema de grande apelo popular. A reação gerou um pedido oficial de desculpas por parte do Dalai-Lama, mas também uma onda de apoio ao líder religioso. 

Na tentativa de elucidar o caso, algumas figuras ligadas ao budismo tibetano se pronunciaram, explicando aspectos culturais desconhecidos na maior parte do mundo. Bereia checou as origens e o contexto do vídeo e do comportamento do líder religioso.

Quem é Dalai-lama

Dalai, em mongol, significa ‘oceano’ e lama é um termo usado para indicar um elevado grau de realização espiritual e de autoridade, capaz de passar seus conhecimentos adiante. Sendo assim, uma das traduções seria ‘Oceano de sabedoria’

Os seguidores do budismo tibetano acreditam que os dalai-lamas são a reencarnação de uma longa linhagem de lamas que optaram por reencarnar para ensinar sua sabedoria a toda humanidade. 

Tenzin Gyatso é o atual dalai-lama, tido como a 14ª encarnação do primeiro, Gendun Drup. Os dalai-lamas foram até 1959 também líderes políticos, já que o sistema político no Tibete antes da anexação à China era considerado teocrático.  

Em que contexto foi produzido o vídeo

O vídeo de grande repercussão negativa sobre a atitude do Dalai-lama com a criança é na verdade parte da transmissão ao vivo de uma formatura ocorrida em 28 de fevereiro na cidade de Dharamsala, na índia.

Durante a cerimônia, um menino cuja mãe trabalha para a instituição de ensino e está presente, pede para dar um abraço no Dalai-Lama. Depois de abraçar o religioso, os dois trocam outros gestos de carinho e brincadeiras. O religioso chega a fazer cócegas no menino e por fim dá um conselho à criança para que escolha boas companhias.

A presença dos pais do garoto e todo o contexto foram omitidos nas publicações que atacavam o comportamento do líder budista. Após a cerimônia, o menino concedeu uma entrevista dizendo que se sentiu muito bem na presença de Dalai Lama. “É um sentimento muito legal conhecê-lo e você recebe muito daquela energia positiva”, afirmou.

Vídeo viral e a língua na cultura tibetana

No vídeo completo, é possível testemunhar o pedido feito pelo menino para que pudesse abraçar Dalai Lama. Acolhido, o garoto abraça o líder espiritual e, a pedido do monge, beija seu rosto. Depois, Dalai Lama, segurando o queixo da criança, beija sua boca, num gesto aparentemente inocente.

Segundos depois, os dois tocam suas testas, no que aparenta ser um momento de bênção ou oração. Então, Dalai Lama diz “chupe minha língua” e traz o rosto do garoto para perto do seu. O menino se aproxima, mas o ato não se concretiza.

Diante da revolta gerada pelo vídeo, diversas figuras ligadas à realidade tibetana saíram em defesa de Dalai Lama, elucidando que, na cultura local, mostrar a língua é algo corriqueiro. Uma das fotos mais famosas de Dalai Lama retrata o líder com a língua para fora.

Imagem: reprodução da internet

Além disso, esclareceu-se que há, no Tibete, uma brincadeira lúdica que os idosos costumam fazer com crianças. A frase “che la sa”, que poderia ser traduzida como “coma minha língua”, funciona como um ensinamento às crianças, para que entendam que não há mais o que se possa fazer em uma situação. A diferença da frase tradicional para a frase proferida por Dalai Lama seria justificada pela barreira linguística, já que o religioso não possui completo domínio do idioma inglês.

O grupo de advocacy e pesquisa política “Tibet Rights Collective” (Coletivo Direitos do Tibete) se manifestou relatando nuances desse tipo de comportamento, afirmando haver até mesmo a prática de dar pequenos doces às crianças diretamente da boca do adulto, de boca para boca.

Imagem: reprodução do Twitter

Pedido de desculpas

Graças à repercussão do episódio, porém, houve um pedido oficial de desculpas por parte de Dalai Lama. Em seu site oficial, é possível encontrar uma declaração em que o monge pede desculpas ao garoto e sua família, bem como a todos os amigos ao redor do mundo pela dor que possa ter causado.

No comunicado, apesar das desculpas, há um esclarecimento de que Dalai Lama frequentemente provoca as pessoas que encontra, sempre de um jeito inocente e divertido, mesmo que em público e diante de câmeras, ressaltando o caráter corriqueiro das ações.

Não é a primeira vez que a liderança vai a público pedir desculpas por ações ou comentários. No passado, afirmações polêmicas levaram-no a se retratar, como quando afirmou que, caso o próximo Dalai Lama seja uma mulher, seria necessário que fosse uma mulher “ mais atraente”. Na retratação, também afirmou que era uma brincadeira.

Uma conhecida polêmica sobre o que o líder teria dito sobre refugiados que buscam um novo lar na Europa também gerou grande repercussão. Na ocasião, o posicionamento oficial foi esclarecer que a frase fora tirada de contexto, publicando a íntegra da fala.

Outros momentos constrangedores costumam repercutir na internet. Um vídeo de um encontro com a cantora Lady Gaga, voltou a circular nas últimas semanas, na esteira das reações negativas ao comportamento do monge budista. Nele, Dalai Lama leva as mãos às pernas da cantora, que se mostra desconfortável com o gesto.

Imagem mundial do Nobel da Paz e contexto histórico do Tibet 

O 14º Dalai Lama é uma figura amplamente conhecida no Ocidente. Sua história já foi contada em livros e filmes e o próprio Dalai Lama foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz de 1989. Sendo o líder político e religioso que é, sua imagem está ligada também a conflitos e interesses políticos.

Por ser o mais importante líder do Tibete, região com grande relevância estratégica para a China graças a sua altitude e bacias hidrográficas, sua figura é bastante explorada pelos países ocidentais, que buscam evidenciar suas características positivas, seus ensinamentos humanísticos e sua vocação para a paz.

Além de ser um líder religioso considerado santo no Tibete, o Dalai Lama seria também um chefe de Estado. A região, hoje pertencente à China, já foi independente e é cercada de controvérsias históricas em relação a seu status político.

Ocidente x Oriente

Em 1959, um levante local contra o controle pela jovem República Popular da China levou o governo tibetano a se exilar em território indiano. Desde então, a Administração Central Tibetana, liderada por Dalai Lama, sediou-se na Índia, onde ainda hoje está instalada, na cidade de Dharamsala.

Os países ocidentais tentam explorar a ruptura política para alimentar a rivalidade com a China, uma vez que o país é considerado o grande antagonista do mundo ocidental capitalista na atualidade. Existem movimentos a favor da independência do Tibete, apesar de o próprio Dalai Lama já ter afirmado que a região pertence à China.

Porém, a disputa política que instrumentaliza a autoridade e o respeito inspirados pela liderança de Dalai Lama tem também sua contraparte. No recente caso envolvendo o vídeo com o garoto, muitos defensores do monge afirmaram haver em curso uma campanha oficial chinesa para arranhar a credibilidade do líder tibetano. Há relatos de que a China gostaria de influenciar a escolha do próximo Dalai Lama, buscando garantir que não surjam novos movimentos separatistas na região.

Imagem: reprodução do Twitter

Acusações à China e relativismo cultural

Numa conferência de imprensa realizada em Delhi, Penpa Tsering, atual líder político do governo tibetano exilado, defendeu que as investigações lideradas por si demonstram que muitas “fontes pró-China” estão envolvidas na divulgação do vídeo e que “o ângulo político deste incidente não pode ser ignorado”.

Não é possível apontar quem editou parte do vídeo e compartilhou nas mídias sociais pela primeira vez, mas a repercussão só aconteceu no início do mês de abril. Isto mostra que a cerimônia e as atitudes do líder religioso em público não são uma questão para a comunidade onde elas ocorreram. É preciso considerar que o recorte que se espalhou pelas redes digitais carrega a intencionalidade de trazer escândalo sobre algo que aparentemente é comum em outra cultura e incomum na cultura ocidental.

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Bereia considera enganoso o conteúdo checado. O vídeo que gerou reação negativa foi cortado e os títulos e imagens que ganharam repercussão não correspondem ao que é exposto na íntegra, instigando julgamentos negativos de uma pessoa. O conteúdo necessita de substância e contextualização para ser corretamente compreendido. A rapidez com que o caso ganhou as redes no Ocidente demonstra que houve pouca ou nenhuma preocupação em avaliar o contexto e as tradições locais. Como tem sido frequente nas mídias sociais, temas que envolvem abuso de crianças e religião geram grande repercussão e alimentam discursos de ódio, mesmo sem maiores informações disponíveis.

A defesa do comportamento de Dalai Lama parece ser coerente com a realidade local e estar de acordo com as tradições de um povo milenar, por mais que pareçam em desacordo com as práticas ocidentais. Apesar disso, mesmo reconhecendo a diferença cultural, é possível que muitos interlocutores discordem da atitude do monge.

Predominantemente, no entanto, as reações apontavam se tratar de um caso de abuso infantil, o que não parece se sustentar. Não se pode descartar no ocorrido, que houve um pedido de desculpas do Dalai Lama ao menino e sua família, pois o caso, ainda que não tenha sido intencional, afetou não apenas a imagem e a reputação do líder religioso, mas também estas pessoas comuns, que tiveram suas vidas expostas, especialmente a criança.

Bereia alerta para a necessidade de que leitores e usuários de redes digitais tentem se informar e compreender o contexto dos vídeos apresentados em partes e não na totalidade, antes de disseminar discursos incompletos que podem alimentar um comportamento reativo e generalista sobre assuntos complexos e que precisam ser cuidadosamente analisados antes de conclusões definitivas.

Referências de checagem:

DW. https://www.dw.com/pt-br/quem-%C3%A9-o-dalai-lama/a-65291824 Acesso em: 20 abr 2023

UOL. https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2023/04/10/dalai-lama-pede-beijo-na-lingua-a-menino-e-se-desculpa-apos-video-viralizar.htm Acesso em: 20 abr 2023

NPR. https://www.npr.org/2023/04/10/1168962589/dalai-lama-apologizes-tongue-kiss Acesso em: 20 abr 2023

Washington Post. https://www.washingtonpost.com/world/2023/04/10/dalai-lama-kiss-boy-video/a785d61e-d78a-11ed-aebd-3fd2ac4c460a_story.html Acesso em: 20 abr 2023

Dalai Lama. https://www.dalailama.com/news/2023/statement-by-his-holiness-the-dalai-lama Acesso em: 20 abr 2023

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/dalai-lama-foi-rotulado/ Acesso em: 20 abr 2023

Times of India. https://timesofindia.indiatimes.com/city/goa/china-trying-to-malign-dalai-lama/articleshow/99567089.cms Acesso em: 20 abr 2023

Center for Strategic & International Studies. https://www.csis.org/analysis/game-winning-piece-dalai-lama-and-geopolitics-tibet Acesso em: 20 abr 2023

BBC.

https://www.bbc.com/news/world-asia-india-65272213?xtor=AL-72-%5Bpartner%5D-%5Bbbc.news.twitter%5D-%5Bheadline%5D-%5Bnews%5D-%5Bbizdev%5D-%5Bisapi%5D&at_campaign_type=owned&at_link_type=web_link&at_link_origin=BBCWorld&at_ptr_name=twitter&at_bbc_team=editorial&at_format=link&at_link_id=B56C9FD0-DA80-11ED-A1FC-9EB34744363C&at_campaign=Social_Flow&at_medium=social Acesso em: 20 abr 2023

https://www.bbc.com/news/world-asia-pacific-16689779 Acesso em: 20 abr 2023

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1y4ppj9dno Acesso em: 20 abr 2023

G1. https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2023/04/12/dalai-lama-como-o-beijo-na-boca-de-menino-pode-afetar-a-escolha-de-seu-sucessor-e-o-conflito-com-a-china.ghtml Acesso em: 20 abr 2023

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/igor-patrick/2023/04/video-do-dalai-lama-com-crianca-serve-de-motivo-para-discutir-sua-sucessao.shtml Acesso em: 20 abr 2023

O Globo. https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/dalai-lama-ganha-nobel-da-paz-pela-defesa-da-liberdade-do-povo-tibetano-9988632 Acesso em: 20 abr 2023

Congressional-Executive Comission of China. https://www.cecc.gov/publications/commission-analysis/dalai-lama-tibet-is-a-part-of-the-peoples-republic-of-china Acesso em: 20 abr 2023

Tibet Rights Collective. https://www.tibetrightscollective.in/news/tibetans-respond-to-misinterpreted-video-of-his-holiness-the-dalai-lama- Acesso em: 20 abr 2023

Olhar Budista. https://olharbudista.com/2023/04/14/a-polemica-com-o-dalai-lama-um-beijo-perturbador-ou-um-mal-entendido/ Acesso em: 20 abr 2023

Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=bT0qey5Ts78&t=916s&ab_channel=Jigme Acesso em: 20 abr 2023

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Foto de capa: Webted / Flickr

Influencer católico desinforma a respeito do caso da menina de 11 anos

Entre os dias 22 e 24 de junho, o influenciador digital católico e editor de opinião do site Brasil Sem Medo (BSM) Bernardo P. Küster fez diversas publicações em sua página no Twitter com críticas à abordagem do caso da criança violentada e impedida de realizar o procedimento de interrupção da gestação. 

Imagem: reprodução do Twitter

Bernardo Kuster foi citado na CPI da Pandemia como um dos influenciadores digitais de perfil religioso que atuaram na propagação de notícias falsas e desinformação a respeito do tema

O influenciador católico é um conhecido propagador de fake news e suas declarações foram checadas pelo Coletivo Bereia em diversas oportunidades. Kuster desinforma e distorce informações em diversos temas, como: a conduta do Governo Federal em relação à pandemia da Covid-19,  vacinação, teorias da conspiração relacionando “esquerda” e pedofilia e até um suposto atentado contra Donald Trump. 

Bereia checou as informações e mais uma vez, Bernardo Kuster desinforma e manipula informações. 

Imagem: reprodução do Twitter

Kuster afirma que “norma técnica do Ministério da Saúde diz que não se pode abortar com 22 semanas de gestação”. O influenciador não apresenta a norma técnica mencionada, mas aparentemente menciona a cartilha “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos casos de Abortamento”, produzida pelo Ministério da Saúde

A cartilha preconiza que “sob o ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização de aborto com excludente de ilicitude em gestações que ultrapassem 21 semanas e 6 dias”. 

No entanto, Kuster omite que norma não tem força de lei e que a legislação brasileira permite o aborto em casos de estupro e não determina limite de tempo ou necessidade de autorização. Além disso, não menciona que a cartilha foi repudiada pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – Febrasgo, por meio de nota oficial. 

De acordo com o Código Penal:

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:  

        Aborto necessário

        I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

        Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

        II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Kuster afirma, ainda, que a gestação estaria com 29 semanas, entretanto, mais uma vez omite a informação de que a criança foi impedida anteriormente de realizar a interrupção da gestação pelo hospital e por uma juíza que emperrou o processo que estava em curso, seguindo os trâmites legais. 

Por fim, ao afirmar que não houve estupro, o influencer católico desinforma mais uma vez. Em entrevista a reportagem televisiva sobre o tema, o delegado responsável pelo caso, Alison Rocha, da delegacia de Tijucas (SC), já investigava um suspeito de 13 anos que teria estuprado a menina, na época com 10 anos de idade. De acordo com o delegado,  “uma relação sexual com menor de 14 anos é estupro de vulnerável mesmo que o ato seja consensual e sem emprego de violência é considerado crime”.  

Durante a reportagem sobre o caso, a Defensora Pública do Estado de São Paulo e professora de Direito Constitucional da PUC-SP Mônica Melo, explicou que o “caso de Santa Catarina, a menina que engravidou é a única vítima, uma vez que como o menino apontado como autor tem mais de 12 anos, ele deve responder por ato infracional análogo à estupro de vulnerável. Nesse caso, o adolescente está sujeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, não sendo enquadrado ao Código Penal, pois são medidas que variam conforme as circunstâncias, a gravidade e o histórico desse adolescente. Essas medidas podem variar desde uma medida mais grave que seria uma medida de internação até uma punição mais branda, que pode ser uma advertência, uma medida de comprimento em meio aberto como prestação de serviços, entre outras. É assim, uma responsabilização dentro de um outro sistema que opera para proteger a criança”.

Como grupos religiosos por direitos de mulheres tratam o tema

Bereia conversou com a Mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP Tabata Tesser, integrante de Católicas pelo Direito de Decidir, uma organização de cunho internacional que se articula em 12 países pelo mundo. Formada por mulheres católicas, a organização propõe um questionamento sobre determinadas leis eclesiásticas da instituição, em especial aquelas relacionadas ao aborto, direitos reprodutivos e à autonomia das mulheres sobre o próprio corpo.

Segundo Tabata Tesser:

“A publicação do influencer católico Bernardo Kuster é considerada enganosa. É considerado estupro de vulnerável, ainda que o ato sexual tenha sido cometido por uma criança 13 com outra criança de 11 anos. Pelo fato do menino que cometeu a violência ter menos de 18 anos, ele se torna inimputável; porém, continua caracterizado enquanto estupro de vulnerável. Outra informação enganosa da publicação é a de que ‘não existe base legal para a realização de aborto no Brasil’. Trata-se de uma afirmação farsante, já que o Código Penal Brasileiro prevê o aborto em três casos: 1) quando há risco de vida para a pessoa gestante causado pela gravidez, 2) quando a gestação é fruto de um estupro e 3) se o feto for anencefálico (má formação cerebral do feto). A menina de 11 anos, vítima de estupro de vulnerável, se enquadra no permissivo, pois toda gravidez de criança é decorrente de estupro. A menina violada pode (e teve) acesso ao aborto legal, já que o seu corpo biológico não estava preparado para uma gestação segura. Levar adiante a gestação colocaria em risco a vida da criança estuprada e teríamos mais um índice de mortalidade infantil. Crianças não são mães”.

Bereia também entrevistou a ativista e pesquisadora do tema da “justiça reprodutiva”  na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) Mônica Louza, integrante da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. A pesquisadora diz que “o caso da menina de 11 anos vítima de estupro é mais um que desvela a triste realidade de muitas meninas brasileiras. Trago dois documentos para nos ajudar a pensar sobre o caso. De acordo com o ECA, artigo 2, considera-se criança aquelas com até 12 anos incompletos e adolescentes de 12 a 18 anos.  Além disso, de acordo com o Código Penal, artigo 217a, o estupro de vulnerável é configurado como prática libidinosa com menor de 14 anos. Em ambos os casos, a menina de 11 anos se enquadra, ou seja, ela é criança e vítima de estupro. Crianças não possuem formação corporal para serem mães nem são capazes de consentir com uma relação sexual”. 

De acordo com Mônica,

“soma-se às informações do caso a suspeita de que o autor do estupro é um adolescente de 13 anos, o que, segundo o ECA, se a suspeita for confirmada ele pode ser considerado autor de ato infracional não sendo inimputável. Entretanto, nesse caso, uma entre tantas outras coisas que mais me saltaram aos olhos é a voracidade que aqueles contrários ao abortamento em qualquer circunstância se utilizam da suspeita de que o autor seja adolescente em detrimento da criança que não tem condições de consentir com a relação sexual, isto é, ela continua sendo vítima de estupro e tendo direito ao aborto.  Isto me faz pensar o quanto é importante que crianças e adolescentes tenham acesso à educação sexual! Como diz um importante lema feminista: “Educação sexual para prevenir, contraceptivo para não engravidar e aborto legal e seguro para não morrer!”. Assim, a partir da investigação, caso o adolescente seja o autor, deveria ser pensado cuidadosamente os próximos passos já que também precisa estar sob uma rede de proteção social tendo a garantia de acompanhamentos médicos, psicológicos, das suas condições de vida, entre outros”.

A Frente Evangélica pela Legalização do Aborto compreende a criminalização do aborto como um atentado aos direitos humanos, que, além de não dar conta de impedir que os abortos sejam realizados, impõe ainda, sobre as mulheres, dor, violência e morte.

Como mulheres cristãs, o grupo que compõe a frente acredita na sacralidade da vida, e, por isso, luta por uma política pública de redução de danos, que repense o modelo punitivo de sociedade, garantindo às mulheres direitos, e não encarceramento. Em 2019, o SUS registrou, por dia, uma média de 5 internações de crianças de 10 a 14 anos por aborto (tantos os abortos previstos em lei quanto os espontâneos). Em um mês, são 150 crianças internadas por aborto – número suficiente para encher cinco ônibus escolares pequenos. Estima-se que, no Brasil, uma gravidez é interrompida voluntariamente por minuto, e que o aborto clandestino é a quinta maior causa de mortalidade materna no país.

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Bereia conclui que as publicações do influencer católico Bernardo Kuster são enganosas. O influencer conservador, além de expor mais uma vez o caso da criança violentada, desinforma, omite e deturpa informações. Não apresenta fontes e ignora as estatísticas de morte por abortos clandestinos e o número de crianças internadas oficialmente a cada ano para realizar este procedimento.

Procura, desta maneira, com sua retórica político-religiosa, mobilizar a audiência que se coloca contra a temática do aborto como direito, presente especialmente em espaços religiosos,   para criar uma onda de desinformação num caso de relevância nacional.  

Bereia reafirma o direito de expressão de grupos religiosos que, em sua doutrina, orientam contra a prática do aborto, porém, defende que este processo deve se dar por meio de informação coerente e digna e não com recurso ao enganoso que desinforma, cria pânico e reforça o ódio contra mulheres que querem fazer seus direitos e contra seus apoiadores.. 

Referências de checagem:

The Intercept Brasil. https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/ Acesso em: 21 jun 2022. 

Coletivo Bereia.

https://coletivobereia.com.br/relatorio-da-cpi-da-pandemia-aponta-autoridades-e-influenciadores-de-perfil-religioso-na-rede-de-desinformacao/ Acesso em: 21 jun 2022.

https://coletivobereia.com.br/influenciador-catolico-desinforma-em-entrevista-para-jornal/ Acesso em: 21 jun 2022.

https://coletivobereia.com.br/youtuber-catolico-omite-informacoes-sobre-vacina-contra-a-covid-19-para-propagar-medo-de-efeitos/ Acesso em: 21 jun 2022. 

https://coletivobereia.com.br/grupos-evangelicos-e-olavistas-ajudaram-a-espalhar-fake-news-de-bolsonaro-sobre-esquerda-e-pedofilia/ Acesso em: 21 jun 2022.  

https://coletivobereia.com.br/donald-trump-nao-foi-vitima-de-envenenamento/  Acesso em: 21 jun 2022.  

Código Penal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em: 21 jun 2022.

Ministério da Saúde: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_prevencao_avaliacao_conduta_abortamento_1edrev.pdf Acesso em: 21 jun 2022.

Febrasgo. http://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1466-nota-sobre-o-documento-atencao-tecnica-para-prevencao-avaliacao-e-conduta-nos-casos-de-abortamento-ministerio-da-saude-2022 Acesso em: 21 jun 2022. 

Fantástico. https://globoplay.globo.com/v/10704503/?s=0s Acesso em: 27 jun 2022. 

Católicas pelo Direito de Decidir. https://catolicas.org.br/ Acesso em: 27 jun 2022.  

Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. https://www.facebook.com/frenteevangelicapelalegalizacaodoaborto/ Acesso em: 27 jun 2022.  

Piauí. https://piaui.folha.uol.com.br/os-abortos-diarios-do-brasil/ Acesso em: 27 jun 2022. 

EBC. https://memoria.ebc.com.br/noticias/saude/2015/05/aborto-clandestino-e-quinta-maior-causa-da-mortalidade-das-maes Acesso em 2Acesso em: 27 jun 2022.  

Foto de capa: frame do YouTube

Deputado Federal da Bancada Evangélica defende trabalho infantil após vitória olímpica

Ao comemorar a vitória olímpica da skatista maranhense Rayssa Leal, 13 anos, durante a madrugada de 26 de julho, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) publicou um posicionamento em defesa do trabalho infantil.

As crianças brasileiras de 13 anos não podem trabalhar, mas a skatista Rayssa Leal ganhou a medalha de prata na Olimpíadas… Ué! É pra pensar… Parabéns a nossa medalhista olímpica! E revisão do Estatuto da Criança e Adolescente já!”, declarou em sua mídia social, momentos após a conquista de Rayssa. 

E, na tarde do mesmo dia citou um artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade.” 

Eu defendo a revisão deste artigo no Estatuto da Criança e Adolescente, se atentem para a palavra QUALQUER no texto da lei.

Reprodução do Twitter

Créditos: Reprodução/ Wander Roberto /COB

Rayssa, mais conhecida como Fadinha, conquistou a medalha de prata na modalidade skate street nas Olimpíadas de Verão de Tóquio 2020. O feito aconcedeu o posto de medalhista mais jovem do Brasil durante suas participações nos Jogos Olímpicos.

Reprodução do Twitter

Sóstenes Silva Cavalcante é filiado ao Partido Democratas (DEM) e atualmente está em seu segundo mandato como deputado federal, reeleito pelo estado do Rio de Janeiro para 2019-2023. Além de teólogo e especialista em Gestão Pública, o deputado é pastor da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, presidida pelo pastor Silas Malafaia, seu maior apoiador. Cavalcante é vice-presidente da Frente Parlamentar Evangélica.

O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil chegou a 160 milhões em todo o mundo – um aumento de 8.4 milhões de meninas e meninos nos últimos quatro anos, de 2016 a 2020, de acordo com o mais recente relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).  Além destas crianças, outras 8,9 milhões correm o risco de ingressar nessa situação até 2022 devido aos impactos da Covid-19.

O trabalho infantil é condenado no Brasil e internacionalmente por conta das consequências físicas, econômica e psicológicas que afetam crianças. Elas estão altamente expostos a situações de risco, acidentes e problemas de saúde relacionados ao trabalho. O cansaço, distúrbios de sono, irritabilidade, alergia e problemas respiratórios prejudicam o crescimento e causam deformidades. 

Trabalho infantil

Do ponto de vista psicológico os prejuízos estão em assumir responsabilidades para além da idade adequada, o que se somam a muitos abusos cometidos com os crimes de tráfico e exploração sexual. O trabalho também afeta a capacidade da criança para frequentar a escola e aprender, tirando dela a oportunidade de realizar plenamente seus direitos à educação, lazer e desenvolvimento. Estudos comprovam que uma vida saudável ajuda na transição para a fase adulta bem-sucedida, com trabalho digno, após a conclusão da escolaridade.

O que diz a legislação

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, reconhece os direitos das crianças dentro do princípio da proteção integral:

Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Constituição ainda proíbe o trabalho de pessoas menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

O artigo 403 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) , por sua vez, estabelece também a idade mínima para o trabalho aos 16 anos.

Além desta legislação a vedação ao trabalho infantil é reafirmada no Estatuto da Criança e do Adolescente, um conjunto de dispositivos que regula os direitos de crianças e de adolescente brasileiros, instituído em 13 de julho de 1990. No Capítulo V: Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho, Artigo 60 e 68:

Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. 

Art. 68. O programa social que tenha por base o trabalho educativo, sob responsabilidade de entidade governamental ou não-governamental sem fins lucrativos, deverá assegurar ao adolescente que dele participe condições de capacitação para o exercício de atividade regular remunerada. 

§ 1º Entende-se por trabalho educativo a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo. 

A afirmação do deputado Sóstenes Cavalcante 

Segundo Ariel Alves, jurista da OAB-SP, seção de Direitos Humanos, especializado em direito de crianças e adolescentes, a visão do deputado é totalmente distorcida ao fazer uma comparação  esdrúxula e inoportuna. “Praticar esportes e ser vítima de exploração do trabalho infantil são situações totalmente diferentes. A criança não é forçada a praticar esportes. Ela pratica por vontade e pelo prazer de praticar esportes. Na exploração do trabalho infantil não existe vontade e prazer, e sim a necessidade imposta pelas condições sociais e econômicas da família na qual a criança está inserida.” 

Alves reforça que o trabalho infantil é proibido para todas as crianças e adolescentes com menos de 16 anos, exceto como menores aprendizes, a partir dos 14 anos.

“Muitas vezes o trabalho infantil, além de prejudicar o desenvolvimento saudável, o lazer e os estudos das crianças,  acaba sendo porta de entrada para a exploração sexual, o consumo e tráfico de drogas e a criminalidade juvenil, principalmente quando o trabalho ocorre nas ruas ou durante as noites. Bem diferente das práticas esportivas, que costumam ser portas de entrada para o desenvolvimento físico e psicológico saudável e para a inclusão social”, conclui.

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Com base na apuração, Bereia conclui que o conteúdo publicado pelo deputado Sóstenes Cavalcante em suas mídias sociais é enganoso. O deputado é contra a legislação brasileira que defende a formação saudável de crianças até 14 anos, livres da exploração do trabalho, e para defender sua posição, expõe para seus seguidores uma equivalência enganosa que coloca a prática esportiva e o trabalho como iguais, usando a medalha olímpica obtida por Rayssa Leal, de 13 anos, como argumento. A participação de crianças em competições oficiais é feita mediante concessões e autorizações dos pais e não se enquadra como trabalho, visto que não existe o cumprimento de carga horária. Estas práticas seguem protocolos específicos como os que existem para atividades remuneradas permitidas por lei como o de Menor Aprendiz.

Referências de checagem 

Artigo 60 da Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990 https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10610536/artigo-60-da-lei-n-8069-de-13-de-julho-de-1990 Acesso em: [27 Jul 2021]

Unicef. https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/trabalho-infantil-aumenta-pela-primeira-vez-em-duas-decadas-e-atinge-um-total-de-160-milhoes-de-criancas-e-adolescentes-no-mundo Acesso em: [28 Jul 2021]

Consequências do trabalho infantil.  https://livredetrabalhoinfantil.org.br/trabalho-infantil/consequencias/  Acesso em: [28 Jul 2021]

Cidade e Escola Aprendiz

https://www.cidadeescolaaprendiz.org.br/o-ministerio-da-saude-nas-acoes-de-prevencao-erradicacao-trabalho-infantil/ Acesso em: [27 jul 2021]

Constituição Federal.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: [31 jul 2021]

Consolidação das Leis do Trabalho. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452compilado.htm Acesso em: [31 jul 2021]

Estatuto da Criança e do Adolescente. https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/crianca-e-adolescente/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf Acesso em: [31 jul 2021]

O Natal de Jesus e o nosso Natal sob o Covid-19

O Natal do ano 2020 seja talvez o mais próximo do verdadeiro Natal de Jesus sob o imperador romano César Augusto.

Este imperador ordenara um recenseamento de todo o império. A intenção não era apenas como entre nós, de levantar quantos habitantes havia. Era isso, mas o propósito era cobrar de cada habitante um imposto, cuja soma com aquele de todas as províncias se destinava a manter a pira de fogo permanentemente acesa e sustentar os sacrifícios de animais ao imperador que se apresentava e assim era venerado como deus. Tal imposição a todos do Império provocou revoltas entre os judeus.

Esse fato, mais tarde, foi usado pelos fariseus como uma armadilha a Jesus: devia pagar ou não o imposto a César? Não se tratava do imposto comum, mas aquele que cada pessoa do império devia pagar para alimentar os sacrifícios ao imperador-deus.

Para os judeus significava um escândalo pois adoravam um único Deus, Javé, como poderiam pagar um imposto para venerar um falso deus, o imperador de Roma? Jesus logo entendeu a cilada. Se aceitasse pagar o imposto seria cúmplice da adoração a um deus humano e falso, o imperador. Se o negasse se indisporia com as autoridades imperiais negando-se a pagar o tributo em homenagem ao imperador-deus.

Jesus deu uma resposta sábia: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E outras palavras, dai a César, um homem mortal e falso deus o que é de César: o imposto para os sacrifícios e a Deus, o único verdadeiro, o que é de Deus: a adoração. Não se trata da separação entre a Igreja e o Estado como comumente se interpreta. A questão é outra: qual é o verdadeiro Deus, aquele falso de Roma ou aquele verdadeiro de Jerusalém? Jesus, no fundo, responde: só há um Deus verdadeiro e deem a ele o que lhe cabe, a adoração. Dai a Cesar, o falso deus, o que é de César: a moeda do imposto. Não misturem deus com Deus.

Mas votemos ao tema: o Natal de 2020, como nunca na história, se assemelha ao Natal de Jesus. A família de José e de Maria grávida são filhos da pobreza como a maioria de nosso povo. As hospedarias estavam cheias, como aqui os hospitais estão cheios de contaminados pelo vírus. Como pobres, Jesus e Maria, talvez nem pudessem pagar as despesas como, entre nós, quem não é atendido pelo SUS não tem como bancar os custos de um hospital particular. Maria estava na iminência de dar à luz. Sobrou ao casal, refugiar-se numa estrebaria de animais. Semelhantemente como fazem tantos pobres que não têm onde dormir e o fazem sob as marquises ou, num canto qualquer da cidade. Jesus nasceu fora da comunidade humana, entre animais, como tantos de nossos irmãos e irmãs menores nascem nas periferias das cidades, fora dos hospitais e em suas pobres casas.

Logo depois de seu nascimento, o Menino já foi ameaçado de morte. Um genocida, o rei Herodes, mandou matar a todos os meninos abaixo de dois anos. Quantas crianças, no nosso contexto, são mortas pelos novos Herodes vestidos de policiais que matam crianças sentadas na porta da casa? O choro das mães são eco do choro de Raquel, num dos textos mais comovedores de todas as Escrituras: “Na Baixada (em Ramá) se ouviu uma voz, muito choro e gemido: a mãe chora os filhos mortos e não quer ser consolada porque ela os perdeu para sempre” (cf.Mt 2,18).

De temor de ser descoberto e morto, José tomou Maria e o menino Jesus atravessam o deserto e se refugiram no Egito. Quantos hoje sob ameaça de morte pelas guerras e pela fome, tentam entrar na Europa e nos USA. Muitos morrem afogados, a maioria é rejeitada, como na catolicíssima Polônia e vem discriminada; até crianças são arrancadas dos pais e engaioladas como pequenos animais. Quem lhes enxugará as lágrimas? Quem lhes mata a saudade dos pais queridos? Nossa cultura se mostra cruel contra os inocente e contra os imigrantes forçados.

Depois que morreu o genocida Herodes, José tomou Maria e o Menino e foram esconder-se num lugarejo tão insignificante, Nazaré, que sequer consta na Bíblia. Lá o Menino “crescia e se fortalecia cheio de sabedoria” (Lc 2,40). Aprendeu a profissão do pai José, um fac-totum, construtor de telhados e coisas da casa, um carpinteiro. Era também um camponês que trabalhava o campo e aprendia a observar a natureza. Ficou lá escondido até completar 30 anos, foi quando sentiu o impulso de sair de casa e começar a pregação de uma revolução absoluta: “O tempo da espera expirou. A grande reviravolta está chegando (Reino). Mudem de vida e acreditem nessa boa notícia” (cf. Mc 1,14): uma transformação total de todas as relações entre os humanos e na própria natureza.

Conhecemos seu fim trágico. Passou pelo mundo fazendo o bem (Mc 7:37; Atos 10:39), curando uns, devolvendo os olhos a cegos, matando a fome de multidões e sempre se compadecendo do povo pobre e sem rumo na vida. Os religiosos articulados com os políticos o prenderam, torturaram e o assassinaram pela crucificação.

Saiamos destas “sombras densas” como diz o Papa Francisco na Fratelli tutti. Voltemos o olhar desanuviado para o Natal de Jesus. Ele nos mostra a forma como Deus quis entrar na nossa história: anônimo e escondido. A presença de Jesus não apareceu na crônica nem de Jerusalém e muito menos de Roma. Devemos aceitar esta forma escolhida por Deus.  Realizou-se a lógica inversa da nossa: “toda criança quer ser homem; todo homem quer ser grande; todo grande quer ser rei. Só Deus quis ser criança”. E assim aconteceu.

Aqui ecoam os belos versos do poeta português Fernando Pessoa:

“Ele é a Eterna Criança, o Deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
É a criança tão humana que é divina”.

Fernando Pessoa

Tais pensamentos me trazem à memória uma pessoa de excepcional qualidade espiritual. Foi ateu, marxista, da Legião Estrangeira. De repente sentiu uma comoção profunda e se converteu. Escolheu o caminho de Jesus, no meio dos pobres. Fez-se Irmãozinho de Jesus. Chegou a uma profunda intimidade com Deus, chamando-o sempre de “o Amigo”. Vivia a fé no código da encarnação e dizia: “Se Deus se fez gente em Jesus, gente como nós, então fazia xixi, choramingava pedindo o peito, fazia biquinho por causa da fralda molhada”. No começo teria gostado mais de Maria e mais grandinho mais de José, coisa que os psicólogos explicam no processo da realização humana.

Foi crescendo como nossas crianças, observava as formigas, jogava pedras nos burros e, maroto, levantava o vestidinho das meninas para vê-las furiosas, como imaginou irreverentemente Fernando Pessoa em seu belo poema sobre o Jesus menino.

Esse homem, amigo do Amigo, “imaginava Maria ninando Jesus, fazê-lo dormir porque de tanto brincar lá fora, ficava muito excitado e lhe custava fechar os olhos; lavava no tanque as fraldinhas; cozinhava o mingau para o Menino e comidas mais fortes para o trabalhador o bom José”.

Esse homem espiritual italiano que viveu, muitas vezes ameaçado de morte, em tantos países da América Latina e vários no Brasil, Arturo Paoli, se alegrava interiormente com tais matutações, porque as sentia e vivia na forma de comoção do coração, de pura espiritualidade. E chorava com frequência de alegria interior. Era amigo do Papa que o mandou buscar de carro na cidadezinha uns 70 km de Roma para passarem toda um tarde e falarem da libertação dos pobres e da misericórdia divina. Morreu com 103 anos como um sábio e santo.

Não esqueçamos a mensagem maior do Natal: Deus está entre nós, assumindo a nossa condition humaine, alegre e triste. É uma criança que nos vai julgar e não um juiz severo. E esta criança só quer brincar conosco e nunca nos rejeitar. Finalmente, o sentido mais profundo do Natal é esse: a nossa humanidade, um dia assumida pelo Verbo da vida, pertence a Deus. E Deus, por piores que sejamos, sabe que viemos do pó e nos tem uma misericórdia infinita. Ele nunca pode perder, nem deixará que um filho seu ou filha sua se perderão. Assim, apesar do Covid-19 podemos viver uma discreta alegria na celebração familiar. Que o Natal nos dê um pouco de felicidade e nos mantenha na esperança do triunfo da vida sobre o Covid-19.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução