Balanço Janeiro 2024:  Padre Júlio Lancellotti é alvo de ataques nas mídias sociais

No início de janeiro, o vereador Rubinho Nunes (União-SP), oriundo da articulação de extrema-direita, Movimento Brasil Livre (MBL), reuniu apoio de seus pares na Câmara Municipal de São Paulo para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) a fim de investigar o trabalho de entidades que se dedicam ao trabalho comunitário em ajuda à população de rua e aos dependentes químicos.

Diante do cenário de mobilizações contra e a favor da “CPI das ONGs”, como ficou conhecida, veio à tona o nome e a atuação do padre Júlio Lancellotti, líder religioso conhecido pelo trabalho de assistência aos mais necessitados. O propositor da CPI, Rubinho Nunes, acusa o pároco de “explorar a miséria” e diz, em vídeo veiculado no TikTok, que irá fazer “um exame nas entranhas desse sujeito”. “Vou arrastar esse sujeito na coercitiva, nem que seja algemado”, diz.

O embate acalorado entre detratores e defensores da atuação do padre culminou na exposição de um vídeo, já utilizado em outras ocasiões, que,  supostamente, mostra Lancellotti em uma chamada de vídeo com um adolescente, com conteúdo sexual e atos libidinosos. O vídeo teria sido divulgado, inicialmente, por um perfil na rede social X (antigo Twitter). Após a repercussão negativa do caso e uma onda de apoio ao padre, dez vereadores retiraram assinaturas da proposta de CPI.

Imagem: reprodução GShow/AgNews

Repercussão e “guerra” de perícias

A repercussão do caso – da proposta de CPI à circulação do vídeo – gerou intensa mobilização nas mídias sociais. Em linhas gerais, houve uma reprodução do racha ideológico nas posições sobre a CPI e sobre o padre: perfis ligados à direita atacaram o suposto comportamento do religioso, acusando-o de pedofilia, enquanto perfis progressistas defendiam Lancellotti dos ataques.

A Revista Oeste, que em página institucional diz que “não pretende ser imparcial”, foi uma das principais divulgadoras das acusações contra o padre. A cobertura da revista deu voz à perícia contratada pelo vereador Rubinho Nunes (União-SP), segundo a qual o vídeo viral era verdadeiro.

Em contrapartida, o perito Mário Gazziro, da Universidade Federal do ABC (UFABC), produziu vídeo em que rebate as alegações periciais de Tirotti. Segundo Gazziro, que também produziu laudo técnico relativo ao caso, as técnicas utilizadas na análise de Tirotti seriam insuficientes para determinar a veracidade do conteúdo.

Diante da repercussão e do envolvimento de diversas figuras públicas no embate instaurado, a BBC News Brasil destacou o fator político-eleitoral do caso. Matéria intitulada “Como CPI contra padre Júlio Lancellotti dá a largada na disputa eleitoral em São Paulo” mostra que a repercussão do caso pode ter impactos na disputa para ocupar a Câmara dos Vereadores de São Paulo.

Perseguição antiga e pânico moral como estratégia política 

O jornalista Alexandre Putti afirmou, em seu perfil do X, ter tido acesso ao vídeo ainda em 2019, depois de tê-lo recebido como denúncia contra o padre Júlio Lancellotti. Putti relata que, à época, o vídeo foi submetido a uma avaliação técnica que o considerou falso. Análise na esfera judicial também teria chegado à mesma conclusão.

Reportagem da revista Piauí, publicada em 2022, apontou que em 2020, depois de receber denúncia do MBL, a polícia civil investigou suposto envolvimento de Júlio Lancellotti com um adolescente. O caso foi arquivado em 2021, porque o suposto adolescente, que teria trocado mensagens com o padre, nunca foi localizado.

O texto aponta ainda que, durante o ano eleitoral de 2020, o ex-deputado estadual ligado ao MBL –  que teve o mandato cassado em maio de 2022Arthur do Val afirmava que iria desmascarar Lancellotti, enquanto seu assessor parlamentar Guto Zacarias produzia provas falsas contra o padre. Zacarias, que é também é membro  do MBL , teria criado conta falsa no Facebook e se passado por Matheus Rocha Nunes, um personagem de 16 anos.

Segundo a reportagem, os detalhes do caso foram dados por dois ex-integrantes do MBL Um deles, Fernando Dainese, foi dirigente da campanha de Rubinho Nunes (que agora propõe investigações sobre Lancellotti) à Câmara dos Vereadores de São Paulo. Dainese afirma que Guto Zacarias realizou a operação dentro do escritório de advocacia de Rubinho Nunes e atribui a estratégia ao fundador do MBL, Renan Santos. 

Falsidades

A Agência Lupa identificou uma “corrente de informações falsas e descontextualizadas” que, sem provas, acusam o padre de pedofilia e abuso sexual. Segundo a Lupa, as acusações contra Júlio Lancellotti são “antigas e sem contexto” e não há comprovação para nenhuma das acusações contra o pároco.

O deputado federal de extrema-direita Gustavo Gayer (PL-GO), compartilhou em seu perfil no X, um vídeo em que reproduz acusações antigas e recentes contra padre, todas sem comprovação. Em tom crítico, Gayer afirma, sem provas, que Lancellotti “é chefe de muitas ONGs, movimentos sociais” e que “recebe dinheiro de muita gente”.

Imagem: reprodução X

O serviço de checagem da agência de notícias francesa AFP destacou que, durante a repercussão do caso, o vídeo, de 2020, de uma ligação do Papa Francisco a Júlio Lancellotti,estava sendo divulgado sem contexto, provocando uma falsa associação da ligação, que de fato ocorreu, ao caso recente.

***

Bereia considera falsas as acusações de pedofilia e assédio sexual atribuídas ao padre Júlio Lancellotti, em razão, não apenas da falta de provas críveis e verdadeiras, mas também do histórico de tentativas frustradas de utilização desse tipo de ataque em benefício eleitoral. 

A ampla divulgação do caso, com acusações sem provas, por veículos de mídia ditos conservadores, religiosos ou ligados à extrema-direita, assim como o resgate de casos no passado recente que revelam atuação coordenada para acusar o padre Júlio Lancellotti, demonstram o interesse político-eleitoral de alguns grupos no ataque à imagem e honra do pároco.

A intenção de divulgar imagens com conteúdo sexual vai na contramão do que dizem as diretrizes sobre compartilhamento de imagem nas mídias sociais e não é oficialmente uma denúncia, o que demonstra, indiretamente, a intenção de violar a imagem do padre, neste caso específico.

Bereia encoraja que o público busque informações comprovadas antes de compartilhar qualquer conteúdo nas mídias sociais. A divulgação de informações não verificadas pode resultar em falsa imputação de crime e não contribui para a construção de uma esfera pública construtiva e democrática.

Referências da checagem:

Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/07/5019936-julio-lancellotti-o-padre-que-da-esperanca-aos-sem-teto-em-sao-paulo.html Acesso em: 2 fev 2024

Agência Brasil. https://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil/2024/01/padre-lancellotti-dez-vereadores-retiram-apoio-cpi Acesso em: 1 fev 2024

AFP/UOL. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2022/06/29/julio-lancellotti-o-padre-antissistema-que-da-esperanca-aos-sem-teto-em-sao-paulo.htm Acesso em: 3 fev 2024

Agência Lupa. https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/01/12/fakes-contra-padre-julio-lancellotti-sao-baseadas-em-noticias-antigas-e-sem-provas Acesso em: 3 fev 2024

Piauí. https://piaui.folha.uol.com.br/armacao-do-mbl-contra-padre-julio-lancellotti/ Acesso em: 3 fev 2024

Poder 360. https://www.poder360.com.br/brasil/psol-quer-cassacao-de-vereador-que-pediu-cpi-para-padre-lancellotti/ Acesso em: 2 fev 2024

O Globo. https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/01/03/camara-de-sp-aprova-criacao-de-cpi-das-ongs-que-tem-padre-julio-lancellotti-como-alvo.ghtml Acesso em: 3 fev 2024

UOL. https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/padre-julio-lancelloti-a-lei-da-fraternidade-/#page1 Acesso em: 3 fev 2024

IHU/Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/635737-cpi-contra-padre-julio-faz-caridade-virar-crime-na-cidade-com-25-da-populacao-de-rua-do-pais Acesso em: 3 fev 2024

AFP Checamos. https://checamos.afp.com/doc.afp.com.349K8KB Acesso em: 3 fev 2023

Agência Brasil. https://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil/2024/01/padre-lancellotti-dez-vereadores-retiram-apoio-cpi Acesso em: 2 fev 2024
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-05/arthur-do-val-tem-mandato-cassado-e-fica-inelegivel-por-oito-anos Acesso em: 3 fev 2024

***

Foto de capa: Wikimedia Commons