Deputado Feliciano publica mensagem sobre suposta abolição das Forças Armadas, da família e da igreja no Chile

* Matéria atualizada às 11:50

O deputado federal Pastor Marco Feliciano (PL-SP) publicou em seu perfil no Twitter, em 4 de fevereiro passado, uma mensagem com discurso criando pânico em seus seguidores sobre o fim da família e da igreja com base na atual conjuntura política do Chile:

Por que o foco no Chile?

Em dezembro de 2021 foram realizadas eleições presidenciais no Chile que levaram à vitória, com 56% dos votos, Gabriel Boric, ex-líder estudantil, de 35 anos, por meio da frente ampla de esquerda Apruebo Dignidad. A eleição de Boric à Presidência da República foi a culminância de um processo iniciado em outubro de 2020, quando 78% dos chilenos foram às urnas para decidir que uma nova Constituição deveria ser elaborada por uma Assembleia Constituinte. 

O processo eleitoral para escolher os membros da Assembleia Constituinte realizou-se no Chile entre 15 e 16 de maio de 2021. O início dos trabalhos ocorreu ainda em 2021, durante o governo de centro-direita de Sebastian Pinera.O Chile havia sido palco de intensos protestos a partir de outubro de 2019, durante o governo Pinera. As manifestações começaram depois de uma alta na tarifa do metrô de Santiago, posteriormente revogada, mas que foi o estopim para reivindicações mais amplas, como a melhoria no acesso à saúde, e à educação,além de reformas no sistema previdenciário.

Segundo um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),, as famílias chilenas gastam em torno de 35,1% e a educação é praticamente dominada pelo setor privado que detém o maior número de matrículas e mesmo as universidades públicas cobram mensalidades. Já o sistema previdenciário é administrado por organizações privadas e penaliza os trabalhadores mais vulneráveis.

Durante os protestos de 2019, e após intensas negociações entre o governo e a oposição,  foi alcançado um acordo, aprovado pelo Congresso Nacional na forma do documento “Acordo pela Paz e uma Nova Constituição”

O documento estabeleceu o compromisso de restaurar a paz e a ordem pública no Chile e convocar um plebiscito para perguntar à população se o país deveria elaborar uma nova Constituição, para substituir a Carta da época da ditadura de Augusto Pinochet. No plebiscito, os eleitores responderiam se desejariam ou não uma nova Constituição e qual tipo de órgão deveria ficar responsável por redigi-la: uma comissão mista ou uma Assembleia Constituinte.

A comissão mista seria formada por parlamentares no cargo naquele momento e por pessoas eleitas para escrever a nova Carta. No modelo de Constituinte, todos os autores do documento seriam eleitos apenas para esse trabalho.

A eleição da Constituinte Chilena e início dos trabalhos

Os chilenos decidiram por uma nova Constituição e por uma Assembleia Constituinte. A votação que elegeu os membros constituintes, em maio de 2021, representou uma derrota para a coalizão de centro-direita que sustentava o então presidente Sebastián Piñera. Os representantes da direita governista ficaram com apenas 37 das 155 cadeiras (24%), enquanto a centro-esquerda obteve 53 assentos (34%), e os independentes, 65 (42%), dentre estes últimos estão representantes dos povos originários do Chile. A Constituinte chilena é presidida por uma líder indígena e tem quantidade igual de cadeiras para homens e mulheres. 

As propostas apresentadas precisam de dois terços para aprovação e inclusão na nova Constituição, e além disso, ao final da redação, a nova Carta Magna será apresentada à população e sua aprovação passará por votação popular. 

Sobre a abolição das Forças Armadas 

“Abolir” as forças armadas foi uma dentre milhares de propostas encaminhadas pela população à Assembleia Constituinte. A proposta foi feita por um cidadão chileno e não obteve sequer o mínimo de assinaturas necessárias para ser apreciada pela Constituinte: foram 461 apoios, longe dos 15 mil condicionados por lei.  Desta maneira, a proposta não foi apreciada ou discutida pela Constituinte. 

A Assembleia Constituinte Chilena está deliberando sobre 78 iniciativas populares aprovadas. Entre estas, apenas uma diz respeito às Forças Armadas mas não sobre sua extinção e sim sobre garantirem a democracia, a segurança nacional e a defesa da pátria. 

Sobre “acabar com a família e a igreja”

Entre as propostas em discussão na Assembleia Constituinte do Chile não há qualquer referência ao que o Pastor Marco Feliciano alardeia para seus seguidores sobre o fim da família e da igreja, uma vez que ele relacionou estes temas à extinção das Forças Armadas, o que é falso.

Os temas também não se referem à eleição do presidente Gabriel Boric, que não apresentou como plataforma de campanha qualquer projeto que embase a afirmação do deputado.

Conclusão

Bereia conclui que a postagem do deputado Marco Feliciano é falsa. Gabriel Boric conquistou a Presidência do Chile, em dezembro de 2021, assumirá o mandato em março de 2022 e não tem poderes sobre a Assembleia Constituinte. Ele  foi eleito como candidato de uma frente ampla que inclui socialistas e partidários de várias tendências de esquerda. No entanto, os trabalhos da Assembleia Constituinte são independentes, seus representantes foram eleitos pelo povo chileno em maio de 2021, sua composição é plural e qualquer cidadão pode propor mudanças, desde que apresentasse um número mínimo de assinaturas de apoio. Foram aprovadas, a partir dos critérios por lei, 78 propostas e nenhuma delas diz respeito à extinção das Forças Armadas.

Não existe menção a propostas desta natureza no programa de governo de Gabriel Boric, o que também não foi discutido pela coalização política do presidente eleito e. Da mesma forma o que diz respeito ao fim da família e da igreja.

A relação que o deputado Pastor Marco Feliciano estabelece entre a eleição de Gabriel Boric, a falsa afirmação de que constituintes do Chile querem abolir as Forças Armadas e a destruição da família e da igreja com uma possível eleição do ex-presidente Lula em 2022, está dentro da pauta desinformativa que o Coletivo Bereia tem coberto desde 2019. Uma análise sobre isto pode ser lida aqui

Foto de capa: Jose Pereira

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Referências de checagem: 

Twitter. https://twitter.com/convencioncl. Acesso em: 11 fev 2022.

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/11/em-resposta-a-protestos-chile-fara-plebiscito-sobre-nova-constituicao.shtml Acesso em: 11 fev 2022.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/07/chile-inicia-reformulacao-da-constituicao-em-meio-a-turbulento-ano-eleitoral.shtml Acesso em: 11 fev 2022.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/11/chile-confirma-inicio-de-processo-para-mudar-constituicao-e-acalmar-protestos.shtml Acesso em: 11 fev 2022.

Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución. https://obtienearchivo.bcn.cl/obtienearchivo?id=documentos/10221.1/76280/1/Acuerdo_por_la_Paz.pdf Acesso em: 11 fev 2022.

Assembleia Constituinte do Chile – Plataforma Digital de Participação Popular. https://plataforma.chileconvencion.cl/  Acesso em: 11 fev 2022.

https://perma.cc/L9PA-29FX. Acesso em: 11 fev 2022.

https://perma.cc/78GQ-KTU2. Acesso em: 11 fev 2022.

Congresso Nacional do Chile – Acordo pela Paz e uma Nova Constituição – https://obtienearchivo.bcn.cl/obtienearchivo?id=documentos/10221.1/76280/1/Acuerdo_por_la_Paz.pdf 

Outras Palavras. https://outraspalavras.net/outrasmidias/para-entender-os-porques-da-revolta-chilena/ Acesso em: 11 fev 2022.

BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59701412 Acesso em: 11 fev 2022.Bereia. https://coletivobereia.com.br/as-mentiras-que-circulam-em-ambientes-religiosos-no-brasil/ Acesso em: 11 fev 2022.

Mendonça, evangélicos e bolsonarismo

Na condição de evangélico e membro de uma igreja presbiteriana no Rio de Janeiro, venho a público manifestar meu mais profundo lamento pela aprovação de André Mendonça, pastor presbiteriano, para o STF. O Estado é laico. Evangélicos precisam confiar realmente em Deus, e não depender de acesso aos poderes do Estado, como boa parte de seus líderes vêm fazendo, sobretudo desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República. Mendonça foi aprovado pelo Senado para assumir uma vaga no STF, por 47 votos a 32.  É a segunda indicação de Bolsonaro para o STF, a única instituição do país que ainda consegue deter os desmandos do presidente da República.

Bolsonaro – que está mais para lobo em pele de cordeiro – nunca foi evangélico. Mas quando começou a pensar em ser presidente da República rapidamente se aproximou de líderes evangélicos oportunistas. Com a ajuda dessas figuras, Bolsonaro então montou seu marketing eleitoral pra cima dos evangélicos. Deixou-se fotografar sendo batizado nas águas do Rio Jordão, no mesmo local onde Jesus Cristo foi batizado. A foto rapidamente se espalhou pelos grupos de WhatsApp do segmento evangélico. Além disso, o presidente – que tinha seu nicho político-eleitoral entre as “viúvas” do golpe civil-militar de 1964 e pensionistas de militares – acabou ganhando terreno entre os evangélicos por apresentar uma narrativa baseada nos costumes, na homofobia e no anticomunismo, temas que costumam ser caros à direita cristã americana e sua congênere brasileira. 

Quando encontrou na Advocacia-geral da União com o advogado André Mendonça – um profissional que transmitia segurança e competência e, além disso era pastor presbiteriano de uma igreja chamada Esperança (que triste sina a nossa) – Bolsonaro juntou a fome com a vontade de comer. Alçou Mendonça ao cargo máximo da instituição e logo depois ao de ministro da Justiça, substituindo o “traidor” Sergio Moro. 

Como titular do Ministério da Justiça, Mendonça foi alvo de críticas por mandar abrir inquéritos contra opositores do governo Bolsonaro, tais como Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Hélio Schwartsman e outros políticos, jornalistas e cartunistas, sob a acusação de calúnia ou injúria devido a críticas ao presidente. Na sabatina, o mesmo Mendonça disse que a liberdade de imprensa é um bem sagrado. Para quem?

Também durante sua gestão, o Ministério da Justiça foi acusado de produzir um dossiê contra mais de 500 servidores federais e estaduais de segurança identificados como membros do “movimento antifascismo“. Mendonça confirmou à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso a existência de um relatório de inteligência, mas negou que houvesse ilegalidades em sua produção. Apesar de aparentar notório saber jurídico, Mendonça fez o jogo do poder. Só pelas duas atitudes acima, não se pode dizer que tenha “caráter ilibado”, uma das exigências para ser ministro do STF. E, ao assumir o cargo de ministro da Justiça, sinalizou para o chefe que estaria disposto antes de tudo a cumprir ordens.

Em plena posse como ministro da Justiça, Mendonça chamou Bolsonaro de “profeta” por ele ter sido um político “preocupado” com a agenda da segurança pública quando esse assunto não comovia Brasília. Um gesto típico de bajulador, principalmente se levarmos em conta que o tal “profeta” jamais apresentou um projeto sequer em favor da segurança pública do povo brasileiro. 

Pela bajulação, Mendonça não levou sequer um “puxão de orelhas” de sua igreja. Na verdade, os evangélicos, de modo geral, continuam fazendo vista grossa para os erros de Bolsonaro e sua equipe. Entre os evangélicos que se arrependeram do mau caminho bolsonarista, poucos têm coragem de ir à público e manifestar sua opinião. De certo modo, a igreja evangélica brasileira aprofundou suas divisões com a chegada de Bolsonaro ao poder. Mesmo sem ser evangélico, ele consegue influenciar muitos membros de igrejas, sobretudo as pentecostais e neopentecostais. Evangélico que tem a coragem de criticar os desmandos de Bolsonaro muitas vezes sofre discriminação dentro da própria igreja. Há uma legião de jovens evangélicos que ficaram “desigrejados” diante da insistência de pastores e diáconos em manifestarem, até do púlpito, apoio ao governo.

Embora o presbiterianismo tenha suas bases na busca de reformas sociais, também por meio da pregação do Evangelho, os evangélicos no Brasil se afastaram da política partidária justamente durante o regime militar. Boa parte das igrejas mais conservadoras apoiou o golpe, mas sempre houve na membresia ilhas de oposição à ditadura e seus algozes. Tanto assim que saiu das fileiras da Igreja Presbiteriana um líder respeitado na luta pelos direitos humanos, o reverendo James Wright, que se tornou o executivo do projeto Brasil Nunca Mais, patrocinado pela Arquidiocese de São Paulo – que denunciou os violentos crimes praticados pela ditadura, com base em 707 processos da própria Justiça Militar. Wright, a quem tive o prazer de conhecer e entrevistar, era o braço direito do cardeal Paulo Evaristo Arns.

Com o Congresso Nacional Constituinte, em 1987, os evangélicos voltaram a se aproximar da política, convencidos de que tinham que participar da construção da nova Constituição, temendo, principalmente, que sofressem algum revés no direito à liberdade de culto. Encontraram de braços abertos justamente o Centrão que reunia o que de mais fisiológico havia na política, em partidos de centro-direita. Seu lema na época era “é dando que se recebe”, frase que também teria sido citada pelo frade São Francisco de Assis. Esses evangélicos negociaram seus votos na bacia das almas. Muitos deles com a desculpa esfarrapada da ameaça do comunismo. Afinal, o Muro de Berlim – que precipitou a extinção da União Soviética e da chamada Cortina de ferro, só cairia em 1989. E ali, com o Centrão de 1987, está a origem desse núcleo político que viu em Bolsonaro um líder capaz de derrotar as esquerdas progressistas que, para os evangélicos, defendem o comunismo  que eliminou cristãos na Cortina-de-ferro, exatamente como o Império Romano fez aos primeiros mártires cristãos nas arenas dos leões.

Esses “novos evangélicos” na política sofrem também grande influência da direita cristã norte-americana, que, nos Estados Unidos, conseguiu, com uma agenda conservadora nos costumes e na economia, eleger Donald Trump. O principal estrategista de Trump, Steve Bannon, ainda hoje dá conselhos ao governo Bolsonaro. 

Apesar de Bolsonaro não ter feito tudo que poderia ter feito pela candidatura de Mendonça, o presidente usou o carimbo de “terrivelmente evangélico” para seu candidato, como uma espécie de ameaça ao Supremo, que tornou-se o único poder a conter os ímpetos autoritários do presidente. Só esse carimbo feito pelo presidente já deixa o novo ministro do STF sob suspeita. Como ministro de estado, numa corte suprema, Mendonça não pode agir como lobista de qualquer que seja o grupo, político ou religioso. Mendonça, inclusive, se revelou um homem de duas faces. Na sabatina, apresentou-se como guardião da Constituição. Logo após eleito, fez um discurso em tom triunfalista, afirmando que sua vitória é o passo para um homem (no caso, ele), mas também para todos os evangélicos. Nada a ver. O Supremo não pode ser evangélico, católico, espírita ou qualquer outra religião e, muito menos, se comprometer com a agenda de qualquer ideologia política. O Estado é laico. E foi justamente a separação entre Igreja Católica e Estado que historicamente deu força para os evangélicos conseguirem superar todas as discriminações, sendo minoria religiosa no país. Agora somam 40 milhões. Um enorme rebanho de ovelhas que cada vez mais atrai lobos vorazes. Sobretudo às vésperas de ano eleitoral.

Agora cabe aos verdadeiros evangélicos, preocupados com a ética e a cidadania, serem os primeiros a fiscalizar as atitudes e os votos de André Mendonça no STF.  E essa forma de preenchimento dos cargos do Supremo precisa urgentemente ser revista pelos legisladores. Mas quem vai ter coragem de mexer nesse vespeiro?

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Foto de capa: Alan Santos/PR