Deputados cristãos usam falsa unanimidade religiosa para dificultar direitos de meninas estupradas 

Câmara aprova projeto que suspende diretrizes sobre aborto legal em crianças e adolescentes vítimas de estupro. Senado ainda votará tema


A Resolução 258/24 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que garantia direitos a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual foi cancelada em votação na Câmara dos Deputados, em dia 5 de novembro de 2025. Os parlamentares aprovaram  o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/2025, que susta  a resolução que estabelecia diretrizes para o atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, garantindo acesso ao aborto legal sem a necessidade de boletim de ocorrência ou autorização dos responsáveis em casos de suspeita de violência intrafamiliar. 

De autoria da deputada católica Chris Tonietto (PL-RJ) e relatado pelo também católico Luiz Gastão (PSD-CE), o PDL foi aprovado com 317 votos favoráveis contra 111, e agora segue para o Senado. Parlamentares das bancadas católica e evangélica argumentam que o Conanda  extrapolou suas competências ao “legislar sobre aborto”. Porém, este argumento ignora um dado brutal: no Brasil, 20 mil meninas com menos de 15 anos engravidam todos os anos, mas apenas 200 conseguem acessar o aborto legal previsto em lei. 

O discurso  construído no plenário da Câmara para aprovação do projeto foi de “defesa da vida” e de “proteção da família”, mas os números revelam outra história. Entre 2014 e 2023, mais de 204 mil meninas de 10 a 14 anos deram à luz no país — uma média de 57 partos por dia, ou uma menina que se torna mãe a cada 30 minutos. Em 2023, quase 14 mil meninas nesta faixa etária tiveram filhos, mas apenas 154 acessaram o aborto legal, o que representa 1,1% do total. Para cada criança que consegue interromper uma gestação fruto de estupro, 31 são forçadas a parir. Esses dados não são abstratos: são corpos de meninas violentadas, em sua maioria por familiares, que têm cinco vezes mais chances de morrer durante a gestação, o parto ou o puerpério.

Durante o debate em plenário, a deputada Chris Tonietto afirmou que “a violência sexual não pode ser combatida com o aborto, que é outra violência”. O deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) declarou que o objetivo era “frear a indústria do aborto, a cultura da morte”. A deputada Bia Kicis (PL-DF) defendeu a exigência de boletim de ocorrência para “identificar e punir o estuprador”, ignorando ou se opondo à Lei da Escuta Protegida (13.431/17) e à Lei do Minuto Seguinte (12.845/13) que dispensam o B.O. justamente para evitar a revitimização. A retórica da “defesa da vida” se concentra no feto, mas silencia sobre as vidas das meninas.

O aborto legal frente à violência sexual

Como Bereia já publicou, a legislação atual sobre o aborto no Brasil tem raízes no Código Penal de 1940, aprovado durante o Estado Novo (1937-1945), presidido por Getúlio Vargas. O Código Penal passou a permitir a interrupção da gravidez quando há risco de vida para a gestante ou em casos de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou ação que autorizou a interrupção da gravidez também em casos de anencefalia (má formação do cérebro) do feto. 

Fora dessas exceções, o aborto no Brasil é considerado um crime sujeito a penas de detenção tanto para a gestante quanto para quem realiza o procedimento. Em 2016, no julgamento de um recurso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a de autorização do aborto nos casos de anencefalia  se aplicava também a outras malformações incompatíveis com a vida. 

Nos casos de estupro ou risco à vida da gestante, não há um limite de tempo específico de gestação estabelecido pela lei para que o aborto legal possa ser realizado. 

Para o que estiver fora destas situações e representar aborto por vontade própria ou sem consentimento da gestante, o Código Penal, prevê punições de detenção.

A falsa unanimidade religiosa

O que parlamentares como Chris Tonietto, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Otoni de Paula alegam como “posição cristã” não representa a totalidade do campo religioso. Embora grupos conservadores católicos e evangélicos dominem o debate público e legislativo, há vozes dissonantes dentro das próprias tradições cristãs que questionam essa instrumentalização da fé para negar direitos a meninas e mulheres.

A articuladora nacional da ONG Católicas pelo Direito de Decidir Keli de Oliveira, ouvida pelo Bereia, , avalia o debate com preocupação. “Mesmo diante do aumento do número de estupros que atinge principalmente meninas de até 13 anos e da grave realidade de gestações resultantes dessa violência, não nos parece que a maioria dos parlamentares brasileiros se importe ou se sensibilize com essa situação. Pelo contrário, as últimas movimentações do Congresso Nacional, especialmente de parlamentares e bancadas que se dizem ‘defensoras da vida’, têm se voltado a atacar os poucos direitos de meninas e mulheres”, afirma.

Keli de Oliveira destaca que a Resolução 258 do Conandanão cria novos direitos, apenas estabelece  fluxos para que crianças e adolescentes vítimas de estupro fossem acolhidas de forma humanizada e tivessem acesso a todas as opções legais, entre elas o aborto seguro. “Atuam não para amparar, mas para dificultar o acesso dessas meninas a direitos garantidos por lei”, critica.

A percepção de que o campo religioso é unânime na condenação ao aborto não corresponde à realidade. “Apesar de haver uma crescente mobilização de grupos religiosos antidireitos, principalmente evangélicos e católicos, que impõem seu conservadorismo religioso na agenda pública e política do país, há também grupos e pessoas religiosas que combatem a desinformação e defendem o direito de decidir e de escolher em relação ao aborto”, explica a articuladora católica. 

Ela se apoia na própria doutrina católica, que nunca teve uma posição única sobre o aborto. “Doutrinas de ordem moral, como o probabilismo, formulada no século XVII, afirmam que ‘uma obrigação moral sobre a qual há dúvidas não pode ser imposta como se fosse única e certa’. Assim como outras reflexões presentes na tradição teológica da Igreja, essa perspectiva reafirma o direito à decisão e à livre consciência diante dos dilemas individuais”, explica Keli de Oliveira.

Diferentemente das posições religiosas conservadoras, as Católicas pelo Direito de Decidir defendem o Estado laico, livre de interferências religiosas na formulação e condução das políticas públicas. “Nós nos apoiamos na teologia feminista e em um pensamento ético-religioso que reconhece nossa autoridade moral para tomar decisões”, afirma Keli de Oliveira.

Interpretações bíblicas e o direito à vida

Bereia também ouviu a  pastora e teóloga batista  Odja Barros. Ela explica que o direito à vida em diferentes tradições religiosas cristãs está muito relacionado às interpretações. “A interpretação da Bíblia e da teologia historicamente foi feita por homens que desconsideraram o direito à vida das mulheres”, pontua. Segundo ela, o discurso cristão fundamentalista deixa de lado os corpos femininos com uma visão antropocêntrica e patriarcal.

Para a pastora, o discurso de católicos e evangélicos que defenderam o retrocesso do aborto legal em crianças e adolescentes demonstra uma total desconsideração pelo número de meninas que gestam com menos de 14 anos, e que na maioria das vezes são violentadas pelos próprios membros da família. Ela reforça que a tradição judaico-cristã alerta biblicamente para o direito à vida de três grupos vulnerabilizados: os pobres (vítimas de um sistema que favorece os que têm poder), as viúvas (as mulheres mais vulnerabilizadas à época bíblica, que necessitavam de um amparo masculino) e os estrangeiros (por serem tratados nessa cultura como ameaça).

Odja Barros questiona políticos e lideranças religiosas: “para aplicarmos de forma literal a bandeira do direito à vida, teríamos que garantir amplamente o direito desses grupos mais desprotegidos que sofrem mais violência no contexto social, político e religioso. E justamente hoje são os corpos das meninas e mulheres que ao longo do tempo não foram validados por uma estrutura que nega direitos”.

O papel das lideranças religiosas conservadoras

Keli de Oliveira aponta que o conservadorismo religioso tem se imposto com uma agenda política poderosa, que se intensificou nos últimos anos. “É preocupante como esses grupos vêm se articulando e construindo alianças com a extrema direita, territorializando suas ações por meio da apresentação de projetos de lei em câmaras municipais, que atacam principalmente os direitos de meninas, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+ e a laicidade do Estado”,diz.

Apesar do impacto que causam, especialmente na vida dessas meninas, essas lideranças não são uma voz única. Embora possam influenciar a opinião pública, há também reação do campo progressista e apoio da sociedade quando o tema é garantir o direito ao aborto para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Um exemplo foram os massivos protestos e a ampla desaprovação social ao PL 1904/24, que previa punir severamente vítimas de estupro, inclusive crianças, como Bereia informou.

Keli de Oliveira cita ainda a pesquisa de opinião realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Instituto Locomotiva, sobre percepções a respeito dos direitos de meninas e mulheres grávidas após estupro. O estudo revelou que a maioria dos brasileiros é solidária às vítimas: 96% acreditam que meninas de até 13 anos não estão preparadas para ser mães, e seis em cada dez pessoas conhecem alguma mulher que foi vítima de estupro nessa faixa etária.

“Portanto, apesar da falsa narrativa propagada por grupos religiosos neoconservadores sob o argumento de ‘defesa da vida desde a concepção’ e da condenação ao direito ao aborto em qualquer circunstância, a insígnia ‘Criança Não é Mãe’ tem desmascarado esses discursos e conquistado cada vez mais apoio popular. Eles não detêm a última palavra”, afirma a articuladora católica.

 

Referências:

Câmara Federal

https://www.camara.leg.br/noticias/1219967-camara-aprova-projeto-que-cancela-diretrizes-sobre-aborto-em-criancas-e-adolescentes-vitimas-de-estupro – Acesso em 17 nov 2025

Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2025/08/7226474-uma-menina-brasileira-vira-mae-a-cada-30-minutos-mostra-levantamento.html – Acesso em 17 nov 2025

Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2025-05/meninas-maes-passam-de-14-mil-e-so-11-tiveram-acesso-aborto-legal – Acesso em 17 nov 2025


https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-08/pais-registra-164-mil-estupros-de-criancas-e-adolescentes-em-3-anos – Acesso em 17 nov 2025

Notícias UOL
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/11/06/entidades-criticam-aprovacao-de-pdl-que-dificulta-aborto-legal-em-crianca-vitima-de-estupro.htm – Acesso em 17 nov 2025

Presidência da República

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm  – Acesso em 17 nov 2025

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm – Acesso em 17 nov 2025

Deputado faz alarde sobre resolução referente ao aborto não definida por Conselho

* Matéria atualizada em 17/12/2024 às 12:41 e em 14/02/2025 às 09:30. Role a tela para ver

Uma publicação do deputado federal evangélico Messias Donato (Republicanos), postada em 7 de novembro em seu perfil do Instagram, afirma que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) estuda permitir a realização de aborto em fetos de até nove meses de gestação. O parlamentar comenta ser “inaceitável que um Conselho Nacional que supostamente defenda a infância venha apregoar o ass@ss1nato de bebês ainda não-nascidos”.

Imagem: Reprodução/Instagram

Além de conter a logomarca do deputado, a imagem também exibe a identidade visual do jornal Gazeta do Povo, que publicou a notícia citada por Messias Donato. De acordo com o veículo, uma proposta de resolução do Conanda prevê que, em casos de estupro, menores de idade tenham acesso ao aborto independente da idade gestacional ou do peso do feto. 

O jornal alega ter recebido acesso exclusivo à minuta da proposta, e destaca que ela dispensa a apresentação de registro de boletim de ocorrência da violência sexual, ou autorização judicial para a interrupção da gestação. Bereia checou a veracidade desta informação. 

O que é o Conanda e qual é o seu papel

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) foi criado pela Lei 8242/1991. O órgão é formado por um colegiado permanente, de caráter deliberativo e composição paritária, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Conselho integra a estrutura básica do Ministério dos Direitos Humanos.

Como representação da sociedade civil, o Conanda delibera sobre as diretrizes para a Política Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, além de cooperar para a definição das políticas para estes cidadãos. 

Entre as atribuições do Conanda, estão: fiscalizar as ações de promoção dos direitos da infância e adolescência realizadas por organismos governamentais e não-governamentais; definir diretrizes para a atuação dos Conselhos Estaduais, Distritais e municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos Conselhos Tutelares; operar na manutenção de bancos de dados com informações sobre a infância e a adolescência; observar a elaboração e a execução do orçamento da União, com acompanhamento se os recursos necessários para as políticas de promoção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil estão assegurados; administrar o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA).

O site oficial do Conanda publica as resoluções aprovadas pelo Conselho, mas não disponibiliza as propostas que ainda não foram votadas. Bereia entrou em contato com o Conanda com perguntas sobre a existência do texto mencionado pela Gazeta do Povo e solicitar acesso ao seu conteúdo,  mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria. 

Bereia entrou em contato com a Gazeta do Povo sobre a publicação referida em que trata do teor da resolução. Segundo a Equipe de Interatividades, “a resolução foi feita pela presidente do Conanda, e conseguimos com exclusividade com uma fonte”, resposta assinada pela editoria responsável pela matéria. 

De acordo com a Gazeta do Povo, o órgão confirmou à reportagem que estuda, em diálogo com outras instituições e especialistas, a elaboração de uma resolução para garantir o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de estupro. O Conanda afirmou, ainda, não ser possível tratar o mérito de detalhes que ainda estão sendo discutidos e não foram consolidados no texto final.

“Uma das principais missões legais do Conselho é dispor sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violências sexual. O Conanda tem se debruçado ao longo dos anos a respeito das falhas e da ausência de serviços que garantam o atendimento de crianças vítimas de estupro”, diz a nota enviada ao jornal.

Quem é o deputado Messias Donato

Manoel Messias Donato Bezerra é deputado federal pelo Partido Republicanos (ES). O  parlamentar nasceu no estado da Bahia, mas foi eleito pelo Espírito Santo. Donato iniciou a carreira política, em 2008, tendo passado pelos partidos Progressistas (PP) e Trabalhista do Brasil (PT do B). Evangélico e alinhando as pautas da extrema direita, o parlamentar é atuante nas mídias digitais, e defende bandeiras como a do combate ao aborto, a flexibilização do acesso às armas de fogo, a defesa da infância, liberdade e os “valores cristãos” . 

Messias Donato é autor do Projeto de Lei (PL) 5371/2023, que aumenta as penas dos crimes de aborto, e insere o delito na lista de crimes contra a vida do Código Penal. É coautor do PL 5939/2023,  que tem como objetivo vedar a progressão de regime em casos de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. 

Donato apresentou também o PL 2210/2023, que proíbe ações que interfiram na formação de gênero das crianças e dos adolescentes, “vedando tratamentos, terapias, procedimentos ou qualquer outra ação que interfira na sua formação de gênero.”

Além disso, o parlamentar tem atuado na Câmara contra  pautas da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR), com a solicitação da suspensão da discussão de projetos  como o PL 2476/2023, que determina o Protocolo Nacional Antirracista, ordenando aos estabelecimentos de grande circulação de pessoas em todo o território nacional a implementação de medidas de prevenção, conscientização e acolhimento de vítimas em situações de racismo. 

Outro projeto contra o qual Messias Donato tem atuado é  o PL 2819/2020,  que dispõe sobre medidas que garantam a equidade na atenção integral à saúde da população negra em casos de epidemias ou pandemias, surtos provocados por doenças contagiosas ou durante a decretação de Estado de Calamidade Pública.

Há também ações do deputado do Republicanos do Espírito Santo contra pautas que deliberam sobre questões ambientais, como o PL 10678/2018,  que propõe a consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas e quilombolas necessária para a emissão de licença ambiental para atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais poluidores, que causem degradação ambiental.

Aborto no Brasil: usos e abusos do tema

O Código Penal brasileiro não considera o aborto como crime em apenas três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. Não há menções à idade da gestante ou ao tempo gestacional na legislação ou em decisões do STF.

Bereia checou matérias relacionadas ao tema do aborto e mostrou como esse tema tem sido instrumentalizado por parlamentares da extrema direita que promovem desinformação e consequentemente, incompreensão sobre o assunto. 

A publicação de Messias Donato é produzida na mesma direção, com pânico moral ao afirmar que o Conanda estaria em articulação para permitir aborto de feto gestado por meninas até os nove meses da gravidez. 

A ambiguidade da publicação atua para confundir leitores, por meio de um alerta para a pauta, que já tem diretrizes legais definidas, que salvaguardam crianças, adolescentes e mulheres. Apesar de as normas do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina estabelecerem um limite de 22 semanas para a interrupção da gravidez, são orientações sem poder de lei e não podem ser colocadas acima do que diz o Código Penal ou a Constituição. 

A questão do aborto está no debate por diferentes viéses. No entanto, no que diz respeito às deliberações, o Conanda enquanto órgão integrante da estrutura básica do Ministério dos Direitos Humanos (MDHC), não determina normas jurídicas, mas opera no sistema de garantia de direitos. Sendo assim, o Conanda não determina sobre a questão do aborto, mas atua na manutenção e fiscalização dos direitos estabelecidos em relação a ele e a outras pautas relacionadas à vida de crianças e adolescentes.

***

Bereia considera imprecisa a publicação do deputado federal Messias Donato. Além de se basear em proposta de resolução do Conanda, sobre a qual não se tem acesso, a matéria do jornal Gazeta do Povo oferece um título – “Conanda estuda permitir aborto em crianças até 9 meses de gestação” – que induz o leitor ao erro. A matéria ignora as atribuições do Conanda e leva leitores a crerem que o órgão tem o poder de definir procedimentos quanto ao aborto, o que só cabe ao Congresso Nacional ou, em casos específicos, ao Supremo Tribunal Federal. 

Além disso, a matéria utilizada pelo deputado não informa o fato de que crianças e adolescentes podem passar pelo procedimento nos casos previstos por lei, uma vez que o Código Penal não restringe o acesso ao aborto pela idade da gestante ou pelo tempo de gestação.

Atualização de 17/12/2024

Após a conclusão desta matéria, Bereia recebeu de leitores mensagens sobre o assunto que ainda estariam circulando em grupos de WhatsApp.

A mensagem traz um alerta para que cidadãos conservadores em relação ao tema do aborto se unam por meio da assinatura de uma petição. O alerta coloca novamente o Conanda como elemento central do problema, o que justificaria um boicote por meio do requerimento. O texto não tem autoria.

Um documento, com data de 12 de dezembro passado, também está circulando. Nele são mencionados os contatos dos conselheiros do Conanda. O texto faz um apelo para que cidadãos que se identificam como “a favor da vida” enviem uma mensagem para a lista de e-mail dos conselheiros, a fim de fazerem pressão contra a suposta resolução.  

O documento cita uma data quando ocorreria a reunião para definir a tal resolução, mas não oferece dados que respaldam tal afirmação. Além disso, o documento não tem autoria: não é assinado por qualquer pessoa ou instituição.

Ambas as publicações fazem volume, mas continuam repetindo informações sem substância, que não oferecem dados que embasem suas afirmações, e não têm autoria, características comuns a conteúdo desinformativo nas redes.

Atualização de 14/02/2025

No início de janeiro de 2025, o tema do aborto ficou novamente em destaque nas redes digitais devido à autorização da Justiça Federal para a publicação da norma sobre aborto em menores de idade.

Ainda que a resolução do Conanda não transgrida o Código Penal brasileiro, o tema, vez ou outra, retorna às arenas de discussão sendo aparelhado por parlamentares da extrema direita, que desinformam com distorções do conteúdo das determinações, como é o caso do deputado federal Messias Donato, e da situação criada, neste janeiro, pela senadora Damares Alves. 

Em 24 de dezembro de 2024, um dia após a publicação da resolução do Conanda, a Justiça Federal do Distrito Federal atendeu a um pedido da senadora e determinou a suspensão da norma. Na prática, a decisão suspendeu a aplicação da resolução com o argumento de que sua votação violou o regimento interno do Conselho. Damares Alves alegou que o Código Civil “fala da incapacidade civil plena e incapacidade relativa de pessoas até uma certa idade, justamente as crianças e adolescentes, que precisam ser representadas ou assistidas por seus pais e responsáveis para praticarem atos da vida civil”.

A situação mudou em 7 de janeiro, quando o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) autorizou a publicação da resolução no Diário Oficial da União (DOU). A decisão foi em caráter cautelar, ou seja, já está valendo, mas ainda depende de julgamento do mérito pela desembargadora federal Rosana Noya Alves Weibel, relatora do caso. No dia seguinte, Damares Alves pediu que a decisão do TRF-1 e a resolução do Conanda fossem anuladas, mas, em 16 de janeiro, a Justiça Federal do DF anulou o processo movido pela senadora por não haver legitimidade da parlamentar para a questão. “A impetrante não integra ou participa a qualquer título do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), de modo que não há interesse jurídico para que a parlamentar questione em juízo os atos do mencionado Conselho”, apontou a sentença. 

A juíza federal Liviane Kelly Soares Vasconcelos, responsável pelo processo, relembrou que o entendimento definido no Supremo Tribunal Federal é o de que parlamentares podem questionar atos do Executivo no judiciário desde que não de forma individual, como feito pela senadora, mas sim de forma coletiva, seja por iniciativa da Casa, seja por iniciativa de suas comissões.

Imagem: Bereia

Referências de checagem:

Notícias Uol

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/12/23/quem-e-messias-donato-deputado-que-recebeu-tapa-na-cara-do-vice-presidente-do-pt.htm Acesso em 12 NOV 24

Câmara dos Deputados

https://www.camara.leg.br/deputados/220530 Acesso em 12 NOV 24

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2264841&filename=Tramitacao-PL%202210/2023 Acesso em 12 NOV 24

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2401578 Acesso em 12 NOV 24

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2411900 Acesso em 12 NOV 24

https://www.camara.leg.br/noticias/1071458-PROJETO-DE-LEI-PREVE-PENA-DE-HOMICIDIO-SIMPLES-PARA-ABORTO-APOS-22-SEMANAS-DE-GESTACAO. Acesso em 18 NOV 24

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2358735#:~:text=PL%202210%2F2023%20Inteiro%20teor,Projeto%20de%20Lei&text=Acrescenta%20par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico%20ao%20art,das%20crian%C3%A7as%20e%20dos%20adolescentes. Acesso em 12 NOV 24

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2389107 Acesso em 12 NOV 24

https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cme/membros Acesso em 12 NOV 24

Partido Republicanos

https://republicanos10.org.br/quem_e_quem/messias-donato/?app=Avant_Empresa_3abfbe32310a3ce3711b848c3f3290e9&tipo_1=sim&tipo_2=nao&tipo_3=nao&tipo_4=nao&tipo_5=nao&preferencia_marcada=Salvar+minhas+escolhas&key_avant_valid_preference=387a579052529ca4dfbac317c0d38bc5 Acesso em 12 NOV 24

Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania

https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-conanda/conanda#:~:text=Criado%20em%201991%20pela%20Lei,e%20do%20Adolescente%20(ECA). Acesso em 12 NOV 24

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

https://www.gov.br/participamaisbrasil/conanda Acesso em 12 NOV 24

Planalto – Presidência da República

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8242.htm Acesso em 12 NOV 24

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/congresso-americano-nao-enviou-carta-com-cobrancas-a-ministro-do-stf-do-brasil/ Acesso em 14 NOV 24

https://coletivobereia.com.br/politicos-e-sites-religiosos-desinformam-sobre-resolucao-a-respeito-de-atuacao-religiosa-em-presidios/ Acesso em 14 NOV 24

https://coletivobereia.com.br/deputados-e-midias-gospel-espalham-falsidades-sobre-projeto-de-lei-que-retira-direitos-sobre-aborto-no-brasil/ Acesso em 14 NOV 24 

Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5017436-menina-de-11-anos-gravida-apos-ser-estuprada-consegue-faz-aborto-legal.html Acesso em 18 NOV 24

https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2025/01/7028951-decisao-da-justica-da-norma-do-conanda-sobre-aborto.html Acesso em 13 FEV 25

Agência Brasil

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-06/manifestantes-vao-as-ruas-contra-projeto-que-equipara-aborto-homicidio-0 Acesso em 18 NOV 24

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2024-12/justica-suspende-protocolo-do-conanda-para-gravidez-fruto-de-estupro#:~:text=A%20Justiça%20Federal%20suspendeu%20a,gravidez%20resultante%20de%20violência%20sexual. Acesso em 10 FEV 25

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/deputados-e-midias-gospel-espalham-falsidades-sobre-projeto-de-lei-que-retira-direitos-sobre-aborto-no-brasil/ Acesso em 18 NOV 24

https://coletivobereia.com.br/sites-e-politicos-religiosos-enganam-sobre-governo-federal-defender-maconha-e-aborto/ Acesso em 18 NOV 24

JusBrasil. https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10624811/artigo-128-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940 Acesso em 21 NOV 2024.

G1. https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/01/07/trf-1-autoriza-publicacao-de-resolucao-de-conselho-sobre-aborto-legal-para-criancas-e-adolescentes.ghtml Acesso em 10 FEV 25

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/damares-pede-suspensao-de-decisao-que-autorizou-normas-sobre-aborto-em-criancas/ Acesso em 10 FEV 25

Congresso em Foco – Uol

https://congressoemfoco.uol.com.br/tag/stf/ Acesso em 13 FEV 25

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/justica-federal-anula-processo-de-damares-contra-resolucao-sobre-aborto/ Acesso em 13 FEV 25

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/justica-atende-pedido-de-damares-e-suspende-resolucao-sobre-aborto-em-criancas/ Acesso em 13 FEV 25

Foto de capa: Câmara dos Deputados

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