Sobre pontes e narrativas antirracistas

Artesãos, comerciantes, mulas, notáveis, letrados, bêbados, eruditos, ciganos, prostitutas, rabinos, professoras, viajantes, camponeses, padres, soldados, estrangeiros, mulheres, mendigos, taberneiros, mães, aldeões, sábios, crianças, jovens todos disputam seu lugar na vigorosa narrativa de Ivo Andric (1892-1975), que desenha o vibrante percurso do povo na cidade de Vichegrad. Entre lendas e mitos, que embaralham a realidade, o autor sérvio nos adentra na história da Ponte sobre o rio Drina (Agradeço a meu amigo de origem croata Mário Franulovic Campos, que me apresentou a bela prosa poética do premiado Nobel de literatura Ivo Andric, diplomata e escritor balcânico).

Construída pelo piedoso vizir Mekhmed paxá Sókolovitch (1505-1579), no apogeu do império Otomano, a ponte não apenas une Oriente ao Ocidente, Sarajevo a Belgrado, ela trafega fluxos de pessoas, mercadorias, projeto de cidade. Ela também impõe nos habitantes um espírito de concessões, com seus ganhos, e retraimento, com seus estremecimentos. Nessa tensão, inerente as comunidades que se erguem nas fronteiras, nos limites geográficos e culturais se ergue uma sociabilidade, um estilo de vida.

Nos acontecimentos históricos, ao longo de três séculos na região balcânica, o autor desvenda como na comunidade serão moldados, nas pessoas, sentimentos, anseios, temores, esperanças, modos de ver e de perceber a vida. Ele adentra nos receios que afloram quando sérvios, bósnios, turcos, suábios, húngaros, ciganos, dividem uma franja de território, de como o sentimento de pertença engenha nos cidadãos estratégias para sobreviverem dignamente num mesmo lugar.

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Para Andric, a ponte testemunha como cada geração fabula em torno da eterna busca de uma convivência em comum, do simples direito de sentir a brisa do rio sob noites inundadas de estrelas, sonhar com as colheitas, aspirar a progredir nos negócios, ver os filhos crescerem. É na ponte que a sociabilidade se tece, as sucessivas mudanças se mostram, as desavenças se ventilam, os olhares apaixonados se encontram, as raivas extravasam, os exércitos passam, as ocupações se proclamam, a música envolve. Enfim, na ponte, a diversidade é querida e temida.

O escritor abre janelas de sol, nas quais se vislumbra de tempos em tempos, em que é possível o respeito à diferença étnica e a possibilidade de oportunidades para os cidadãos, mesmo sem esconder receios, desconfianças e distanciamentos que se impõem quando judeus, muçulmanos e cristãos dividem um fragmento de território em ambos lados do rio Drina.

A ponte se impõe quase como eterna por estar desde sempre acompanhando as vicissitudes naturais (inundações, secas, tempestades) e humanas (invasões, guerras). O autor fabula em torno da universalidade do comportamento humano que revela uma alma capaz do mais nobre ato como da pior vazão de instintos, em qualquer latitude. Assim discorre, quando a primeiro conflito mundial implode no início do século XX:

“As pessoas dividiram-se em perseguidos e perseguidores. Aquele animal faminto que vive dentro do homem e que não ousa revelar-se até que sejam eliminados os obstáculos dos bons costumes e das leis havia sido libertado agora. O sinal havia sido dado, as barreiras eliminadas. Como frequentes vezes acontece na história da humanidade, foram autorizadas tacitamente a violência e a pilhagem, incluindo o assassinato, sob a condição de que fossem executadas, em nome de interesses superiores, sob o amparo de palavras de ordem, contra um número limitado de pessoas, com determinados nomes e convicções”

Andric, Ivo. Ponte sobre o rio Drina. São Paulo: Grua, 2020. p. 441

Desde a ponte Drina, a personagem que reflete sobre perseguidos e perseguidores assiste ao massacre de seus vizinhos sérvios que dias antes tinham feito compras no mercado, fumado um tabaco, divido uma aguardente, jogado cartas. Num piscar de olhos, passaram de cidadãos a réus, de vizinhos a inimigos.

Numa outra latitude e temporalidade, um século depois, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul/Brasil, numa quinta-feira 19 de novembro de 2020 (véspera do feriado nacional do Dia da Consciência Negra), num piscar de olhos, um cidadão negro, vizinho, cliente, vira inimigo. A rede de supermercados Carrefour foi o palco em que João Alberto Silveira Freitas (40 anos) se envolve em discussão, vira alvo de suspeita, é conduzido fora da loja e, na sequência, foi brutalmente agredido, por policiais à paisana, a serviço da empresa Vector Segurança Patrimonial.

O assassinato de João Alberto desvela, como sugere Andric, as consequências de remover “os obstáculos dos bons costumes e das leis”, da afirmação do politicamente correto, dos entraves sociais da barbárie, da indignação que naturaliza a violência. O espancamento ensandecido, até a morte, viralizou nas mídias sociais, ocupou coberturas de jornais da rádio e da TV (aberta e fechada), debates trouxeram à tona o racismo estrutural como traço endêmico da sociedade brasileira.

Naquela noite, se espetacularizou esse “animal faminto” que, cego, responde ao comando interiorizado de manter a ordem a qualquer custo. Os seguranças-policiais não apenas brigavam ferozmente, numa luta entre “machos” que ofendidos repunham a “honra” atingida. Os agressores transbordaram uma violência gratuita, desproporcional à possível “ofensa” da contenda ou à desobediência das normas, ainda a eventuais transgressões patrimoniais. Seus socos desferiam um ódio acumulado a um inimigo intangível, mas agora concretizado no corpo negro subjugado, eliminado.

Crime com a conotação racista porque além do emprego da violência física, precedido da agressão verbal, manifesta ódio e intolerância, manifesta violência desproporcionada contra uma pessoa-população. Ato que expressa o racismo presente nas estruturas subjetivas dos agressores policiais, por sua vez, também, replicam a violência objetivada no cotidiano das ruas, como as cifras registram: “79% dos mortos por policiais, em 2019, eram pretos e pardos, os mesmos contabilizam 75,7% como alvo dos homicídios entre 2008 e 2018”, dados que mostram fatos e reforçam os argumentos de análises sociais e científicas (Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública).

Mas, se o ódio e a intolerância compõem o racismo que, por um lado, manifesta instintos de “animais famintos”, por outro lado, são fruto de sociabilidades que hierarquizam as relações entre diferentes, naturalizam a desigualdade em função da cor da pele, negam o acesso a oportunidades que equilibrem o poder e a igualdade nas relações sociais. Porém, sociabilidades podem ser subvertidas porque são historicamente construídas, como foi a construção da ponte sobre o rio Drina, que impulsionou a vida da comunidade multiétnica e racial de Vichegrad. Nela era possível, de tempos em tempos, sonhar com a convivência comum em prol dos ensejos cidadãos e de segurar os limites da barbárie.

Sociedades antirracistas não eliminam as tensões, mas geram musculatura social capaz de negociar os conflitos decorrentes das diferenças, promover a equidade e oportunidade, respeitar as crenças, afirmar o valor da diversidade, independente de gênero e orientação sexual, propiciar o conhecimento que amplia mentes e corações, estimula o contato com a diversidade.

Porém, para que não se torne em retórica vazia, o antirracismo só tem um caminho: conhecimento-educação e organização coletiva. Sob esses dois locus é possível alicerçar sociabilidades desafiadoras que erguem pontes, ampliam fronteiras, abrem janelas, modulam autênticas relações humanas, neutralizam narrativas que empoderam práticas racistas e de barbárie.

Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

É falso que Facebook censurou páginas de mães que se opõem à sessão de leitura infantil com Drag Queens

No dia 11 de junho o site Gospel Mais publicou a seguinte matéria: “Facebook deleta página de mães que se opõem a sessão de leitura infantil com drag queens”.

Segundo Gospel Prime “a censura impune do Facebook a grupos conservadores continua, e um caso específico, envolvendo mães, chama a atenção de veículos de informação internacionais, já que é a terceira vez que um grupo na rede social é deletado por reunir pessoas que se opõem a sessões de leitura para crianças com drag queens.” O link direciona o leitor para outras matérias do próprio site Gospel Mais a respeito da suposta censura do Facebook. Nenhuma agência de notícias internacional ou grande veículo de comunicação é mencionado.

A matéria continua relatando que: “A oposição de grupos conservadores às sessões de leitura feitas por drag queens começou em outubro de 2017, quando um {travesti vestido de demônio foi chamado para ler histórias infantis em uma biblioteca pública” e que Anna Bohach, uma “mãe conservadora” fundou o grupo 500 Mom Strong com o intuito de combater o projeto Drag Queen Story Hour (Hora da História da Drag Queen).

Dia 14 de outubro de 2017, em seu perfil no Instagram, a Drag Queen Xochi Mochi conta que teve uma de uma de suas melhores experiências na leitura para as crianças, que ficaram animadas com sua presença, e fala da importância de naturalizar a diversidade na vida das pessoas.

Essa é a fantasia que segundo Gospel Mais representaria o demônio.

De acordo com publicação do site da BBC News Brasil: o Drag Queen Story Hou” (Hora da leitura Drag Queen) foi criado em San Francisco em 2015 e, desde então, tem se espalhado pelos Estados Unidos e o mundo como um projeto de contação de histórias para crianças e adolescentes. A leitura é feita por Drag Queens voluntárias e os encontros são em bibliotecas, livrarias e escolas.

Segundo o site oficial, o projeto celebra o aprendizado e a diversão através da leitura e brincadeiras, e tem objetivo de incentivar o respeito à diversidade e a tolerância a todas a formas de expressão, gerando coragem e confiança para que as crianças possam se expressar.

O grupo ressalta que pessoas LGBTQ estão presentes em todas as comunidades, por isso acreditam que crianças merecem ter acesso a essa cultura e história nas idades apropriadas. O site reitera que qualquer insinuação de que o grupo tem objetivo de doutrinar crianças não compreende as identidades LGBTQ e é revestida de homofobia e transfobia.

Em uma entrevista concedida ao G1, um dos fundadores do projeto, Jonathan Hamilt, afirma que as histórias contadas sempre levam em conta a faixa etária dos ouvintes e os pais que levam seus filhos aos encontros normalmente têm a intenção de mostrar aos filhos de que não há nada de errado em ser LGBTQ.

Jonathan conta que o grupo tem sido alvo de ataques e protestos de grupos conservadores religiosos em diversos lugares do mundo. Um dos ataques ocorreu em janeiro de 2020 na Austrália, quando um grupo de 15 a 20 estudantes conservadores invadiu a sessão de contação de histórias em uma biblioteca na cidade Brisbane, protestando com as palavras de ordem “Drag Queens are not for kids”, em português, “Drag Queens não são para crianças”. Veja no vídeo abaixo:

Gospel Mais cita o portal LifeSite News como fonte, e de acordo com o site internacional, a página criada pela mãe conservadora Anna Bohach foi deletada pelo Facebook em três ocasiões. Segundo a administradora do perfil, as páginas foram deletadas sob acusação de transfobia.

Bereia verificou que é verdade que a página 500 Mom Strong foi deletada por discurso de ódio, uma violação dos Padrões de Comunidade do Facebook:

“Não permitimos discurso de ódio no Facebook, pois ele cria um ambiente de intimidação e de exclusão que, em alguns casos, pode promover violência no mundo real.

Definimos discurso de ódio como um ataque direto a pessoas com base no que chamamos de características protegidas: raça, etnia, nacionalidade, filiação religiosa, orientação sexual, casta, sexo, gênero, identidade de gênero e doença grave ou deficiência.”

Anna Bohach, entretanto, segue com as atividades no grupo fechado 500 Mom Strong, que contava com a participação de mais de 800 pessoas até o fechamento da matéria. A descrição do grupo afirma:

“500 Mom Strong é um grupo dedicado ao combate à sexualização de crianças promovidas pelo Drag Queen Story Hour em bibliotecas e escolas públicas, contra a educação sexual abrangente e invasão de transgêneros nos direitos e na privacidade de mulheres e meninas”.

Ainda segundo a matéria de Gospel Mais, a mãe conservadora afirmou que “Hora da História da Drag Queen é uma zombaria da feminilidade, pois Drag queens são muito ofensivos para as mulheres. Eles são caricaturas hiper-sexualizadas de mulheres”.

O Manual de Comunicação LGBTI define Drag Queen como:

“Homem que se veste com roupas femininas de forma satírica e extravagante para o exercício da profissão em shows e outros eventos. Uma drag queen não deixa de ser um tipo de “transformista”, pois o uso das roupas está ligado a questões artísticas – a diferença é que a produção necessariamente focaliza o humor, o exagero”.

O movimento Drag Queen Story Hour define Drag como uma maneira artística de se expressar e mostrar ao mundo quem você é ou quem quer ser. “As drag queens geralmente expressam seus lados femininos ou diferentes aspectos de seu gênero ou personalidade através de vestir-se, se apresentar, marchar em desfiles e ser voluntário em suas comunidades. Existem drag queens, kings, príncipes e princesas – qualquer pessoa pode ser uma das opções acima, independentemente de como elas se identificam na vida cotidiana O que importa é que, quando você se veste, se sente confortável e criativo”, informa o site oficial do grupo.

A história da arte Drag remete à Grécia Antiga, mas ganha força na década de 60, quando pessoas LGBT começaram a se organizar em circuitos culturais e clubes para expressar suas identidades através da arte, o que não era possível em outros espaços de sociabilidade como a família, escola e trabalho. Segundo o professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UFRN), Jo Fagner, muitos gays utilizavam essas oportunidades também para brincar com os papéis de gênero. “Além de suavizar o peso do estigma em suas concepções de sujeito, passaram a se tornar importantes espaços de profissionalização, pelo viés da arte”, explica.

O movimento foi se popularizando e conquistou espaço na TV e na música, no Brasil com ícones como Márcia Pantera, Sylvetti Montilla, Vera Verão e, mais recentemente, Pabllo Vittar e Gloria Groove.

Para a Drag Queen brasileira Ginger Moon, “Drag é poder fazer o que você quer. Num dia sou alien, no outro, um unicórnio. E isso ensina muito: a se amar, a ter consciência do seu corpo e das suas limitações”.

Bereia conclui, portanto, que é falsa a notícia de que o Facebook esteja censurando páginas de mães que se opõem a drag queens. Decorreu-se, no entanto, que a página 500 Mom Strong foi excluída devido à violação de um dos padrões de comunidade da plataforma, a prática do discurso de ódio.

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Referências de Checagem:

Gospel Mais. Facebook deleta página de mães que se opõem a sessão de leitura infantil com drag queens. Disponível em: https://noticias.gospelmais.com.br/facebook-deleta-pagina-maes-opoem-drag-queens-136139.html. Acesso em: 16 jun. 2020.

Gospel Mais. Drag queen vestida de demônio é escolhida para pregar ideologia de gênero a crianças. Disponível em: https://noticias.gospelmais.com.br/drag-queen-demonio-ideologia-de-genero-criancas-93381.html. Acesso em: 16 jun. 2020.

Gospel Mais. Facebook censura conservadores. Disponível em: https://noticias.gospelmais.com.br/?s=facebook+censura+conservadores. Acesso em: 16 jun. 2020.

Life Site News. Facebook again deletes moms’ group dedicated to ending drag queen story hours. Disponível em: https://www.lifesitenews.com/news/facebook-again-deletes-moms-group-dedicated-to-ending-drag-queen-story-hours. Acesso em: 16 jun. 2020.

BBC News Brasil. O que acontece quando drag queens que contam histórias a crianças chegam às regiões mais religiosas dos EUA. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-47319841. Acesso em: 16 jun. 2020.

G1. Drag queens leem histórias a crianças em livrarias e escolas dos EUA para incentivar respeito à diversidade. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/11/16/drag-queens-leem-historias-a-criancas-em-livrarias-e-escolas-dos-eua-para-incentivar-respeito-a-diversidade.ghtml. Acesso em: 16 jun. 2020.

Drag Queen Story Hour. Site oficial da iniciativa “Drag Queen Story Hour”. https://www.dragqueenstoryhour.org/. Acesso em: 16 jun. 2020.

Instagram. Perfil Drag Queen Xochi Mochi https://www.instagram.com/p/BaPjGQyH6Q0/?utm_source=ig_embed. Acesso em: 16 jun. 2020.

Facebook. Grupo Drag Queen Strong. https://www.facebook.com/500DragQueenStrong. Acesso em: 16 jun. 2020.

Facebook. Grupo 500 Mom Strong. https://www.facebook.com/groups/2294300754231749. Acesso em: 16 jun. 2020.

G1. Drag queens: a história da arte por trás de homens vestidos de mulher. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/drag-queens-a-historia-da-arte-por-tras-de-homens-vestidos-de-mulher.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2020.

UOL Universa. Mulher Drag Queen. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/especiais/mulher-e-drag-queen#mulher-drag-queen. Acesso em: 17 jun. 2020.