“Congresso Americano” não enviou carta com cobranças a ministro do STF do Brasil

Parlamentares brasileiros e outros políticos alinhados ao extremismo de direita no País divulgaram, no final de junho, em viagem aos Estados Unidos, uma carta que denuncia supostas violações aos direitos humanos de brasileiros conservadores. Tal documento seria uma resposta ao apoio dado a eles pelo Congresso Americano. 

O grupo de brasileiros se articulou com parlamentares da direita estadunidense para denunciar as supostas violências contra quem denominam “cidadãos conservadores”. O grupo alega que brasileiros estariam sofrendo ataques aos direitos humanos, em grande escala, cometidos por autoridades brasileiras.  A carta, datada de 21 de junho passado, foi divulgada em perfis de mídias sociais no Brasil, e é dirigida ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, com a demanda que ele responda às perguntas feitas pelo autor, o  congressista estadunidense Chris Smith. 

Imagem: reprodução/X (antigo Twitter)

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A divulgação deste conteúdo provocou muitos debates nas redes em torno da validade de uma tentativa de ingerência do “Congresso Americano” em uma instituição do Estado brasileiro.  Bereia checou a informação. 

Quem é o deputado estadunidense Chris Smith 

Chris Smith é um deputado do Partido Republicano, representante do Estado de Nova Jersey, no Congresso dos Estados Unidos. Ele integra o Subcomitê de Direitos Humanos da Comissão de Relações Internacionais da Casa dos Representantes

Em 7 de maio, Smith recebeu uma comitiva de parlamentares e outras personagens políticas do Brasil, publicamente identificados com o extremismo de direita, do Brasil para uma audiência que promoveu em uma das comissões do Congresso. Na ocasião, foi discutido o relatório produzido no âmbito da Comissão a que Chris Smith pertence, com o título “O ataque à liberdade de expressão e o silêncio do governo Biden: o caso do Brasil”.

Nesse relatório, os governos do Brasil e dos Estados Unidos são acusados de buscar silenciar críticos nas redes sociais. O conteúdo foi divulgado logo após as críticas publicadas pelo proprietário da rede X, o megaempresário Elon Musk, com o questionamento das decisões do STF, localizadas apenas no  ministro Alexandre de Moraes. O STF havia determinado a suspensão de contas que promovem informações falsas, em especial contra o processo eleitoral brasileiro.

A carta enviada pelo deputado Chris Smith foi dirigida ao ministro do STF, responsável pelos inquéritos de ataques democracia desde 2020 (fake news e invasão dos prédios em Brasília em 8 de janeiro de 2023). 

Imagens: reprodução/X

Entre as questões levantadas na carta constam alegações de censura prévia a jornalistas e outras figuras públicas. Além disso, questiona ações governamentais que poderiam ter cerceado a liberdade de imprensa, como congelamento de ativos financeiros e outras restrições civis.

Smith contesta processos e medidas cautelares exigidas a membros do Parlamento brasileiro em função de suas responsabilidades legislativas. A carta também destaca o cumprimento devido ao processo legal em investigações e processos contra indivíduos, incluindo aqueles que residem nos Estados Unidos.

O documento, ainda, levanta questões sobre possíveis casos de punições transnacionais, em que agências dos EUA ou outras organizações internacionais estariam perseguindo indivíduos em território americano. 

A comitiva recebida por Chris Smith 

Nos meses de março e maio deste ano, uma comitiva de parlamentares e outras personagens políticos alinhadas à extrema direita no Brasil viajou aos Estados Unidos. O objetivo foi a busca de apoio de parlamentares afins, contra as investigações na Suprema Corte brasileira, a que alguns deles e apoiadores estão submetidos, nos casos de ataques à democracia no País. Em março, o grupo defendeu a existência de uma “ditadura de esquerda” no país e tentou convencer os parlamentares do Partido Republicano de que o Brasil não é mais uma democracia.

A comitiva propôs que os congressistas estadunidenses aprovem uma lei que penalize as autoridades brasileiras, o que seria justificado diante do que alegam ser uma violação dos direitos de conservadores. O grupo pediu, ainda, que o governo estadunidense aplique sanções ao Brasil, para que a suposta “ditadura de esquerda” seja derrotada.

Imagem: reprodução/UOL

Na nova visita da comitiva de brasileiros, em maio, ocorreu a audiência na Comissão de Relações Internacionais. Viajaram para os Estados Unidos a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Rodrigo Valadares (União-SE), Nikolas Ferreira (PL-MG), Gustavo Gayer (PL-GO), Marcos Pollon (PL-MS), Filipe Barros (PL-PR), Cabo Gilberto Silva (PL-PB),  Marcel van Hattem (Novo-RS), Messias Donato (Republicanos-ES) e Coronel Ulysses (União-AC), mais o senador Eduardo Girão (Novo-CE). 

Além dos parlamentares, participaram da audiência o ex-comentarista da TV Jovem Pan Rodrigo Constantino, o blogueiro foragido da Justiça brasileira Allan dos Santos e o ex-procurador Deltan Dallagnol (NOVO), eleito deputado federal pelo Podemos, em 2002, mas cassado em 2023, por irregularidades na campanha eleitoral.

O grupo também participou de reuniões mobilizadas pelo Conservative Caucus, uma fundação que reúne cidadãos alinhados ao conservadorismo político, para fazer “lobby” com congressistas americanos para aprovar leis e invalidar “gastos de iniciativas da esquerda”.  

Comitiva de oposição 

O objetivo inicial da comitiva de extremistas de direita do Brasil acabou sendo frustrado por articulações do deputado democrata Jim McGovern, que divide a presidência da Subcomissão de Direitos Humanos da Comissão de Relações Internacionais do Congresso estadunidense com o deputado republicano Chris Smith, e deu outro tom às discussões da audiência. 

McGovern não compareceu à audiência, mas enviou uma declaração. No texto, acessado pela Agência Pública, o deputado classifica a audiência como um “uso vergonhoso” do Congresso dos Estados Unidos pela extrema direita brasileira “para amplificar seu ataque à democracia no Brasil, auxiliado e encorajado por membros do Partido Republicano”. 

A contraofensiva por deputados do Partido Democrata deveu-se à visita de outra comitiva de brasileiros, de oposição à outra, esta de parlamentares de esquerda. A viagem ocorreu entre 29 de abril e 2 de maio,  formada pelos deputados federais Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Rogério Correia (PT-MG), Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Rafael Brito (MDB-AL), e pelos senadores Humberto Costa (PT-PE) e Eliziane Gama (PSD-MA). 

Eliziane Gama, líder do grupo, afirmou que a ida ao país teve como objetivo “desconstruir a ideia errada, que o campo da extrema direita no Brasil tem tentado pregar mundo afora, de que o Brasil está passando por uma censura e caminhando para uma ditadura”. A senadora considera que a ação alterou o rumo da audiência. “Acho que acabou sendo frustrante para eles [a comitiva da direita]”.

O senador Humberto Costa, explicou à Agência Pública que o grupo  “explicou pra eles que no Brasil [o conceito de liberdade de expressão] é diferente. Aqui no Brasil, por exemplo, você não pode fazer discurso a favor do racismo e dizer que é liberdade de expressão. Você não pode defender ideias nazistas. Você não pode defender crimes. Não dá pra fazer essa comparação da legislação brasileira com a legislação americana. Essas pessoas estão sendo processadas e estão tendo as suas redes sociais bloqueadas porque estão cometendo crimes no Brasil”.

A carta de Chris Smith tem valor jurídico?

Apesar da repercussão com a divulgação da carta de Chris Smith, por perfis extremistas de direita, o que serve de pressão sobre a Corte, o especialista em Direito Internacional Professor Guilherme Bystronski, ouvido pelo Bereia, esclarece que, ao contrário do que se quer parecer crer, o documento  não tem efeito prático algum. 

Segundo Bystronski, “na medida em que o Brasil é país soberano, nossos poderes constituídos não podem ser objeto de quaisquer atos de constrição determinados por agentes de outros países”.  Como os EUA não têm jurisdição sobre o Brasil ou sobre um agente público,  a carta de um congressista americano tem o mesmo valor de uma carta que qualquer outra pessoa enviasse para algum ministro do STF, e pode ser  prontamente desconsiderada pelo ministro do STF, ao qual foi dirigida, Alexandre de Moraes, explicou o professor.

O especialista em jurisprudência penal, professor Caio Paiva, também reforça que os EUA não são uma instância internacional e que o poder judiciário brasileiro não está submetido em nenhum sentido a autoridades deste país. Em publicação na rede X, que questionou a divulgação da carta por Deltan Dallagnol, como pessoa que conhece as leis, Paiva afirma:

“Na prática, a intimação de um congressista americano com questionamentos para o Ministro Alexandre de Moraes tem o mesmo valor que uma intimação de um vereador de Osasco: nenhuma. Os EUA não exercem qualquer jurisdição sobre o Brasil. O ministro Alexandre de Moraes não tem capacidade jurídica de pessoa internacional. O Estado brasileiro, sim, pode ser processado em instâncias internacionais (os EUA não são uma delas). Na história, associar os EUA como ‘polícia do mundo’ representa uma rendição ao imperialismo. Por fim, o entusiasmo de Deltan contradiz um princípio caro até mesmo para o conservadorismo-nacionalista: ceder a outro país poder sobre Poder Judiciário nacional.”

Imagem: reprodução/X

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Bereia classifica o conteúdo da divulgação da carta emitida pelo deputado dos Estados Unidos Chris Smith, em mídias de políticos alinhados ao extremismo de direita no Brasil, como enganoso. A carta é verdadeira e foi, de fato, enviada por Smith, porém, quem divulga o conteúdo atribui à carta  um valor simbólico ou legal que ela não tem e induz o público ao engano.

Bereia alerta leitores e leitoras para este tipo de ação nas redes. A repercussão da carta do congressista dos EUA  pode ser caracterizada como uma estratégia de ativismo político-judicial, ser instrumentalizada para fins políticos, para colocar pressão sobre o STF, para objetivos particulares serem alcançados. Isto já era praticado anteriormente, como Bereia já checou em várias matérias, o que envolve as mesmas personagens, e reforça o alerta para o que ocorre em ano eleitoral. 

Referências de checagem:

Uol Notícias

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/06/21/congressista-dos-eua-manda-carta-a-moraes-cobrando-por-abusos-apontados-por-bolsonaristas.htm Acesso em 28 JUN 24

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/05/27/camara-pagou-pelo-menos-r-528-mil-a-deputados-que-foram-aos-eua-denunciar-censura-de-moraes.htm

Acesso em 28 JUN 24

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-publica/2024/04/11/como-eduardo-bolsonaro-e-comitiva-articulam-com-parlamentares-dos-eua-punicoes-ao-brasil.htm Acesso em 02 JUL 24

Carta Capital

https://www.cartacapital.com.br/politica/deputado-r epublicano-dos-eua-manda-carta-a-moraes-e-pede-resposta-em-ate-10-dias/ Acesso em 28 JUN 24

Aos Fatos

https://www.aosfatos.org/noticias/satira-congresso-eua-afastamento-alexandre-de-moraes/ Acesso em 28 JUN 24

Metrópoles

https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/camara-estados-unidos-aciona-oea-sobre-decisoes-de-moraes Acesso em 28 JUN 24

https://www.metropoles.com/brasil/comite-da-camara-dos-eua-divulga-relatorio-que-acusa-moraes-de-censura Acesso em 28 JUN 24

Agência Pública

https://apublica.org/2024/04/como-eduardo-bolsonaro-e-comitiva-articulam-com-parlamentares-dos-eua-punicoes-ao-brasil/ Acesso em 01 JUL 24

https://apublica.org/2024/05/ditadura-de-esquerda-governistas-e-bolsonaristas-celebram-desfecho-de-audiencia-no-congresso-dos-eua/ Acesso em 01 JUL 24

Foreign Affairs Committe

https://foreignaffairs.house.gov/ Acesso em 01 JUL 24

https://chrissmith.house.gov/biography/ Acesso em 01 JUL 24

Brasil de Fato

https://www.brasildefato.com.br/2024/04/12/como-eduardo-bolsonaro-e-comitiva-articulam-com-parlamentares-dos-eua-punicoes-ao-brasil Acesso em  JUL 

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Foto de capa: Natalia FaLon/Pixabay