A diversidade religiosa no país vem se consolidando a cada década de acordo com os censos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e isso merece reflexão sobre o universo religioso no país e os desdobramentos que esse cenário indica. A opinião é da editora-geral do Coletivo Bereia Magali Cunha, que participou do Programa CBN Rio, da Rádio CBN, em 6 de junho, para falar dos dados preliminares do Censo de 2022..
Apesar de a entrevista focar os dados referentes ao Estado do Rio de Janeiro e à capital fluminense, Magali Cunha lembrou que as tendências observadas ali acompanham o que acontece no país. “Há um decréscimo de católicos e um aumento de evangélicos, mas chama atenção o crescimento da pluralidade religiosa”.
A pesquisadora usou o termo “mosaico religioso” para lembrar que essa pluralidade vem se fortalecendo, com a presença de novos atores. Os dados do Censo de 2022 revelaram “uma presença mais significativa das populações de matriz africana, espíritas, que também querem garantir seu direito à religião, seu espaço religioso, e isso também vai ser amplificado nos números”, destacou Magali Cunha.
Sem religião
A editora-geral do Bereia salientou que outro grupo que vem se consolidando é o dos sem religião. Os dados preliminares coletados pelo IBGE apontam que esse segmento está em segundo lugar no cenário do Rio de Janeiro, à frente dos espíritas e atrás apenas dos evangélicos. “Os sem religião estão em um crescendo, e o Rio de Janeiro se revela com os maiores números”, afirmou a pesquisadora.
O Rio de Janeiro vem se mostrando uma cidade mais evangélica e com menos católicos, conforme os últimos três levantamentos. Segundo Magali Cunha, entre as explicações está o fato de que a cidade é sede de importantes grupos evangélicos, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Além disso, acrescenta, os evangélicos vêm marcando presença na cena pública, como na cultura e na política, cenário que durante muito tempo foi marcado pela preponderância católica.
Censo 2022 mostra queda do catolicismo, avanço mais lento dos evangélicos e crescimento de tradições afro e dos sem religião
*Matéria atualizada às 17:25h para correção de informações.
O Brasil continua movimentando as peças do seu mosaico religioso, como revela os dados preliminares do Censo Brasil de 2022 divulgados pelo IBGE, no último 6 de junho. O número de católicos segue em queda, os evangélicos ainda avançam, mas em ritmo mais lento do que se previa, e os brasileiros que se declaram sem religião continuam a crescer. Ao mesmo tempo, religiões de matriz africana registraram um salto expressivo de autodeclaração, um movimento com forte significado social e simbólico.
Para a editora-geral do Bereia e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Magali Cunha, os números apontam para tendências de longa duração que agora se consolidam, com nuances importantes. “Precisaremos ainda discutir, estudar e refletir muito sobre esses dados, mas ao menos num primeiro olhar quatro aspectos chamam bastante a atenção”, analisou.
Tendências que se confirmam
O primeiro aspecto é a confirmação de tendências já observadas nos Censos anteriores: declínio do catolicismo, avanço dos evangélicos e crescimento dos sem religião.
Em 2022, 56,7% da população brasileira se declarou católica, uma queda em relação a 65,1% em 2010. Embora continue sendo a maior confissão religiosa do país, o catolicismo segue em declínio desde os anos 1950.
Os evangélicos chegaram a 26,9% da população (47,4 milhões de pessoas). É um crescimento expressivo, mas com um ritmo menor do que em décadas anteriores, frustrando previsões que indicavam que o segmento ultrapassaria rapidamente os 30% e superaria os católicos.
Já os brasileiros que se declaram sem religião somam 12% da população, grupo que cresce de forma constante desde os anos 2000 e que hoje se manifesta com mais liberdade, especialmente entre os jovens. “Há uma relação direta com o fim de uma pressão cultural para se declarar católico por tradição. Hoje, vemos um número expressivo de jovens, entre 15 e 29 anos, dizendo que não têm religião. Isso é muito significativo”, aponta Magali Cunha.
Afrorreligiosos ganham visibilidade
O segundo destaque é o crescimento da autodeclaração de pertencimento às religiões de matriz africana. No Censo 2022, esses grupos passaram de 0,3% para 1% da população, um aumento de mais de 200%.
Esse salto tem profundo significado simbólico e social. “Por muitas décadas era muito difícil que uma pessoa de religião de matriz africana manifestasse publicamente sua fé, por medo de intolerância, racismo religioso e perseguição”, afirma Magali Cunha.
Apesar de dados recentes apontarem o crescimento da intolerância religiosa no país, de acordo com a pesquisadora, políticas de afirmação da população negra, como as cotas raciais e o ensino da história da África nas escolas, contribuem para que as pessoas se sintam mais seguras e afirmem sua identidade religiosa. “Há um movimento crescente de afirmação tanto da cor quanto da fé. O aumento de 1% reflete isso.”
Crescimento evangélico desacelera
Entre os temas que mais chamaram atenção no debate público sobre os dados está a desaceleração no crescimento dos evangélicos, frustrando expectativas de alguns analistas. Embora tenham alcançado a marca de 26,9% da população brasileira, o ritmo de crescimento do segmento evangélico desacelerou em relação às décadas anteriores, contrariando expectativas de que o segmento se tornaria maioria no país em pouco tempo.
“Houve uma superestimativa do crescimento evangélico, sem levar em conta a realidade complexa do campo religioso”, alerta Magali Cunha.
A “goleada” do crescimento evangélico – como se referiu o demógrafo José Eustáquio Alves em entrevista à Folha de S.Paulo – foi observada apenas no período entre os anos 1990 e 2000, quando o avanço chegou a 6,5% ao ano. A partir de 2010, no entanto, já era perceptível uma desaceleração, agora confirmada pelos dados mais recentes.
Segundo Cunha, vários fatores explicam o atual cenário, um deles é a própria fragmentação interna do campo evangélico, caracterizado por um forte denominacionalismo. “São grupos que ampliam seu número de templos e comunidades, mas com alto índice de divisão e instabilidade. Muitas igrejas novas se formam a partir de rupturas em comunidades já existentes, e nem todas se consolidam”, explica.
Outro elemento que pesa é o impacto da politização crescente nas igrejas evangélicas, especialmente após 2018, com a aliança explícita de lideranças do campo pentecostal e de parte do segmento tradicional com o então candidato Jair Bolsonaro. Segundo a diretora-executiva do ISER Ana Carolina Evangelista, essa politização foi marcada por campanhas intensas dentro dos templos e no ambiente digital, com uso sistemático de desinformação e pânico moral, fenômeno que, embora tenha mobilizado eleitores evangélicos, também gerou tensões internas e afastamento de fiéis.
“Temos identificado, a partir de indícios em pesquisas qualitativas e observação empírica, que começa a existir uma espécie de desgaste de um tipo de cristianismo entre os próprios evangélicos”, afirma a diretora em entrevista a BBC Brasil.
Além do uso político dos templos evangélicos, com seu ápice nas eleições de 2022, “houve perseguição a membros com preferências políticas divergentes, o que provocou desligamento e esfriamento da relação de muitos com suas comunidades religiosas”, explica Magali Cunha.
Outro ponto que contribuiu para o desgaste da imagem das lideranças e comunidades religiosas é o frequente uso de grupos de WhatsApp de igrejas com o objetivo de mobilizar fiés para projetos políticos explícitos, além da flagrante circulação de desinformação como Bereia tem acompanhado.
Para a editora-geral do Bereia, o resultado do Censo mostra que o campo evangélico brasileiro permanece em expansão, mas enfrenta desafios estruturais e culturais que limitam o crescimento indefinido. “Não basta projetar crescimento linear com base em números. É preciso considerar as dinâmicas internas, os conflitos, as divisões e o impacto da politização. O Censo de 2022 nos lembra que números não falam sozinhos”, conclui.
Os principais veículos de comunicação no Brasil repercutiram dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e apresentaram uma análise comparativa entre a quantidade de templos religiosos e instituições de ensino e de saúde, no início de fevereiro.
As matérias jornalísticas enfocaram o número maior de estabelecimentos religiosos em relação à soma dos estabelecimentos de ensino e de saúde, e apresentaram outros aspectos da pesquisa de forma secundária. A abordagem ganhou repercussão política nacional, em mídias mais à direita e à esquerda, assim como em portais regionais, que aplicaram recortes da informação difundida.
Figuras públicas e ativas nas mídias sociais também sustentaram a mesma abordagem dos dados e chegaram a questionar a secularidade e colocar a laicidade do Estado brasileiro em questão. Em contrapartida, pesquisadores da religião apontaram inconsistências nesta interpretação dos dados.
Censo 2022: dados e informações divulgados pelo IBGE
O IBGE divulgou, pela primeira vez, as coordenadas geográficas das espécies de endereços do país, coletadas durante o Censo 2022. Os dados foram detalhados por município e cada espécie corresponde a uma finalidade do endereço.
Imagem: reprodução do site do IBGE
Ao todo, foram catalogadas oito espécies de endereço: domicílio particular (90,6 milhões), domicílio coletivo (104,5 mil), estabelecimento agropecuário (4,05 milhões), estabelecimento de ensino (264,4 mil), estabelecimento de saúde (247,5 mil), estabelecimento de outras finalidades (11,7 milhões), edificação em construção (3,5 milhões) e estabelecimento religioso (579,8 mil).
Os dados coletados e estruturados pelo IBGE integrarão o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), a base de endereços usada no Censo Demográfico, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS).
Após a divulgação oficial pelo IBGE, diversos veículos da mídia repercutiram os dados, apontando, principalmente em manchetes, a diferença entre o número de estabelecimentos religiosos e o número de estabelecimentos de educação e de saúde.
O jornal Folha de S. Paulo veiculou, já na manhã de 2 de fevereiro, a manchete “Brasil tem mais espaços religiosos do que de educação e saúde juntos, aponta Censo”. O portal G1, por sua vez, publicou: “Brasil tem mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos; Região Norte lidera com 459 para cada 100 mil habitantes”.
Imagem: reprodução Folha de São Paulo
Imagem: reprodução G1
Foi assim, também, com a Revista Exame (“Censo 2022: Brasil tem mais igrejas e templos do que escolas e hospitais somados”), com o portal UOL (“Censo: Brasil tem mais igrejas que soma de escolas e hospitais”) e diversos outros sites. A Agência Brasil, que integra o sistema público de comunicações, também optou por destacar a comparação: “Brasil tem mais estabelecimentos religiosos que escolas e hospitais”.
Imagem: reprodução Exame
Imagem: reprodução UOL
Alguns intelectuais e pensadores brasileiros divulgaram os dados nos mesmos termos, sempre comparando o número de estabelecimentos seculares e religiosos. Em alguns casos, as publicações, em mídias sociais, adotaram tom crítico à configuração de endereços. Em seu perfil no X, o professor e pesquisador do Pietro Dell’ova associa os dados à “multiplicação de stalinistas, bolsonaristas, miseráveis, moribundos, etc.”. A doutora em literatura em língua inglesa e professora da UFC (Universidade Federal do Ceará) Lola Aronovich compartilhou, também, no X, a notícia com o comentário “sinal de atraso”.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Já a antropóloga Lilia Schwarcz, em seu perfil no Instagram, teceu comentários sobre o dados e comparou o cenário brasileiro com o da Europa ocidental: “Tais dados ajudam a demonstrar como, na prática, como o Brasil, apesar de ser formalmente um estado secular, não é ainda um país pouco secularizado quando comparado a outros, como na Europa ocidental”, escreveu.
Críticas à cobertura enviesada
O teólogo, mestre em filosofia e em religião e sociedade e diretor de programas no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Ronilso Pacheco questionou, em seu perfil no X/Twitter, a cobertura dos dados pela imprensa: “O Reino Unido tem mais templos que escola e hospitais. A França tem mais igrejas que escolas. Porque esse dado básico está sendo noticiado como surpreendente?” indagou.
Imagem: reprodução X (antigo Twitter)
Em sua crítica à forma como a imprensa tratou os dados do IBGE, Pacheco reflete: “Analistas políticos e comentaristas passaram o dia comentando isso como se fosse razoável achar que para cada templo (não apenas de igreja) que se abre, uma escola e um hospital deixam de ser construídos ou perdem investimento, ou relevância. Além disso, claro, o reforço do estereótipo de que as igrejas crescem porque o estado é ausente. Mais uma vez, vitória da ideia elitista de que as pessoas na periferia só são crentes porque são pobres e não tem assistência do estado, não é mesmo?”.
Em entrevista ao Bereia, o pesquisador no Instituto de Estudos da Religião (ISER) e professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV ECMI) Matheus Pestana também criticou a forma como os dados foram explorados na mídia. “O número de pessoas que acessa um hospital, uma escola, tem interseções com o público que acessa os estabelecimentos religiosos, mas são coisas completamente distintas e incomparáveis. No meu entender, o equívoco está aí. É uma comparação que, para mim, não fez sentido nenhum, nenhum. São estabelecimentos de natureza distinta”, afirmou.
Pestana destaca a importância dos dados compilados pelo IBGE na construção de políticas públicas: “É importante entender que esses dados são bastante valiosos para o poder público no desenho de políticas públicas. São dados que vão delinear a ação do governo, em auxílio à população e à configuração urbana existente (…). Na maioria dos municípios, isso era um dado que não existia. Os dados são ótimos. É louvável a iniciativa do IBGE.”
Mas o pesquisador reforça que o entendimento dos dados “de forma alarmante” é equivocado: “Se tivermos 500 mil igrejas e 300 mil escolas, vamos construir mais 200 mil escolas para equiparar ao número de igrejas? Isso não faz sentido. Isso vai mudar alguma coisa? Efetivamente, não. A gente esquece que o público que vai para a escola também vai para a igreja; o público que vai para a igreja, frequenta hospital; só que em questão de volume, são coisas completamente distintas. Escolas, por exemplo, concentram algumas faixas etárias; igrejas contemplam todo o segmento da sociedade Enfim, não faz sentido”.
O pesquisador e professor também abordou a questão da laicidade, levantada por algumas figuras públicas nas mídias sociais. “Alguns comentaristas disseram que, apesar de o Brasil ser, formalmente, um Estado secular, quando a gente compara com outros países – e o exemplo, claro, vem do Norte global – é um país pouco secularizado porque tem muita igreja. Isso não faz sentido.”
Por fim, Pestana aborda as tendências recentes no que diz respeito ao confessionalismo na população brasileira. Em sua percepção, alguns comentaristas teriam conectado os dados do IBGE com o crescimento de grupos evangélicos no país, algo que não necessariamente seria verdadeiro.
“Existem estudos que falam do crescimento dos estabelecimentos evangélicos, mas isso é outra coisa, não está sendo pautado [pelos dados recém-divulgados pelo IBGE]. Essa repercussão é bastante curiosa e mostra, de certa forma, um ataque da mídia ao campo religioso e um não entendimento do brasileiro enquanto um povo com uma dinâmica religiosa que a gente tem. Na verdade, isso não tem problema nenhum. Religião é cultura também e é algo importante de ser considerado”, afirma Matheus Pestana
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Após avaliar a cobertura da imprensa e a abordagem amplamente difundida nas mídias sociais sobre os dados do IBGE segmentados por espécies de endereço, Bereia classifica o viés adotado como impreciso. De maneira geral, as notícias e declarações sobre o tema apresentam dados verdadeiros, mas não consideram diferentes perspectivas e não contextualizam o fenômeno religioso no Brasil de modo a justificar a abordagem adotada.
O IBGE não fornece conclusões de qualquer natureza ou mesmo indícios de que os dados expliquem o cenário da religião no Brasil. A abordagem amplamente difundida nos meios digitais de comunicação pode levar o público a julgamentos errôneos sobre determinados grupos, instituições, organizações, associações ou movimentos sociais e constituir fonte de intolerância.