Após perda de mandato de Dallagnol, políticos religiosos propagam narrativa enganosa de perseguição

* Matéria atualizada em 29/05/2023 para correção de informações

No último 16 de maio, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou, por unanimidade, o registro da candidatura a deputado federal de Deltan Dallagnol (Podemos-PR), enquadrando-a na Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/2010) . A decisão teve como consequência a perda do mandato por parte do ex-coordenador da Operação Lava-Jato em Curitiba.

Nos dias subsequentes, Deltan Dallagnol e outros políticos, que se utilizam da religião como plataforma política, manifestaram-se nas redes digitais de maneira contrária à decisão do TSE, alimentando um discurso religioso de perseguição.

Bereia apurou os acontecimentos recentes e os analisou a partir dos fatos, da legislação vigente e da opinião de especialistas, muitos dos quais também se manifestaram em plataformas digitais.

Deltan Dallagnol perde mandato de deputado federal

A federação partidária Brasil da Esperança, que reúne os partidos PT, PCdoB e PV, junto com o PMN, promoveu ação, no TSE, sobre a regularidade da candidatura de Dallagnol, argumentando que sindicâncias e reclamações disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) contra o ex-procurador o impediam de deixar a carreira de procurador da República.

Segundo a Lei da Ficha Limpa, membros do Ministério Público (como Deltan Dallagnol) ficam inelegíveis por oito anos se pedirem exoneração ou aposentadoria voluntária enquanto tramitarem processos administrativos disciplinares. O relator do caso, ministro do TSE Benedito Gonçalves, entendeu que Deltan Dallagnol, ao pedir a exoneração para concorrer ao cargo de deputado federal, buscou se esquivar da regra que poderia torná-lo inelegível.

Estavam em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público 15 procedimentos administrativos de variada natureza que poderiam resultar em Processo Administrativo Disciplinar (PAD) e, possivelmente, na aposentadoria compulsória ou na perda do cargo de procurador por Dallagnol. O então procurador teria pedido exoneração para evitar que esses procedimentos se tornassem PADs, o que o impediria de se candidatar.

Gonçalves destacou, em seu voto, que, como consequência do pedido de exoneração, “todos esses procedimentos (…) foram arquivados, extintos ou mesmo paralisados, e, como se verá, a legislação e os fatos apurados poderiam perfeitamente levá-lo à inelegibilidade”. Em outro trecho, o ministro afirmou que “o pedido de exoneração teve propósito claro e específico de burlar a incidência da inelegibilidade”.

Interpretação extensiva e controvérsia sobre cassação

A perda do cargo de Deltan Dallagnol ensejou uma série de debates acerca da decisão do TSE e do voto do ministro Benedito Gonçalves. Juristas, acadêmicos e jornalistas repercutiram uma possível controvérsia na interpretação dos fatos concretos à luz do que prevê a Lei da Ficha Limpa. Isto porque a lei seria clara ao dizer que a inelegibilidade se dá nos casos em que a exoneração acontece “na pendência de processo administrativo disciplinar”, o que não era o caso quando Deltan se exonerou.

O advogado e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal da Abracim-SP, Marcelo Aith, em artigo de opinião para o site Consultor Jurídico, aponta que “embora entenda que as condutas de Deltan sejam deploráveis diante do cargo que ocupava (…) não há menção expressa em relação aos procedimentos preparatórios”, em referência aos 15 procedimentos administrativos em curso no CNMP. Para Aith, a interpretação da lei deveria ser feita de modo restritivo, já que há em jogo uma sanção.

Em editorial, o jornal Folha de São Paulo manifestou contrariedade à cassação de Dallagnol: “Neste universo em que vivemos, o Judiciário deveria se guiar não por hipóteses, mas por fatos. E os fatos são simples: não havia nenhum PAD contra Deltan no momento de sua exoneração, e a lei menciona de maneira explícita justamente esse tipo de processo”. O texto do jornal destaca que “As regras, para terem o respeito de todos, não podem se dobrar ao sabor das circunsâncias”. 

Entretanto, as avaliações sobre o caso não são unânimes. A doutora e mestre em Direito do Estado Letícia Kreuz veiculou, nas plataformas digitais, considerações sobre a Lei da Ficha Limpa e a cassação de Dallagnol. Para Kreuz, o voto de Gonçalves “é ruim e abre uma porteira bizarra, com precedentes perigosos”, mas há motivos para a cassação, como o fato de o ex-procurador ter requerido a suspensão de sanções que recebeu em PADs, fazendo com que tais PADs continuassem em tramitação e tornando, de fato, Dallagnol inelegível.

Para o PhD em Direito, Política e Sociedade Fábio de Sá e Silva, com estudos sobre a Operação Lava Jato e seus efeitos, que também veiculou considerações nas mídias digitais, a decisão de cassar o mandato de Dallagnol não se fundamentou na pendência de PAD, mas no cometimento de fraude por parte de Dallagnol. Silva destaca, ainda, que “a decisão do TSE oferece um incentivo correto contra a instrumentalização da magistratura e do MP para fins de construção de carreiras políticas. Se juízes e procuradores/promotores querendo aparecer começam a cometer abusos, serão alvos de representações”.

Imagem: reprodução do Twitter

O portal ConJur veiculou, no dia seguinte à cassação, a opinião de diversos especialistas sobre o caso, que consideraram a atuação do TSE “coerente e adequada”. Para o membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) Carlos Medrado, ouvido pelo portal, “A fraude é sempre de difícil demonstração. E foi no conjunto de indícios e presunções, como autoriza o artigo 23 da Lei das Inelegibilidades, que o ministro formou convicção, acompanhado, aliás, por todos os outros integrantes do TSE”. O referido artigo diz que o tribunal formará sua convicção a respeito da inelegibilidade a partir de uma livre apreciação dos fatos públicos e notórios, “ainda que não indicados  ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

Defesa de Dallagnol e aceno ao eleitorado cristão

Após perder o cargo de deputado federal, Deltan Dallagnol passou a se dizer vítima de uma perseguição. Em pronunciamento à imprensa, disse que foi cassado por uma “inelegibilidade imaginária”. “Existia algum processo administrativo disciplinar? Não. Nenhum. Zero. Mas eles construíram suposições”, alegou.

Imagem: reprodução do Twitter

Na mesma ocasião, Dallagnol afirmou: “como muitos cristãos ao longo da história, quando parecia que eles tinham tomado um tombo e que era o fim, na verdade aquilo era um novo começo”. Os acenos ao eleitorado cristão continuaram, inclusive com referência a diversas passagens bíblicas.

Ainda, em nota divulgada via Twitter, Dallagnol declarou: “Meu sentimento é de indignação com a vingança sem precedentes que está em curso no Brasil contra os agentes da lei que ousaram combater a corrupção. Mas nenhum obstáculo vai me impedir de continuar a lutar pelo meu propósito de vida de servir a Deus e ao povo brasileiro”.

Imagem: reprodução do Twitter

Segundo matéria de O Globo, alguns parlamentares fizeram coro à ideia de “perseguição política”. Entre os políticos que saíram em defesa de Deltan Dallagnol, muitos têm no eleitorado cristão sua principal base de apoio. Os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Nikolas Ferreira (PL-MG) e André Fernandes (PL-CE) criticaram a cassação de Dallagnol e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) disse que estava “orando” pelo parlamentar cassado.

Em 20 de maio, o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) e Deltan Dallagnol participaram da Marcha para Jesus, em Curitiba, como noticiou o portal Poder 360. Moro, em discurso posteriormente compartilhado em suas redes digitais, fala em “gigantesca injustiça” e faz um apelo aos fiéis presentes: “Queria pedir para vocês orações, não só para que nós possamos ter justiça na Terra em relação ao Deltan, mas também para afastar as sombras dos corações e mentes de Brasília.

Sérgio Moro e Deltan Dallagnol discursam durante Marcha para Jesus, em Curitiba

Imagem: reprodução do Twitter

Desde 2021, Bereia produz materiais informativos acerca da relação estreita entre religião e política no Brasil. A falsa narrativa de perseguição a cristãos já foi destaque em checagem e Bereia já produziu, também, conteúdo sobre a desinformação envolvendo a chamada “cristofobia”.  A plataforma Religião e Poder, iniciativa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), produz reportagens e estudos que contribuem para o debate sobre a temática.

Pastor condena discurso religioso de perseguição

Bereia ouviu o pastor e advogado da Igreja Evangélica de Confissão Luterana em Curitiba Walter Schenkel sobre o uso do discurso religioso que caracteriza perseguição ao ex-procurador batista Deltan Dallagnol. Ele avalia que não há perseguição como se apregoa. “Temos que entender que vivemos em um país laico, de maioria cristã. Dificilmente se vai encontrar uma pessoa no Brasil sofrendo por ser cristã. Ainda mais uma pessoa pública como ele. Dificilmente Dallagnol sofreria por ser cristão, pois conhece as leis, ou deveria conhecê-las, e sabe se defender”.

Schenckel se contrapõe, ainda, à consideração de que o ex-procurador sofre censura e perseguição política e ideológica. “Ao chegar em Curitiba [depois de ter o seu registro de candidatura cassado], Dallagnol subiu em um carro de som; dois dias depois esteve na Marcha para Jesus e fez uso da palavra; no domingo, convocou um ato de defesa do mandato dele. Quem sofre censura, perseguição política, não poderia conduzir tais atos”.

O pastor luterano, evocando a Bíblia, conclui: “Tem uma passagem que diz ‘Todos carecem da glória de Deus. Todos somos pecadores’. (…) Enquanto vivermos como cidadãos especiais, com uma imagem de estarmos acima de outros porque somos cristãos, ou de nos fazermos mártires, colocando-nos no papel de vítimas, quando na verdade, somos causadores da própria desgraça, nós estamos, não só enganando a população, como desfazendo do próprio Evangelho. Porque, nesse caso, Dallagnol usa a palavra de Deus para produzir uma defesa que não existe”.

Deslizes de Dallagnol e planos pessoais

O Jornal da Universidade de São Paulo (USP), em matéria publicada em maio de 2022, destaca que questionamentos sobre a Operação Lava-Jato mudaram o entendimento da imprensa internacional sobre a força-tarefa que, por algum tempo, foi sinônimo de combate à corrupção.

Em 2016, reportagem do jornal alemão DW mostrou que, já nos primeiros anos da operação, alguns observadores apontavam “espetacularização e exageros” por parte da Lava-Jato. Em entrevista ao jornal, o então diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil Dawid Bartelt alertava para a necessidade de que a Justiça não se torne parte de uma disputa política. É fato notório, porém, que personagens centrais da Lava-Jato se utilizaram dessa posição de destaque para migrar para a política, ocupando um espaço identificado com posições conservadoras e religiosas.

A série de reportagens conhecida como “Vaza-Jato”, conduzida por sete veículos de imprensa com o objetivo de analisar mensagens privadas tornadas públicas entre procuradores da Força-Tarefa, membros do Ministério Público e juízes, foi responsável por desvendar uma série de controvérsias nos métodos utilizados, por tais personagens, no esforço de combate à corrupção. Os desvios levariam, por exemplo, à anulação da condenação de Lula Inácio Lula da Silva (PT).

Especificamente no caso de Deltan Dallagnol, a Vaza-Jato mostrou, após acesso a mensagens trocadas pelo ex-coordenador da força-tarefa, uma série de práticas que extrapolaram sua atuação como membro do MP. Reportagens apontaram, entre outras coisas, a utilização de organizações sociais para pressionar o STF e o governo, a aliança com ONGs internacionais para moldar a imagem pública da Lava-Jato e, ainda, o esforço empreendido junto ao eleitorado evangélico para viabilização de sua candidatura ao Congresso Nacional nas eleições de 2022.

A esse respeito, mensagens de 2018, no aplicativo Telegram,  indicam que Dallagnol estudava uma saída estratégica do MP. O então procurador da República optou, à época, por permanecer no cargo, mas não deixou de tecer considerações para seu futuro na política: “Precisaria me dedicar bastante a isso e me programar. Para aumentar a influência, precisaria muito começar uma iniciativa de grupos de ação cidadã. Dois pilares seriam: grupos de ação cidadã em igrejas e viagens.”

Antevendo problemas com o Conselho Nacional do Ministério Público, continuou: “Tem um risco de CNMP, mas é pagável, cabendo fazer uma pesquisa de campanhas públicas (de órgãos) de voto consciente, para me proteger”.

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Após checagem dos fatos recentes, analisados à luz da legislação, bem como dos debates acerca da cassação do registro de candidatura de Deltan Dallagnol, Bereia considera enganosa a repercussão, promovida por políticos religiosos, que tenta caracterizar como “perseguição” a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Há vasto material informativo sobre a decisão e um rico debate, em curso, quanto à extensão interpretativa da Lei da Ficha Limpa. Não é possível, no entanto, afirmar que haja uma perseguição em andamento, como alguns políticos religiosos querem fazer acreditar.

Os pronunciamentos que propagam o discurso de perseguição não apresentam todos os elementos necessários para serem classificados como verdadeiros, sendo materiais que demandam cuidado, atenção e acompanhamento antes de se chegar a conclusões.

Referências de checagem:

CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/tse-marca-para-dia-16-julgamento-de-acao-contra-candidatura-de-dallagnol/ Acesso em: 25 mai 2023

Planalto. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp135.htm Acesso em: 25 mai 2023

Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2023-mai-17/marcelo-aith-controversias-cassacao-deltan-dallagnol Acesso em: 23 mai 2023

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/05/tse-no-metaverso.shtml Acesso em: 24 mai 2023

Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2023-mai-17/cassar-deltan-tse-nao-deu-interpretacao-extensiva-inelegibilidade Acesso em: 24 mai 2023

O Globo. https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/noticia/2023/05/perseguicao-criticas-e-oracao-de-eduardo-bolsonaro-a-damares-oposicao-reage-a-cassacao-de-deltan-dallagnol.ghtml?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter Acesso em: 23 mai 2023

Poder 360. https://www.poder360.com.br/justica/moro-e-deltan-participam-de-marcha-para-jesus-em-curitiba/ Acesso em: 25 mai 2023

Jornal da USP. https://jornal.usp.br/ciencias/questionamentos-sobre-a-lava-jato-mudaram-visao-da-imprensa-internacional-sobre-a-operacao-aponta-pesquisa/ Acesso em: 25 mai 2023

DW. https://www.dw.com/pt-br/observadores-veem-espetaculariza%C3%A7%C3%A3o-e-exageros-na-lava-jato/a-19109844 Acesso em: 25 mai 2023

STF. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=464261&ori=1 Acesso em: 25 mai 2023

Agência Pública.

https://apublica.org/2019/09/deltan-captava-recursos-de-empresarios-para-instituto-mude/ Acesso em: 25 mai 2023

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https://apublica.org/2019/09/de-olho-em-vaga-no-senado-em-2022-dallagnol-mirou-apoio-de-evangelicos/ Acesso em: 25 mai 2023

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Bereia.

https://coletivobereia.com.br/?s=cristofobia Acesso em: 25 mai 2023

https://coletivobereia.com.br/religiao-e-politica-no-olho-do-furacao/ Acesso em: 25 mai 2023

https://coletivobereia.com.br/lider-evangelico-afirma-que-cristaos-comecaram-a-ser-perseguidos-no-brasil/ Acesso em: 25 mai 2023

Religião e Poder. https://religiaoepoder.org.br/ Acesso em: 25 mai 2023

Twitter. https://twitter.com/deltanmd/status/1658940277283856385 Acesso em: 26 mai 2023

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Foto de capa: Lula Marques/Agência Brasil