Publicação viral que compara nazismo, esquerda e direita distorce o debate político – PARTE 3

* Checagem publicada em três partes. Veja aqui a parte 1 e a parte 2

Veja abaixo a terceira parte da checagem na qual Bereia analisou, quadro a quadro, tabela que circula nas redes disseminando desinformação sobre supostos posicionamentos políticos e atitudes comportamentais. Bereia alerta para a fundamental necessidade de se checar as fontes dos conteúdos que circulam na internet e analisá-los criticamente, para que estratégias de desinformação sejam efetivamente combatidas. A síntese feita pelo quadro buscava reforçar a polarização entre direita x restante do campo político. 

Imagem: reprodução propositalmente desfocada

Sem liberdade individual x liberdade individual 

Historicamente, a defesa das liberdades individuais, também conhecidas como liberdades civis, ganhou força na Modernidade com o Iluminismo, os Humanismos e a Revolução Francesa, a partir do século 18. O professor da Universidade Federal do Espírito Santo Victor Gentilli explica que a noção moderna de liberdade entende o direito de ir-e-vir, o direito de escolher, o direito à privacidade, o direito de não ser preso, de não ser torturado. Enfim, a liberdade era vista pelos antigos como alguma coisa vinculada à esfera pública, enquanto para os modernos o conceito de liberdade é hoje nitidamente vinculado à esfera privada. 

A cientista política estadunidense Wendy Brown, na obra “Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente” (Editora Filosófica Politéia, 2019), explica que as estas noções de liberdade formuladas por agentes influenciadores neoliberais, deram base para a extrema direita política mobilizar um discurso de liberdade que justifica exclusões e violações que reasseguram privilégios históricos da hegemonia branca, masculina e cristã, além de expandir o poder do capital. Para a pesquisadora, esta noção de liberdade “demoniza o social, rotula a esquerda como tirânica em sua preocupação com a justiça social e, ao mesmo tempo, coloca-a como a responsável pelo esgarçamento do tecido moral e por premiar quem não merece”.

Wendy Brown afirma que esta propagada liberdade contribui para o desmantelamento das democracias com a demonização das propostas de justiça social em nome da liberdade, dos mercados e dos valores morais. Nesta trilha, a cientista política aponta como especialmente problemática a relação entre liberdade de expressão e liberdade religiosa no neoliberalismo. Ela expõe a estratégia de se usar a ideia de liberdade como instrumento para promover a desregulamentação dos mercados e barrar iniciativas antidiscriminatórias. Nesta direção, o indivíduo deve gozar de uma “liberdade ilimitada que desconhece limites éticos”, como direito de espalhar mentiras e falsidades pelas redes digitais até ofender e caluniar desafetos e opositores. 

A postagem checada pelo Bereia, ao atribuir “sem liberdade individual” às esquerdas políticas e “com liberdade individual” à direita, expõe os elementos expostos na análise de Wendy Brown. Porém, a pesquisadora alerta que, ao mesmo tempo há contradição nesta proposição com o uso do termo “liberdade” pois “os grupos extremistas que clamam por ela não toleram o pluralismo, abominam a diversidade de modos de vida e atuam para impor seus valores a toda a sociedade”. Brown indica que neste sistema de valores da liberdade individual estão no centro “o rancor, a reprimenda e a vingança” e um desejo de negar tudo: “a crise climática, o racismo, a afirmação de direitos a mulheres e à comunidade LGBT, a esfericidade da terra”, entre outros. 

Educação doutrinadora X educação de excelência

A publicação checada pelo Bereia atribui a ideia de “educação doutrinadora” às esquerdas políticas e a de “educação de excelência” à direita. Tal proposição tem relação com a ideologia que emergiu, recentemente, no Brasil, denominada “Escola Sem Partido” (ESP).

A professora da Universidade Federal de Juiz de Fora Andréa Silveira de Souza explica que ESP “é um programa e um projeto de lei oriundo de um movimento político surgido no Brasil em 2003, no âmbito da sociedade civil, capitaneado pelo procurador paulista Miguel Nagib. No contexto do surgimento, a principal pauta do ESP era o combate ao que Nagib denominou ‘doutrinação política e ideológica’ de crianças e jovens nas escolas brasileiras”.

Andréa Silveira mostra que segundo o procurador e os defensores do programa, a “‘doutrinação’ estaria sendo promovida por professores e professoras que, ardilosamente, se valem da ‘audiência cativa’ de estudantes vulneráveis nas salas de aula para promover uma suposta doutrinação a qual classificam como comunista ou ‘de esquerda’. 

A pesquisadora explana que por “doutrinação” entenda-se “toda e qualquer informação que seja diversa daquela que é preservada pelas famílias dos e das estudantes, as quais fazem parte da pluralidade de ideias que caracteriza os conhecimentos e os currículos de diferentes componentes para uma formação escolar ampla e cidadã”.

Andréa Silveira acrescenta que “compreender o ESP significa compreender que ele é um dispositivo jurídico que, assimilado por grupos religiosos fundamentalistas, reverbera um certo tipo de ideologia religioso-política pautada pela perseguição de educadores e educadoras, pela supressão do reconhecimento e do diálogo entre as alteridades, e cuja pretensão é garantir pela força da lei o apagamento da pluralidade de ideias, da liberdade e da diversidade em uma das principais instituições da vida moderna, a escola”. 

A publicação que o Bereia verificou atribui “doutrinação” apenas às esquerdas políticas, eximindo a direita de tal prática, o que não é verdade. Segundo a Enciclopédia do Holocausto, durante o regime nazista, professores considerados “não confiáveis politicamente” foram expulsos das escolas públicas e os que permaneceram foram associados a Liga de Professores ligada ao partido e ensinavam aos alunos, primordialmente, o amor a Hitler, o militarismo e o racismo. 

Conforme apontado pelo Centro de Referências em Educação Integral, durante a ditadura militar no Brasil “foram excluídas as aulas de Sociologia e Filosofia do currículo básico dos estudantes e também foram promovidas alterações importantes em outras disciplinas, notadamente as de humanas, como História e Geografia” com o objetivo de “consolidar outra visão de História, na qual o nacionalismo era ressaltado”.

Mais recentemente, no governo de direita de Jair Bolsonaro, foram implantadas as escolas cívico-militares com a justificativa de promover melhorias nos índices educacionais do país, no entanto, Bereia checou informações e identificou que o programa carecia de ajustes e justificativas técnicas para ser considerado totalmente eficiente. 

Relativismo x objetivismo e lógica

O Relativismo é uma corrente filosófica que compreende o conhecimento humano como uma variável, a depender de contexto histórico, cultural, social, político, econômico e temporal. Fortalecido a partir do movimento pós-modernista, em meados da década de 1960, está presente em diversas áreas, como cultural, moral e científica. 

O filósofo Friedrich Nietzsche é considerado um dos precursores do movimento, autor da frase que traduz a filosofia relativista em poucas palavras: “Não há fatos, apenas interpretações”. 

O Objetivismo, por sua vez, descarta a subjetividade do existir humano. Nas palavras de Ayn Rand, romancista e roteirista de filmes para Hollywood, quem estruturou esta vertente filosófica, “a realidade existe como algo absoluto e objetivo: fatos são fatos, independentemente das emoções, desejos, esperanças ou medos dos homens. A razão (a faculdade que identifica e integra o material fornecido pelos sentidos do homem) é o único meio do homem de perceber a realidade, a sua única fonte de conhecimento, o seu único guia para a ação e o seu meio básico de sobrevivência”.

A alegação contra o Relativismo é que esta filosofia vai contra verdades e fatos, ou seja, padrões estabelecidos, segundo ela, lógicos e fundamentados.

Conforme os estudos da cientista política Camila Rocha, o Objetivismo é uma das bases que orientam o que se pode denominar nova direita brasileira. Além de grupos como o Movimento Brasil Livre e o Partido Novo, há articulações que se estabeleceram para difundir ideias conservadoras ou de matriz liberal alinhadas à direita política. Entre elas estão: o Instituto de Estudos Empresariais, o Instituto de Formação de Líderes, o Instituto Mises Brasil, o Instituto Millenium, o Instituto Liberal, o Lola Brasil, que pretende engajar mulheres, entre outros. 

Boa parte destes grupos e movimentos, se baseia em ideias liberais clássicas, do século 17, a partir de pensadores como John Locke, até autores do século 20 como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Outros defendem ideias de diferentes vertentes como o Objetivismo, de Ayn Rand, também Minarquismo, de Robert Nozick, o Anarcocapitalismo, de  Murray Rothbard, todos autores famosos na lista de “defensores da liberdade”. 

Quem produziu a publicação checada pelo Bereia se revela adepto da nova direita brasileira, da vertente objetivista, e nela expõe sua ideologia/filosofia, não uma informação.

***

Bereia classifica a publicação na forma de um quadro sem autoria, que consiste em uma tabela comparativa entre  Nazismo, “esquerda” e “direita” como informação FALSA. O material é um conjunto de expressões opinativas, de caráter ideologizado, não têm substância factual. É desinformação sem base comprobatória, identificado com a direita política. É conteúdo fabricado para parecer informação, porém se constitui um panfleto de campanha anti-esquerdas.

Referências de checagem:

VIZENTINI, P. F. A Guerra Fria: o desafio socialista à ordem americana. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004

Scielo

https://www.scielo.br/j/rae/a/3gyNF765nj8nsRtD5vVnYGn/# Acesso em: 17 nov 2023

CNN Brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/essencial-ou-dispensavel-entenda-o-papel-da-uniao-sovietica-na-2a-guerra-mundial/ Acesso em: 8 nov 2023

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/conhecido-pela-uniao-entre-moradores-kibutz-no-sul-de-israel-foi-palco-de-massacre/ Acesso em: 8 nov 2023

Bellingcat

https://www.bellingcat.com/news/2023/10/20/geolocating-hamas-led-attacks-on-israeli-civilians/?utm_source=aosfatos&utm_campaign=1508caad78-EMAIL_CAMPAIGN_2023_07_11_08_34_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_-d376c0b720-%5BLIST_EMAIL_ID%5D Acesso em: 15 nov 2023

BBC

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1kwg7320qo Acesso em: 8 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49877815 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51071094 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62521737 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-39809236 Acesso em: 9 nov 2023

Unisinos

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/579759-discurso-do-estado-minimo-inebria-o-enfrentamento-das-desigualdades Acesso em: 8 nov 2023

Enciclopédia do Holocausto

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/introduction-to-the-holocaust#:~:text=O%20Holocausto%20foi%20a%20persegui%C3%A7%C3%A3o,anos%20de%201933%20a%201945.&text=O%20antissemitismo%20foi%20a%20base%20do%20Holocausto. Acesso em: 9 nov 2023

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nazi-rule?series=60 Acesso em:  nov 2023

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/indoctrinating-youth Acesso em: 10 nov 2023

Senado Federal

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/276/r135-27.pdf?sequence=4&isAllowed=y Acesso em: 10 nov 2023

A Crise em Perspectiva: 1929 e 2008

https://www.scielo.br/j/nec/a/Tn53n6xsSgDmhbB3cFgL6Bh/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 10 nov 2023

Politize!
https://www.politize.com.br/joao-goulart/#:~:text=Acuado%2C%20Jo%C3%A3o%20Goulart%20resolveu%2C%20de,personifica%C3%A7%C3%A3o%20de%20seus%20piores%20pesadelos. Aceso em: 10 nov 2023

Memorial da Resistência

https://memorialdaresistenciasp.org.br/noticias/lei-censura-imprensa-55-anos/ Acesso em: 10 nov 2023

FGV
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5#:~:text=O%20Ato%20Institucional%20n%C2%BA%205,a%C3%A7%C3%B5es%20arbitr%C3%A1rias%20de%20efeitos%20duradouros. Acesso em: 10 nov 2023

Agência Brasil

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-05/liberdade-de-imprensa-brasil-melhora-e-sobe-18-lugares-aponta-estudo Acesso em: 10 nov 2023

UFRGS

https://www.ufrgs.br/fce/liberalismo-bolsonarismo-e-nazismo/ Acesso em : 10 nov 2023

Educação Integral

https://educacaointegral.org.br/reportagens/ditadura-legou-educacao-precarizada-privatizada-anti-democratica/ Acesso em: 10 nov 2023

Humanidades

https://humanidades.com/br/relativismo/ Acesso em: 10 nov 2023

Ayn Rand Center Latin America
https://www.aynrandlatam.org/objetivismo Acesso em: 13 nov 2023

Lista de partidos políticos registrados no Brasil – e posicionamento político.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_partidos_pol%C3%ADticos_do_Brasil Acesso em: 16 nov 2023

Lista de Partidos (Oficial) – TSE

https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-registrados-no-tse Acesso em: 16 nov 2023

Revista Ciência e Cultura

http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300018 Acesso em: 17 nov 2023

Jornal da USP

https://jornal.usp.br/radio-usp/crescimento-de-neonazistas-no-pais-e-um-dos-desafios-das-eleicoes-2022/ Acesso em: 20 nov 2023

Organização Mundial da Sáude

https://abortion-policies.srhr.org/ Acesso em: 20 nov 2023

Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

https://www.fndc.org.br/ Acesso em: 20 nov 2023

Revista FAMECOS

https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3184 Acesso em: 20 nov 2023

PINTO, A. C. “O  regresso  das  ditaduras?”. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021

BROWN, W. “Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente”. Editora Filosófica Politéia, 2019

*** Foto de capa: Andrea Piacquadio/Pexels

Publicação viral que compara nazismo, esquerda e direita distorce o debate político – PARTE 2

* Checagem publicada em três partes. Veja aqui a parte 1 e a parte 3

Bereia analisou, quadro a quadro, tabela que circula nas redes disseminando desinformação sobre supostos posicionamentos políticos e atitudes comportamentais. Bereia alerta para a fundamental necessidade de se checar as fontes dos conteúdos que circulam na internet e analisá-los criticamente, para que estratégias de desinformação sejam efetivamente combatidas. A síntese feita pelo quadro buscava reforçar a polarização entre direita x restante do campo político. 

Imagem: reprodução propositalmente desfocada

Confira a parte 2 da checagem:

Defesa do aborto x contra o aborto 

O tema do aborto tem sido amplamente utilizado na mobilização de pânico moral nas redes digitais. Bereia já produziu extenso material sobre o assunto, desde checagem sobre acusações imprecisas envolvendo a Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmem Lúcia, até a disseminação de conteúdo enganoso sobre aborto por sites e políticos religiosos. Nessas postagens, como no material checado nesta matéria pelo Bereia, atribui-se à esquerda política a defesa do aborto (classificado como “assassinato de bebês”), enquanto que a direita se coloca contra o aborto.

Esta divisão ideológica do tema pode ser desmentida pelo levantamento da Organização Mundial de Saúde sobre as políticas em relação ao aborto nos diferentes países do mundo. Tendências políticas tanto de esquerda, quanto de direita e de centro governam países que aprovam o aborto, desde por exclusiva solicitação da mulher, para preservar sua saúde física ou mental, por conta de violência sexual, por anomalia fetal grave.

Outro ponto a ser considerar, apesar das estratégias discursivas de tratar do assunto pelo viés moral, as discussões sobre aborto consideram questões de saúde pública, relacionadas às condições de vida e bem-estar de mulheres e direitos reprodutivos, por exemplo. Segundo uma das autoras da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), Débora Diniz, mesmo com queda nos registros, estima-se que meio milhão de abortos tenham sido realizados no Brasil em 2021, sendo que 57% foram realizados sem hospitalização.

Dados da PNA de 2021 divulgados pela Gênero e Número mostram que mulheres de diversas origens, escolaridades e práticas religiosas realizam abortos todos os anos, não havendo vínculo político-ideológico relacionado à prática. “A gente precisa falar com mais tranquilidade e menos estigma para que as pessoas possam compreender o aborto como uma necessidade de saúde, que é o que ele é”, afirma a ginecologista do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Helena Paro.

Desarmamentismo x cidadãos armados

A noção, defendida na postagem checada pelo Bereia, de que o regime nazista promoveu uma política desarmamentista e que, portanto, se os judeus perseguidos tivessem mais armas, estariam em condições de lutar contra seus perseguidores, é de difícil comprovação. Associar a figura de Adolf Hitler ao desarmamentismo é estratégia antiga, desvendada pelo professor da Universidade de Columbia Bernard Harcourt, em seu artigo “Sobre registro de armas, a NRA, Adolf Hitler e as leis nazistas sobre armas: Explodindo as guerras culturais com armas (um apelo aos historiadores)”.

Artigo de Adam Geller, para a Associated Press (AP) destaca, em primeiro lugar, que o debate atual sobre controle de armas não se aplica ao cenário da Alemanha no entreguerras, por diversos motivos. Em entrevista à AP, o historiador Steve Paulsson, descendente de sobreviventes do holocausto, acredita que, se judeus perseguidos tivessem mais armas à época, “poderia ter piorado as coisas”. Em suma, o debate sobre controle de armas durante a Alemanha nazista está longe de um consenso.

Em relação ao debate contemporâneo, estudos recentes mostram a correlação entre o maior número de armas de fogo à disposição da sociedade e o aumento da violência. Reportagem do jornal eletrônico Nexo sobre o tema destaca pesquisa do National Bureau of Economic Research, ligado ao governo dos Estados Unidos, que aponta o crescimento de 13% a 15% dos crimes violentos em locais que adotaram legislações mais permissivas. A facilidade de acesso a armas também aumenta casos de suicídio, feminicídio e mortes de crianças. 

Ditadura/opressão x democracia/liberdade 

Um dos pontos da publicação checada pelo Bereia atribui “ditadura/opressão à esquerda política” e “democracia/liberdade” à direita. Esta afirmação é desprovida de qualquer base analítica. Assim como um Estado absoluto, pela mesma razão, uma ditadura também pode ocorrer tanto em governos à direita como à esquerda. O Nazismo é um conhecido símbolo de um regime ditatorial de direita, apesar de pontuais tentativas de associar o Fascismo na Alemanha a um regime à esquerda, como neste conteúdo aqui checado, terem surgido no Brasil nos últimos anos.

Segundo o Dicionário de Política, de autoria do intelectual italiano Norberto Bobbio, ditadura é um regime caracterizado pela concentração absoluta do poder e pela subversão da ordem política anterior. Historicamente, os ditadores tomam o poder por meio de um golpe que destitui a governança em curso, como no caso dos militares no Brasil e a tentativa de Hitler em 1923.

A ditadura nazista teve na pessoa de Hitler a expressão do autoritarismo. O Partido Nazista era o único permitido na Alemanha e o parlamento existia apenas para confirmar as determinações do ditador, a base da política de governo. Como todo regime ditatorial, além da política e da economia, a educação, a cultura e as leis do país passaram a ser controladas pelo Nazismo, restringindo a liberdade dos cidadãos

As características de governo do Nazismo alinham-se às premissas do posicionamento político de extrema-direita. No Brasil, a Ditadura Militar foi a maior expressão deste posicionamento político. Durante os 21 anos do regime militar, 17 atos Institucionais (AI), a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Imprensa garantiram a concentração do poder nas mãos dos militares, a permanência destes no poder e a privação da liberdade dos brasileiros. Esta ditadura foi estabelecida no Brasil, após um golpe militar destituir um governo de esquerda liderado por João Goulart, filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Segundo o cientista político português António Costa Pinto, uma autoridade no tema, autor da obra “O  regresso  das  ditaduras?” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021),  estes regimes ocupam, atualmente, mais de um terço de governos no mundo. O autoritarismo é a forma de governo dominante em potências como a Rússia, a China ou em países como a Arábia Saudita, a Venezuela, a Hungria, a Turquia, Coreia do Norte, Angola, entre outros. Costa Pinto afirma que, quando a política contemporânea é considerada, não é possível afirmar que os regimes autoritários estejam novamente  em  crescimento, porém é certo que o regime  democrático enfrenta uma dinâmica de crise associada à emergência da direita radical (extrema-direita).

Para o cientista político português há características que afastam e aproximam as diversas ditaduras da época fascista, como a do fascismo italiano, e distingue ditaduras socialistas, ditaduras militares e outras ditaduras. Costa Pinto reconhece que hoje o mundo vive uma erosão democrática por conta da chegada ao poder de líderes populistas de direita radical como Jair Bolsonaro no Brasil e chama a atenção para uma diferença fundamental desta nova forma de acesso ao poder. 

Enquanto no  passado, segundo o pesquisador,  a  ascensão  das  ditaduras  resultou  de  uma  aniquilação  imediata da  democracia,  na  atualidade  os  regimes  autoritários chegam legalmente ao poder, disfarçam-se de democracias e provocam lentamente a sua degradação. Costa Pinto cita a questão da censura como marca das ditaduras, e cita a Rússia como exemplo, porém destaca a  divulgação de conteúdo falso, desinformativo, como uma das maiores ameaças à democracia hoje, classificadas como um poderoso papel na manipulação da opinião pública.

Os ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, Donald Trump e Jair Bolsonaro,  são dois exemplos de políticos, citados por Costa Pinto, que lançaram mão da divulgação de notícias falsas em proveito próprio. O pesquisador alerta que também partidos de direita radical, em franco crescimento na Europa e com uma crescente representatividade parlamentar, são assíduos utilizadores de notícias falsas. 

Controle da imprensa x liberdade de imprensa

O conteúdo checado por Bereia atribui o controle da imprensa à tendência política da esquerda em contraposição à liberdade de imprensa como elemento defendido pela direita. A afirmação falaciosa não encontra base referencial que a comprove. Este discurso não é novo e aparece todas as vezes que há reivindicação de setores da sociedade civil pela regulação das mídias, para que haja livre comunicação das ideias, das notícias e das opiniões, em especial pelos veículos que são concessões do Estado.

O jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo Eugênio Bucci explica que “sem imprensa independente não há democracia. Do mesmo modo, sem democracia não pode haver imprensa livre. Uma pede a outra, uma concorre para a outra”. Bucci afirma que “o cidadão livre precisa da imprensa por que é com base na existência da imprensa livre que ele se informa e debate ideias e, com isso, capacita-se a melhor delegar, fiscalizar e até mesmo exercer o poder”.

Na linha das reivindicações dos grupos que atuam pela democratização da comunicação no Brasil, país que tem onze famílias no controle das concessões estatais de mídias abertas de rádio e TV e de impressos, Eugênio Bucci explica o sentido da regulação necessária. O professor da USP afirma que “o problema dos monopólios (e também dos oligopólios) é que, controlando sozinhos o mercado numa determinada região do país, eles podem inibir a diversidade cultural, a diversidade das opiniões políticas e, além disso, a concorrência comercial saudável. Para a plena vigência da liberdade de expressão e do direito à informação, o Estado deve, na regulação do mercado (não dos conteúdos), inibir a formação de oligopólios e de monopólios”.

Bucci conclui que “em nenhum sentido precisamos de alguma regulação que venha para restringir os conteúdos. A regulação só é útil quando é necessária para assegurar a todos o direito à informação e à liberdade de expressão. Vejam que, para publicar um jornal impresso, ninguém precisa de concessão pública. Por isso, não há necessidade de regulação direta para essa modalidade de comunicação social. A regulação só é necessária quando sem ela não se pode proteger a liberdade de expressão e o direito à informação”.

Referências de checagem:

VIZENTINI, P. F. A Guerra Fria: o desafio socialista à ordem americana. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004

Scielo

https://www.scielo.br/j/rae/a/3gyNF765nj8nsRtD5vVnYGn/# Acesso em: 17 nov 2023

CNN Brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/essencial-ou-dispensavel-entenda-o-papel-da-uniao-sovietica-na-2a-guerra-mundial/ Acesso em: 8 nov 2023

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/conhecido-pela-uniao-entre-moradores-kibutz-no-sul-de-israel-foi-palco-de-massacre/ Acesso em: 8 nov 2023

Bellingcat

https://www.bellingcat.com/news/2023/10/20/geolocating-hamas-led-attacks-on-israeli-civilians/?utm_source=aosfatos&utm_campaign=1508caad78-EMAIL_CAMPAIGN_2023_07_11_08_34_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_-d376c0b720-%5BLIST_EMAIL_ID%5D Acesso em: 15 nov 2023

BBC

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1kwg7320qo Acesso em: 8 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49877815 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51071094 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62521737 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-39809236 Acesso em: 9 nov 2023

Unisinos

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/579759-discurso-do-estado-minimo-inebria-o-enfrentamento-das-desigualdades Acesso em: 8 nov 2023

Enciclopédia do Holocausto

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/introduction-to-the-holocaust#:~:text=O%20Holocausto%20foi%20a%20persegui%C3%A7%C3%A3o,anos%20de%201933%20a%201945.&text=O%20antissemitismo%20foi%20a%20base%20do%20Holocausto. Acesso em: 9 nov 2023

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nazi-rule?series=60 Acesso em:  nov 2023

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/indoctrinating-youth Acesso em: 10 nov 2023

Senado Federal

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/276/r135-27.pdf?sequence=4&isAllowed=y Acesso em: 10 nov 2023

A Crise em Perspectiva: 1929 e 2008

https://www.scielo.br/j/nec/a/Tn53n6xsSgDmhbB3cFgL6Bh/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 10 nov 2023

Politize!
https://www.politize.com.br/joao-goulart/#:~:text=Acuado%2C%20Jo%C3%A3o%20Goulart%20resolveu%2C%20de,personifica%C3%A7%C3%A3o%20de%20seus%20piores%20pesadelos. Aceso em: 10 nov 2023

Memorial da Resistência

https://memorialdaresistenciasp.org.br/noticias/lei-censura-imprensa-55-anos/ Acesso em: 10 nov 2023

FGV
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5#:~:text=O%20Ato%20Institucional%20n%C2%BA%205,a%C3%A7%C3%B5es%20arbitr%C3%A1rias%20de%20efeitos%20duradouros. Acesso em: 10 nov 2023

Agência Brasil

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-05/liberdade-de-imprensa-brasil-melhora-e-sobe-18-lugares-aponta-estudo Acesso em: 10 nov 2023

UFRGS

https://www.ufrgs.br/fce/liberalismo-bolsonarismo-e-nazismo/ Acesso em : 10 nov 2023

Educação Integral

https://educacaointegral.org.br/reportagens/ditadura-legou-educacao-precarizada-privatizada-anti-democratica/ Acesso em: 10 nov 2023

Humanidades

https://humanidades.com/br/relativismo/ Acesso em: 10 nov 2023

Ayn Rand Center Latin America
https://www.aynrandlatam.org/objetivismo Acesso em: 13 nov 2023

Lista de partidos políticos registrados no Brasil – e posicionamento político.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_partidos_pol%C3%ADticos_do_Brasil Acesso em: 16 nov 2023

Lista de Partidos (Oficial) – TSE

https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-registrados-no-tse Acesso em: 16 nov 2023

Revista Ciência e Cultura

http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300018 Acesso em: 17 nov 2023

Jornal da USP

https://jornal.usp.br/radio-usp/crescimento-de-neonazistas-no-pais-e-um-dos-desafios-das-eleicoes-2022/ Acesso em: 20 nov 2023

Organização Mundial da Sáude

https://abortion-policies.srhr.org/ Acesso em: 20 nov 2023

Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

https://www.fndc.org.br/ Acesso em: 20 nov 2023

Revista FAMECOS

https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3184 Acesso em: 20 nov 2023

PINTO, A. C. “O  regresso  das  ditaduras?”. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021

BROWN, W. “Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente”. Editora Filosófica Politéia, 2019

* Foto de capa: Engin Akyurt/Pexels

Publicação viral que compara nazismo, esquerda e direita distorce o debate político – PARTE 1

Com o crescimento de posicionamentos a respeito do conflito bélico entre Israel e Palestina voltou a circular, nas redes digitais, um quadro sem autoria, com baixa qualidade gráfica e sem fontes de pesquisa, que consiste em uma tabela comparativa entre  Nazismo, “esquerda” e “direita”. 

O quadro viralizou, no passado, em grupos e mídias sociais, em 2018 e 2022, por ocasião das eleições – associando a esquerda (com a foice e martelo, do movimento comunista) ao Nazismo. A síntese feita pelo quadro buscava reforçar a polarização entre direita x restante do campo político. 

Imagem: reprodução propositalmente desfocada

Como se pode constatar, entre os 29 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), há variadas expressões de “direita”, dentro e fora do Brasil. Ou seja, dentro da própria “direita” há variações e nuances. No artigo “Uma Nova Classificação Ideológica dos Partidos Políticos Brasileiros” os pesquisadores Bruno Bolognesi, Ednaldo Ribeiro e Adriano Codato constatam, a partir de pesquisa realizada junto à comunidade de cientistas políticos em 2018, uma movimentação à direita pelos partidos políticos brasileiros, bem como um predomínio de partidos fisiológicos, que desprezam seus programas partidários em prol da dinâmica voto-cargo.

Embora o Brasil tenha sido, e ainda seja, palco de movimentos como o Integralismo, de inspiração fascista, e o Neonazismo, não há, no país, partido nazista ou neonazista – e nenhum campo político institucionalizado assumiu ou é apontado, abertamente, como apoiador das ideologias do partido Nacional Socialista Alemão.

Nas mídias sociais que circulam no Brasil, em novembro de 2023, com destaque para o TikTok, a publicação ganhou novo impulso. No Twitter/X, uma única publicação soma mais de 620 mil visualizações e 20 mil curtidas, no momento do fechamento desta matéria. Em grupos de Telegram, Whatsapp e do Facebook, o quadro também apareceu em uma sequência de comentários, em fotografias alusivas ao Partido dos Trabalhadores e ao conflito bélico Israel-Palestina.

Esse tipo de campanha, com associação de ideias, com ou sem imagens, em quadros e sem frases, sem fontes, sem autoria e sem análises é muito comum nos “linchamentos virtuais” e nas estratégias de desinformação, que procuram disseminar também conceitos ou preconceitos através de memes – unidades de informação, e desinformação, que, ao veicular ideias, imagens e sons, se multiplicam facilmente nas redes.

Bereia analisou, quadro a quadro, a tabela que circula nas redes disseminando desinformação sobre supostos posicionamentos políticos e atitudes comportamentais. Diante do volume de informações, dividimos a checagem em três partes, que serão publicadas em sequência.

Bereia alerta para a fundamental necessidade de se checar as fontes dos conteúdos que circulam na internet e analisá-los criticamente, para que estratégias de desinformação sejam efetivamente combatidas.

Ódio aos judeus x apoio a Israel 

Segundo a publicação, o Nazismo e a esquerda odeiam os judeus, enquanto a direita apoia Israel.  Registros históricos ensinam que o Nazismo não apenas pregou o ódio aos judeus, mas promoveu o holocausto, tendo assassinado cerca de seis milhões de pessoas de origem judaica na Europa, de 1933 a 1945.

Associar o ódio aos judeus à esquerda, no entanto, é um erro. Ainda durante a 2ª Guerra Mundial, uma das principais forças que contribuíram para a derrota do Nazismo foi a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), como destaca o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Visentini, no livro “A Guerra Fria – O desafio socialista à ordem americana”. 

Outro aspecto a se destacar é que, na formação do Estado de Israel, comunidades agrícolas socialistas, os chamados kibutzim, tiveram um papel essencial no desenvolvimento rural, intelectual e político do país. Essas comunidades existem até hoje e os ataques de 7 de outubro contra Israel tiveram kibutzim entre seus alvos.

A associação da direita política ao apoio a Israel, por sua vez, pode ser explicada por posturas como o sionismo cristão, que defende o fortalecimento do Estado de Israel e a ampliação do território que ocupa. No Brasil, este fenômeno vem, gradativamente, alinhando-se a uma direita religiosa e ultraconservadora, fortalecida pelos discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro, estabelecidos desde 2018. Além disso, o fato de o atual premiê israelense Benjamin Netanyahu ser ultraconservador contribui para que muitos confundam o Estado de Israel, o judaísmo, o nacionalismo e o conservadorismo defendido pelos governantes atuais do Estado.

Estado absoluto x Estado mínimo 

Associar “Estado absoluto” ao Nazismo e à esquerda e “Estado mínimo” à direita é, também, um erro. O uso do conceito de absolutismo em um debate contemporâneo está sujeito a diversas interpretações errôneas, já que se trata de um produto típico das monarquias nos séculos 16, 17 e 18. Desta forma, a própria utilização do termo torna o argumento equivocado.

Governantes com poderes irrestritos podem surgir em regimes à direita e à esquerda. No sentido que a publicação em questão aparentemente quer produzir, de um Estado que interfere em diversos aspectos da vida em sociedade, há exemplos históricos em ambas as vertentes. Ainda assim, atribuir o termo “Estado absoluto” a experiências do século 19 e 20 seria um erro.

Igualmente, a publicação apaga o mais importante agrupamento da esquerda no início do século 20, o Anarquismo, que propõe uma sociedade de liberdades individuais, sem autoridade ou poder estatal, baseada na ajuda mútua e na cooperação voluntária. Na Guerra Civil da Espanha (1936 – 1939), por exemplo, os anarquistas foram o grupo majoritário na luta contra o regime de Francisco Franco (conservador, ultracatólico, capitalista e direitista).

Já o “Estado mínimo”, defendido pela corrente extrema do liberalismo, conhecida, de forma curiosa, como libertarianismo, vem sendo difundido como sinônimo de um Estado que se concentra apenas em tarefas pontuais, atuando com pouca interferência na sociedade. O artigo “O projeto neoliberal e o mito do Estado Mínimo”, do professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP Antônio Carlos de Moraes, explica que a própria dinâmica atual do capitalismo torna a ideia de “Estado mínimo” uma impossibilidade. Além disso, alguns estudiosos alertam para os efeitos nocivos do discurso do Estado mínimo, principalmente no enfrentamento às desigualdades. 

Anticapitalista x capitalista

A publicação diz que o Nazismo e a esquerda são anticapitalistas, enquanto a direita seria capitalista. A apresentação descontextualizada de conceitos amplos, e que carregam subjetividades, gera uma grande confusão e ainda apresenta o capitalismo como o “regime-modelo-salvador”. 

O capitalismo é um sistema econômico que busca a acumulação de riquezas por meio da propriedade privada dos meios de produção. Já o anticapitalismo seria a oposição a tais ideais, com a defesa do controle coletivo dos meios de produção e geração de riqueza.

O Nazismo, apesar de criticar o liberalismo econômico nos moldes vigentes na Europa dos anos 1930, não propunha a socialização dos meios de produção. Em entrevista à BBC News Brasil, a antropóloga e estudiosa de movimentos neonazistas Adriana Dias, falecida em 2023,  explica que o discurso nazista era radicalmente contrário às ideias de Karl Marx, por exemplo. “O nazismo e o fascismo diziam que não existia a luta de classes – como defendia o socialismo – e, sim, uma luta a favor dos limites linguísticos e raciais”, afirma.

No mundo globalizado, diferentes perspectivas político-ideológicas coexistem, como é o caso chinês, em que há ampla participação de empresas privadas em modelo comumente chamado de “capitalismo de Estado”. Além disso, grupos de esquerda, presentes em países capitalistas, não necessariamente defendem a abolição do sistema econômico vigente. A defesa de um modelo econômico não capitalista não guarda qualquer relação com a defesa das ideias nazistas, que caracterizam-se pela ideia de superioridade de uma raça sobre outra e de uma nação sobre a outra.

Estado controla a economia x livre mercado

A postagem checada pelo Bereia atribui à esquerda o controle da economia pelo Estado em oposição à direita política que trabalha pelo livre mercado. A ideia de que as transações financeiras e de bens e serviços devem acontecer sem interferência do Estado tem origem na corrente de pensamento que ficou conhecida como Liberalismo Econômico. Em suma, os defensores dessas ideias pregam que a dinâmica entre oferta e procura – por um bem ou serviço – deve ocorrer livre das decisões de agentes estatais.

A noção de que o “Estado controla a economia”, por sua vez, tem raízes, não apenas nas experiências de economia planificada, mas, principalmente, em uma visão crítica ao Liberalismo. Nela, o Estado deveria intervir no conjunto da economia nacional para corrigir assimetrias como desequilíbrios entre demanda e oferta, inflação, quadros recessivos, entre outros possíveis desafios.Em momentos de crise econômica, como em 1929 ou 2008, importantes intervenções estatais foram implementadas, inclusive em países símbolos do capitalismo, no intuito de controlar os impactos das crises. Em países com altos índices de desigualdade, o Estado pode ser um importante instrumento de direcionamento de recursos visando o bem-estar coletivo. O uso indiscriminado e descontextualizado de termos como “livre mercado” ou “controle estatal da economia” não contribui para uma completa compreensão dos fenômenos econômicos.

***

Bereia classifica a publicação na forma de um quadro sem autoria, que consiste em uma tabela comparativa entre Nazismo, “esquerda” e “direita” como informação FALSA. O material é um conjunto de expressões opinativas, de caráter ideologizado, não têm substância factual. É desinformação sem base comprobatória, identificado com a direita política. É conteúdo fabricado para parecer informação, porém se constitui um panfleto de campanha anti-esquerdas.

Referências de checagem:

VIZENTINI, P. F. A Guerra Fria: o desafio socialista à ordem americana. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004

Scielo

https://www.scielo.br/j/rae/a/3gyNF765nj8nsRtD5vVnYGn/# Acesso em: 17 nov 2023

CNN Brasil

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/essencial-ou-dispensavel-entenda-o-papel-da-uniao-sovietica-na-2a-guerra-mundial/ Acesso em: 8 nov 2023

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/conhecido-pela-uniao-entre-moradores-kibutz-no-sul-de-israel-foi-palco-de-massacre/ Acesso em: 8 nov 2023

Bellingcat

https://www.bellingcat.com/news/2023/10/20/geolocating-hamas-led-attacks-on-israeli-civilians/?utm_source=aosfatos&utm_campaign=1508caad78-EMAIL_CAMPAIGN_2023_07_11_08_34_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_-d376c0b720-%5BLIST_EMAIL_ID%5D Acesso em: 15 nov 2023

BBC

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1kwg7320qo Acesso em: 8 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49877815 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51071094 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62521737 Acesso em: 10 nov 2023

https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-39809236 Acesso em: 9 nov 2023

Unisinos

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/579759-discurso-do-estado-minimo-inebria-o-enfrentamento-das-desigualdades Acesso em: 8 nov 2023

Enciclopédia do Holocausto

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/introduction-to-the-holocaust#:~:text=O%20Holocausto%20foi%20a%20persegui%C3%A7%C3%A3o,anos%20de%201933%20a%201945.&text=O%20antissemitismo%20foi%20a%20base%20do%20Holocausto. Acesso em: 9 nov 2023

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nazi-rule?series=60 Acesso em:  nov 2023

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/indoctrinating-youth Acesso em: 10 nov 2023

Senado Federal

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/276/r135-27.pdf?sequence=4&isAllowed=y Acesso em: 10 nov 2023

A Crise em Perspectiva: 1929 e 2008

https://www.scielo.br/j/nec/a/Tn53n6xsSgDmhbB3cFgL6Bh/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 10 nov 2023

Politize!
https://www.politize.com.br/joao-goulart/#:~:text=Acuado%2C%20Jo%C3%A3o%20Goulart%20resolveu%2C%20de,personifica%C3%A7%C3%A3o%20de%20seus%20piores%20pesadelos. Aceso em: 10 nov 2023

Memorial da Resistência

https://memorialdaresistenciasp.org.br/noticias/lei-censura-imprensa-55-anos/ Acesso em: 10 nov 2023

FGV
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5#:~:text=O%20Ato%20Institucional%20n%C2%BA%205,a%C3%A7%C3%B5es%20arbitr%C3%A1rias%20de%20efeitos%20duradouros. Acesso em: 10 nov 2023

Agência Brasil

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-05/liberdade-de-imprensa-brasil-melhora-e-sobe-18-lugares-aponta-estudo Acesso em: 10 nov 2023

UFRGS

https://www.ufrgs.br/fce/liberalismo-bolsonarismo-e-nazismo/ Acesso em : 10 nov 2023

Educação Integral

https://educacaointegral.org.br/reportagens/ditadura-legou-educacao-precarizada-privatizada-anti-democratica/ Acesso em: 10 nov 2023

Humanidades

https://humanidades.com/br/relativismo/ Acesso em: 10 nov 2023

Ayn Rand Center Latin America
https://www.aynrandlatam.org/objetivismo Acesso em: 13 nov 2023

Lista de partidos políticos registrados no Brasil – e posicionamento político.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_partidos_pol%C3%ADticos_do_Brasil Acesso em: 16 nov 2023

Lista de Partidos (Oficial) – TSE

https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-registrados-no-tse Acesso em: 16 nov 2023

Revista Ciência e Cultura

http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300018 Acesso em: 17 nov 2023

Jornal da USP

https://jornal.usp.br/radio-usp/crescimento-de-neonazistas-no-pais-e-um-dos-desafios-das-eleicoes-2022/ Acesso em: 20 nov 2023

Organização Mundial da Sáude

https://abortion-policies.srhr.org/ Acesso em: 20 nov 2023

Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

https://www.fndc.org.br/ Acesso em: 20 nov 2023

Revista FAMECOS

https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3184 Acesso em: 20 nov 2023

PINTO, A. C. “O  regresso  das  ditaduras?”. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021

BROWN, W. “Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente”. Editora Filosófica Politéia, 2019

“A jaula de ferro” do capital produzirá “uma noite polar, gélida, sombria e árdua”?

*Texto escrito no final de 2021

Seguimos ainda em 2021, ano que não acabou porque o Covid-19 anulou a contagem  do tempo por continuar sua obra letal. O 2022 não pôde, por ora, ser inaugurado. O fato é que o vírus colocou de joelhos todos os poderes, especialmente os militaristas, pois  seu arsenal de morte fez-se totalmente ineficaz. 

No entanto, o gênio do capitalismo, a propósito da pandemia, fez com que a classe capitalista transnacionalizada se reestruturasse mediante o Great Reset (a Grande Reinicialização), expandindo a recente economia digital mediante a integração dos gigantes: Microsoft,  Facebook, Apple, Amazon, Google, Zoom e outros com o complexo militar-industrial e de segurança. Tal evento representa a formação de um poder imenso, nunca havido antes. Notemos que se trata de um poder econômico de natureza capitalista  e que, portanto, realiza seu propósito essencial, o de maximização  dos lucros de forma ilimitada, explorando, sem consideração, os seres humanos e a natureza. A acumulação não é meio para um bem viver mas é um fim em si mesmo, vale dizer, a acumulação pela acumulação, o que é irracional.

A consequência desta radicalização do capitalismo  confirma o que  um sociólogo da universidade da Califórnia em Santa Bárbara, William I. Robinson, num artigo recente, bem observou (ALAI 20/12/2021): “À medida em que o mundo vai se livrando da pandemia, haverá mais desigualdade, conflitos, militarismo e autoritarismo e nesta mesma medida aumentarão as convulsões sociais e os conflitos civis; os grupos dominantes se empenharão por expandir o estado policial global para conter os descontentes em massa, vindos de baixo”. Com efeito, utilizar-se-á a inteligência artificial com seus bilhões e bilhões de algoritmos para controlar cada pessoa e a sociedade inteira. Esse brutal poder levará a humanidade para onde?

Sabendo da lógica implacável do sistema capitalista, Max Weber, um dos que melhor a analisou criticamente, um pouco antes de morrer, asseverou: “O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua (Le Savant et le Politique, Paris 1990, p. 194). Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele é uma “jaula de ferro” (Stahlartes Gehäuse) que não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe (cf. a pertinente análise de M. Löwy, La jaula de hierro: Max Weber y el marxismo weberiana, México 2017). Essa opinião é compartilhada por grandes nomes como Thomas Mann, Oswald Spengler, Ferdinand Tönnies, Eric Hobsbawn entre outros.

Vários modelos de sociedade-mundo estão sendo discutidos para o pós-pandemia. Os mais importantes além do Great Reset dos bilhardários, são: o capitalismo verde, o ecossocialismo, o bien vivir e convivir dos andinos, a biocivilização, de vários grupos e  do Papa Francisco entre outros. Não cabe aqui detalhar tais projetos, coisa que fiz no livro Covid-19: A Mãe Terra contra-ataca a Humanidade (Vozes 2020). Apenas diria: ou mudamos de paradigma de produção, de consumo, de convivência e,  especialmente, de relação para com a natureza, com respeito e cuidado, sentindo-nos parte dela e não  sobre ela como donos e senhores, ou então realizar-se-á o prognóstico de Max Weber: poderemos de 2030 até no máximo 2050, conhecer um armagedon ecológico-social extremamente danoso para a vida e para a Terra.

Neste sentido, meu sentimento do mundo me diz que quem irá destruir a ordem do capital, com sua economia, política e cultura, não seria nenhum movimento ou escola de pensamento crítico. Seria a própria Terra, planeta limitado que não suporta mais um projeto de crescimento ilimitado. A visível mudança climática, objeto de discussão e de tomada de decisão (praticamente nenhuma) das últimas COPs da ONU, o esgotamento crescente dos bens e serviços naturais, fundamentais para a vida (The Earth Overshoot) e a ameaça de  rompimento das principais das nove barreiras do desenvolvimento que não podem ser rompidas a preço do colapso da civilização, são alguns indicadores de uma iminente tragédia. 

Um número significativo de especialistas em clima  afirma que chegamos tarde demais. Com o já acumulado de gases de efeito estufa na atmosfera não poderemos conter a catástrofe, apenas, com ciência e tecnologia, minorar seus efeitos desastrosos. Mas a grande crise irreversível  virá. Por isso se fizeram céticos e  até tecno fatalistas.

Seremos pessimistas resignados ou, no sentido de Nietzsche, adeptos da “resignação heroica”? Estimo, como dizia um pré-socrático: devemos esperar o inesperado, pois, se não o esperarmos, quando ele vier, não o perceberemos. O inesperado pode ocorrer, dentro da perspectiva quântica: o sofrimento atual por causa da crise sistêmica não será em vão; ele está acumulando  energias benfazejas que, ao atingir certo nível de complexidade e de acumulação, darão um salto para uma outra ordem mais alta com um novo horizonte de esperança para a vida e para o planeta vivo, Gaia, a Mãe Terra. Paulo Freire cunhou a expressão esperançar: não ficar esperando que um dia a situação irá melhorar, mas criar as condições para que a esperança não seja vazia, senão que, com nosso empenho, a façamos efetiva.

Creio que esse salto, com a nossa participação, poderá ocorrer e estaria dentro das possibilidades da história do universo e da Terra: do atual caos destrutivo, podemos passar para um caos generativo de um novo modo de ser e de habitar o planeta Terra. A arca de Noé está sendo construída pelos movimentos ecológicos, pelo eco feminismo e pelos modelos alternativos de economia circular, pelos grupos políticos engajados numa biocivilização. É nisso que creio e espero, reforçado pela palavra da Revelação que afirma: “Deus criou todas as coisas por amor porque é o apaixonado amante da vida”(Sabedoria 11,26). Ele não permitirá que terminemos assim tragicamente. Ainda viveremos sob a luz benevolente do sol.

***

Imagem de capa: Jeso Carneiro / Flickr

Argumento de ameaça comunista para justificar golpe militar em 1964 é falso

Como resposta ao chamado de militares no governo do Brasil para celebração dos 57 anos do golpe militar de 1964, que levou aos 21 anos de ditadura violenta e sangrenta no País, líderes religiosos e fiéis, apoiadores do governo federal, ocuparam espaços digitais religiosos neste 31 de março, exaltando a ação golpista. Um dos argumentos mais utilizados para se defender e exaltar o golpe que derrubou o Estado democrático, é a de que os militares salvaram o Brasil do comunismo que seria implantado. Há ainda outras justificativas como fim da corrupção, ajuste positivo da economia e redução da violência. Foram publicadas diversas mensagens como esta:

Fonte: Facebook/Reprodução

Bereia reproduz aqui conteúdo publicado pelo projeto de verificação de notícias UOL Confere, construído a partir da pergunta: “o golpe militar de 1964 foi dado para evitar que o Brasil escapasse das garras do comunismo?” e o material “10 mentiras sobre a ditadura militar no Brasil” produzido pela Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Nunca existiu ameaça comunista no Brasil

Jornalistas e especialistas mostram que esta justificativa usada até hoje esconde documentos do próprio Exército que mostram que a “ameaça comunista” no país não era real. Diz o texto do UOL Confere:

O mundo vivia em meio ao contexto da Guerra Fria, cenário de polarização internacional que teve, entre outros elementos, embates sobre capitalismo, socialismo e comunismo. A agenda reformista do então presidente João Goulart levou alas conservadoras a temerem uma proximidade com regimes comunistas implementados em outros países, como Cuba. Mas um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental. Os militares também analisaram que não havia clima para a instalação do comunismo por conta das contradições “por demais violentas” do Brasil e que o povo não aceitaria “pacificamente as influências externas”.

A ditadura durou 21 anos no Brasil. Em 1968 foi decretado o AI-5 (Ato Institucional nº5), que endureceu a repressão, cassou mandatos, fechou o Congresso, e ampliou perseguições, torturas e mortes de opositores. A Ditadura usou imprensa e ameaças à “ordem” e à “moral” para impor o AI-5.

Historiador e professor da UFRJ, Carlos Fico disse à BBC, em 2019, que tentativas de implantar o comunismo no Brasil partiram de movimento tímidos e sem apoio da maioria da população. Ele também avaliou que mesmo as ações armadas de movimentos de esquerda não foram suficientes para ameaçar os militares.

10 mentiras sobre a ditadura

1) Não havia corrupção durante a ditadura

Apesar do combate à corrupção ter sido uma das bandeiras defendidas pelos militares ao darem o golpe de 1964, não faltaram superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências, entre outras ilicitudes ao longo dos anos de chumbo.

A condição autoritária do regime militar formava as condições ideias para que a corrupção acontecesse. Sem nenhum tipo de conselhos de fiscalização, com o Congresso Nacional dissolvido, as contas públicas não eram sequer analisadas. Além disso, os escândalos de corrupção eram abafados por conta da censura.

Hoje em dia, documentos comprovam que os militares mantinham relações com o contrabando, negociavam por meio de acordos milionários as nomeações de governadores dos estados e ministros, além de receberem propinas milionárias por meio de empreiteiras. Também cometiam irregularidades imobiliárias e outras ilegalidades.

2) Só morreram vagabundos e “terroristas”

Os movimentos sociais tiveram enorme protagonismo no enfrentamento à repressão dos militares durante a ditadura. Estudantes, professores, sindicalistas, indígenas e membros de organizações sociais que se mobilizavam contra as arbitrariedades do regime eram considerados subversivos e consequentemente, eram perseguidos.

Movimentos sociais e de organização da classe trabalhadora se tornaram ilegais e passaram a acontecer na clandestinidade. A União Nacional dos Estudantes teve líderes e membros desaparecidos. Outras formas de resistência, como a luta armada, obrigaram muitos militantes a sobrevivência na clandestinidade.

Mas o mais importante é apontar que os militantes torturados e mortos eram sujeitos, trabalhadores, estudantes, que tinham uma vida profissional, acadêmica e família. Eles acreditavam em uma causa e escolheram atuar na luta social em prol dessa causa e foram assassinados por isso.

Mesmo assim, não foram apenas os membros de grupos oposicionistas que foram atingidos. Familiares, vizinhos, trabalhadores comuns e camponeses também foram perseguidos e assassinados pelos militares. Alguns dos casos mais chocantes envolvem crianças filhas de presos políticos, que foram sequestradas, presas e torturadas junto aos pais por serem consideradas “subversivas” e “perigosas à Segurança Nacional”.

3) A tortura foi excesso de alguns

Quando militantes eram capturados pelos militares, passavam por sessões de tortura com requintes de crueldade para que revelassem informações. Há anos historiadores refutam a tese de que a tortura foi exclusividade de militares “linha dura” e, recentemente, um documento secreto de 1974, liberado pelo Departamento de Estado dos EUA confirma a teoria de que os presidentes não apenas sabiam, como tomavam para si a responsabilidade sobre as execuções e torturas.

No documento, o ex-presidente Ernesto Geisel, visto como moderado por alguns, aprova uma política de “execuções sumárias” de adversários da ditadura militar. O ex-presidente orienta o então chefe do Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, a autorizar pessoalmente os assassinatos.

Principalmente depois do AI-5, em 1968, a tortura foi uma prática sistemática nas instalações do Estado que exigia recursos, equipamentos e pessoal qualificado. Até médicos participavam das sessões de tortura para reduzir os danos físicos perceptíveis e avaliar a resistência dos presos para garantir que pudessem continuar sendo violentados.

Uma apostila do Centro de Informações do Exército intitulada Interrogatório reconhecia a necessidade de “métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”. E para transmitir as técnicas de como promover as sessões de tortura, os militares até organizaram aulas práticas, nas quais presos políticos sofreram as violências enquanto uma plateia de sargentos e oficiais aprendiam as técnicas.

Documento importante sobre o assunto foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, desenvolvido clandestinamente entre os anos de 1979 e 1985. Mais de 30 brasileiros liderados por Dom Evaristo Arns e outros religiosos sistematizaram informações de processos do Supremo Tribunal Militar que revelaram a repressão política no Brasil encoberta até o momento. O relatório completo e o livro publicado pela Editora Vozes denunciam perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas praticadas em delegacias, unidades militares e locais clandestinos mantidos pelo Estado. Os documentos foram fundamentais na identificação e denúncia de torturadores.

4) Naquela época tinha saúde e educação

Para tentar diminuir os índices de analfabetismo da população brasileira, que nas décadas anteriores à ditadura incluía quase metade da população brasileira maior de 15 anos, o regime militar instituiu o Movimento Brasileiro para Alfabetização. A metodologia do Mobral foi uma tentativa de frear o método do educador Paulo Freire, que ganhava notoriedade e era um sucesso reconhecido e aplicado em todo o mundo.

Já para impor a ideologia do regime, foi implementada a Doutrina de Segurança Nacional nas escolas do país que, entre outras coisas, substituía as disciplinas de Filosofia e Sociologia por “Educação, Moral e Cívica”.

No entanto, o regime militar parecia interessado apenas em controlar o conteúdo que era aprendido nas escolas. A Constituição de 1967 retirou a obrigatoriedade constitucional de um valor mínimo em gastos sociais, o que acarretou, entre 1965 e 1975, uma queda de 6,2% do Orçamento Geral da União em educação e uma redução de 3,31% do orçamento em saúde entre 1966 e 1974. A precariedade do sistema educacional de antes do período militar se manteve e foi ampliada.

Em relação à saúde pública, não existiam garantias constitucionais da saúde como um direito social. Não existia o Sistema Único de Saúde (SUS) e também não existiam planos de saúde particulares. Durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil, imperou uma política de Estado de incentivo à privatização da área, ou seja, a saúde era tratada pelos militares como um negócio (que por sua vez, era altamente lucrativo). Só tinha acesso à assistência médica quem tinha carteira assinada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que era realizado, em grande parte, por clínicas privadas. Quem não estivesse incluído neste grupo privilegiado, era tratado como indigente.

5) A ditadura foi boa para a economia

Mais um argumento comum dos defensores da ditadura é a conquista do “milagre econômico” ocorrido na época, principalmente entre os anos de 1968 e 1973. De fato, os números apontam um crescimento exponencial do Produto Interno Bruto (PIB). Mas pouco se aponta que esses números beneficiaram os empresários às custas dos salários dos trabalhadores e de um alto endividamento externo.

Para que o “milagre” funcionasse, os militares implementaram medidas que continham o salário dos trabalhadores, mudando a fórmula que previa o reajuste salarial por meio da inflação. “É preciso crescer o bolo para depois distribuí-lo”, é o que afirmavam o ministro da Fazenda dos militares, Antônio Delfim Neto. Para que não houvesse oposição popular às medidas, foram implementadas leis proibindo greves e sindicatos e movimentos sociais eram reprimidos sistematicamente.

Os ganhos reais do crescimento econômico foram distribuídos de forma desigual, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social a níveis nunca vistos antes.

6) Não tinha violência urbana

É sempre importante lembrar que não existia liberdade de imprensa durante o período militar, já que a censura estava estabelecida dentro da burocracia do regime. Ou seja, o que não estava de acordo com os interesses do governo militar, simplesmente não era noticiado.

No que tange a violência urbana, o regime criou a imagem pública de que o país vivia um período de paz quando na realidade, uma escalada do aumento da violência assolava os principalmente centros urbanos. Os dados sobre o número de homicídios no período apontam um aumento exponencial. Em São Paulo, por exemplo, em 1968, a cidade registrou 10,4 mortos por 100 mil habitantes, o que é considerado nível epidêmico pela Organização Mundial da Saúde.

Em resposta ao aumento da violência urbana, agrupamentos policiais começaram a formar grupos de extermínio, criados explicitamente com o objetivo de assassinar bandidos comuns. Foram inúmeras as estratégias de ação desses grupos, uma delas era retirar presos comuns das celas e executá-los em estradas vazias.

Esse tipo de prática aumentou a criminalidade nas periferias, já que os homicídios iniciam uma cadeia de vingança e também porque o assassinato se mostrava como um meio possível de resolver disputas simples ou reagir a ameaças.

7) Antes da ditadura, o Brasil estava à beira do comunismo

No Brasil do início da década de 1960, o presidente João Goulart, defendia uma proposta de governo com uma série de reformas estruturais no Brasil: as Reformas de Base. As medidas se estenderiam às áreas educacional, fiscais, agrárias, entre outras.

A elite agrária e o empresariado que apoiaram o golpe, viam as medidas de Jango como ameaças e criaram conspirações sobre a possibilidade de um golpe socialista do presidente e sua suposta associação à URSS. As relações de Jango com as questões trabalhistas e a proximidade que ele havia estabelecido com ideias sobre justiça social fez com que as alas mais conservadoras das Forças Armadas pedissem a cabeça do presidente.

Jango não era comunista, nem socialista. O presidente democraticamente eleito já havia sido ministro de Estado de Juscelino Kubitschek e de Getúlio Vargas, portanto se aproximava de um espectro mais populista do campo político.

Em depoimento a um historiador americano no ano de 1967, quando o ex-presidente se encontrava exilado no Uruguai, Jango relatou acreditar que houve um “envenenamento” de sua imagem para a opinião pública. “Justiça social não é algo marxista ou comunista”, afirmou o ex-presidente, que acreditava ainda que seu maior crime foi tentar combater a ignorância. A entrevista só veio a público 47 anos depois, em 2014, quando foi publicada pelo jornal Folha de São Paulo.

8) A ditadura foi um governo só de militares

Conhecida principalmente pelo governo de militares, a ditadura que vigorou no Brasil passou a ser chamada por inúmeros historiadores de civil-militar, como forma de apontar a participação direta de empresários, imprensa e outros setores da sociedade civil no regime. Especialmente os empresários tiveram um papel decisivo no regime, contribuindo com dinheiro vivo, financiando propagandas, delatando e perseguindo trabalhadores envolvidos com movimentações sindicais, permitindo que militares se infiltrassem nas fábricas e até utilizando as dependências das fábricas como local para torturas.

Lúcio Bellentani era militante do Partido Comunista Brasileiro e trabalhou na Volkswagen entre os anos de 1964 e 1972. Ele contou, na Comissão da Verdade, que começou a ser torturado dentro das dependências da fábrica, no dia 28 de abril de 1972. Com a abertura de importantes arquivos da ditadura, ficou evidente que a relação entre a empresa e o regime não era pontual, mas sim sistemática: foram encontrados mais 400 documentos assinados por responsáveis da empresa.

Um caso muito conhecido de relação direta entre empresários e o regime militar é o de Henning Boilesen, executivo do grupo Ultra. O sádico dinamarquês que chegou a ser presidente da Ultragaz não apenas levantava recursos para as operações de repressão, como participava pessoalmente das sessões de tortura. Ele foi o responsável por trazer, dos Estados Unidos, um aparelho de tortura por eletrochoque que depois se popularizou entre os militares.

9) Todos os militares apoiaram o regime

Apesar da imagem aparentemente coesa, os militares não formavam um grupo homogêneo e bem coordenado. Na verdade, as Forças Armadas estavam divididas. De um lado, haviam oficiais fiéis a Jango nos altos postos do Exército e no também no baixo escalão. Em contrapartida, o lado conservador também era composto por dois grupos: um mais legalista, que apostava em uma intervenção cirúrgica para retirar da política “corruptos” e “subversivos”, e outro mais “linha dura”, mais preocupado com a “revolução” anticomunista.

Com o acirramento das disputas políticas em 1964, vários cenários golpistas se esboçaram, e com o golpe praticado pelo lado conservador, houve resistência em São Paulo, no Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul. Em consequência, os militares resistentes também foram perseguidos. Estima-se que cerca 7500 membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à ditadura.

No entanto, o entendimento de que também houve perseguição dentro das Forças Armadas não valida a tese de que alguns presidentes militares eram mais brandos do que outros. Durante o governo dos quatro presidentes militares, opositores foram perseguidos, houve censura, direitos políticos foram cassados, dentre outras violações de direitos humanos.

10) A Igreja Católica apoiava o regime

A Igreja Católica teve um papel fundamental de apoio para consolidação do golpe militar no Brasil. A moralidade e a ordem conservadoras defendidas pelos militares se alinhavam à movimentos religiosos como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada e financiada por setores da elite empresarial-militar que acreditavam na “ameaça do comunismo”.

No entanto, apesar de profundamente hierárquica, a Igreja Católica também tem fissuras internas. Durante o período militar, um movimento importante dentro da igreja atuou diretamente contra o regime. Orientados pela Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reivindicavam melhorias nas condições de vida da população. O movimento combatido pela própria Igreja por ser porta de entrada para ideias subversivas.

Além disso, já na década de 1970, clérigos mais progressistas, como D. Hélder Câmara, denunciavam internacionalmente as torturas e violações de direitos humanos cometidas pela Ditadura no Brasil. Quando as repressões da ditadura começaram a atingir a cúpula da Igreja, os clérigos se reuniram e escreveram uma carta ao presidente Médici em protesto. Posteriormente, a Igreja também criou uma Comissão de Justiça e Paz, o projeto Brasil: Nunca Mais, que coletou processos judiciais movidos contra presos políticos.

A busca da verdade

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei federal em 2012, 424 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura militar. A Lei da Anistia (1985) perdoou crimes políticos cometidos por agentes do Estado no regime e é duramente criticada pela ONU e por outros organismos internacionais. Entre os mortos e desaparecidos citados na CNV estão sete cristãos.

Em relação às violações de direitos sofridas por pessoas cristãs (capítulo 4 do volume II do Relatório Final da CNV), pelo menos 352 cristãs e cristãos foram atingidos.

273 pessoas católicas foram presas, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral, pessoas leigas da igreja. Entre católicos, 18 foram assassinados ou se tornaram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas); 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura. Um bispo foi sequestrado e humilhado (deixado nu na rua com o corpo pintado) por agentes do Estado, D. Adriano Hipólito, da Diocese de Nova Iguaçu. A Catedral de Nova Iguaçu teve altar explodido.

22 evangélicos foram presos, dois pastores – 13 eram metodistas, sete presbiterianos, uma luterana e um assembleiano; sete foram assassinados ou desaparecidos (quatro metodistas e três presbiterianos), 14 foram banidos, expulsos ou exilados a maioria depois de prisão e tortura.

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O Coletivo Bereia classifica como falsa toda e qualquer publicação que apresente argumentos de exaltação de uma ditadura. Episódios como este na vida de um país devem ser lembrados como processo educativo para que sejam superados e não mais se repitam.

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Foto de capa: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Reprodução

Nem normal, nem novo normal, mas bem viver

*Publicado originalmente no IHU em 07 de Julho de 2020.

Metade de 2020 vai passando e estamos diante de uma pandemia gravíssima. Em alguns lugares do mundo com mais gravidade: Brasil, por exemplo; outros com menos: Nova Zelândia, por exemplo. E a crise econômica que já estava instalada antes e está piorando durante, será agravada depois da pandemia afetando todo planeta.

De janeiro até agora uma pergunta tem se repetido: “Como será a vida no pós-pandemia?” As primeiras previsões, por parte de muitos, era otimista: “Teremos um mundo melhor”. Mas o tempo foi passando e fomos assistindo situações das mais grotescas.

Muitos estão comemorando a volta ao “normal”. Outros falam de um “novo normal”. Apontaremos aqui para outra direção. Talvez tal direção seja “um sonho acordado da mente humana”, como diria o filósofo L. Feuerbach, quando se referia à religião, lá no século dezenove. Contudo, antes de chamar a utopia do Bem Viver de irrealizável, pelo menos se pergunte o que é “normal” ou o tal “novo normal”. Faça um esforço, se possível, de olhar a realidade e verificar se o que está acontecendo é uma situação na qual toda a vida que peregrina por este planeta vai em direção, no modelo que predomina, isto é, de relações capitalistas, de conduzir a natureza, e nela o ser humano, a um grau superior de convivência e harmonia. A um grau no qual possamos afirmar que há condições de alcançar dignidade fundamental de existência para todos os seres vivos. O que seria o “normal” ou o “novo normal”?

1. O normal

Fui ao dicionário buscar sinônimos: habitual, natural, comum, usual, corriqueiro, frequente, ordinário, trivial, banal, vulgar.

Seria habitual não se espantar diante de quase 70 mil mortos e daqui uns dias bem mais? Ou buscar aquelas explicações estapafúrdias que dizem: “Durante o ano morre muito mais gente!”? Lembrando que a COVID-19 já matou muitos mais gente que qualquer outra doença, e mesmo acidentes de trânsito, e antes do fim do ano. Por que foi habitual o espanto com a morte de 71 pessoas no acidente com avião da Chapecoense?

É natural que diante de uma pandemia com alto índice de contágio saiamos às ruas para comprar quinquilharias, ou algo que não seja realmente necessário? Mas alguns podem dizer: “Minhas meias estão velhas, preciso ir ao shopping adquirir meias novas. Ora, como posso ser feliz sem meias novas?”. É natural pensar assim?

É usual agredir pessoas que se dedicam a salvar vidas porque estas estão dizendo que o seu parente morreu de COVID-19 e não de infarto?

O que nos leva a agir de forma trivial com pessoas que pensam diferentes de nós?

Vivemos relações na qual naturalizamos o que não é natural. Odiar é comum, mas não é comum cultivar o ódio. É frequente que cometamos erros com determinados saberes. Por exemplo, posso não saber qual é capital do Butão, mas afirmar que a terra é plana é um pouco demais, não é normal. Vivemos uma banalização do saber e, muitas vezes, admiramos o vulgar.

Ora, em mundo onde um por cento da população detém a maior parte da riqueza produzida, é fundamental que se encontre entre os outros noventa e nove por cento, aliados e aliadas, conscientes ou inconscientes, que digam ser a vida destes um por cento normal.

É normal que depois da pandemia voltemos aos níveis de consumo anteriores, que continuemos a olhar para o nosso próprio umbigo comprando, comprando, e comprando? Inclusive comprando muito remédio para nos manter de pé para continuar comprando? Quem acredita que um crescimento infinito é possível em um mundo finito, conclui um economista americano em 1973, ou é louco ou é economista.

Podem dizer ainda: “É só mais uma pandemia. Morrerão milhares, mas depois a vida continua normal”. É o “normal” que está nos matando, e não apenas a COVID-19. É o normal que está aumentando o número de suicídios no mundo, que está fazendo crescer, assustadoramente, o consumo de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, inclusive drogas vendidas nas farmácias livremente. Enfim, é o normal que está aumentando a desigualdade planetária e você acreditando que um dia será uma pessoa normal.

2. O novo normal

Aqui existe uma enorme dificuldade. O Google não ajuda muito. As possibilidades são quase infinitas. Um montão de intelectuais quer ser o primeiro a definir o “novo normal” no pós-pandemia. Poucos vão em direção contrária, e os que vão quase não são ouvidos, pois são falas que dizem, por exemplo, que não será possível continuar a organizar a sociedade planetária em base ao que se chama “desenvolvimento”, mesmo que seja o tal “desenvolvimento sustentável”.

Ouvir um dirigente de futebol afirmar que a federação montou um protocolo invejável para que as partidas fossem absolutamente seguras é altamente reconfortante (sic). Poxa, não mais o normal, é um “novo normal”.

Alguns poucos estão pensando, de fato, em um novo modelo de sociedade, pois tudo indica que o normal ou novo normal não será capaz de responder a crise civilizatória que está aí. E se novas pandemias surgirem, pior ainda.

De um lado temos políticos e partidos, nos quais tem gente boa, batendo cabeça para definir quem vai ocupar o cargo de “gerente” na prefeitura, no estado ou no país. Sim, gerentes da estrutura de poder do capital. O poder é econômico e pouco governamental.

Do outro lado trinta por cento da população planetária que não tá nem aí para o resultado das relações de produção: “farinha pouca meu pirão primeiro”. São aliados dos tais um por cento que realmente tem poder e ainda podem arrastar os que precisam se alimentar agora, pois estes não podem esperar que a sociedade resolva as contradições sociais rapidamente.

Ora, vem logo a pergunta: “o que fazer então?”.

3. O Bem Viver

Qualquer pessoa que afirmar ter uma solução para a crise civilizatória que estamos vivendo, seria como uma pessoa que afirma saber física quântica. Porém, o fato de não ter uma resposta pronta e acabada não significa que devamos nos render ao que esta aí. Precisaremos pensar de forma processual e por etapas. Os visionários muitas vezes sofrem muito. Percebem a necessidade de mudança com profundidade, mas ainda não conseguem propor exatamente um caminho que possa contagiar a maioria, pois a maioria ainda pensa dentro de uma estrutura mental que pode ser chamada de “normal”.

É fato: “esta economia mata”, diz o Papa Francisco. Assim sendo, é preciso repensar o modelo. E assim, ainda na linha de Francisco, diante de uma “terceira guerra mundial em parcelas que instalou um genocídio”, será necessário reorientar o caminho que a humanidade está fazendo.

E, por incrível que pareça não se trata de criar algo absolutamente novo, mas de resgatar uma sabedoria que pode ser chamada, em linhas gerais, de Bem Viver.

Os povos tradicionais encontraram uma forma de sobreviver que possibilitou uma força de resistência capaz de passar pela dominação colonial sem desaparecer. Uma das expressões que os povos andinos usam para denominar este modo de vida é sumak kawsay, que pode ter como uma tradução possível o Bem Viver. Trata-se de buscar relações humanas calcadas não na acumulação, no desperdício, em sugar da natureza tudo o que for possível para um modo de vida opulento, mas na reciprocidade, na solidariedade, na empatia e na harmonia com o conjunto da natureza.

Começa a surgir gente que pensa este modelo em sintonia com a situação da humanidade no presente estágio civilizatório. Como exemplo podemos citar o equatoriano Alberto Acosta, o uruguaio Eduardo Gudynas, e o boliviano Pablo Solon, entre outros e outras. Também em outras latitudes, como na Europa se pode citar a francesa Genevieve Azam e também francês Serge Latouche na linha do decrescimento, isto é, na afirmação de que o modelo desenvolvimentista está fadado a esgotar a vida planetária.

Muitos podem dizer: “Doce utopia, muito bonito, contudo irrealizável”. Talvez. Contudo, estamos vivendo relações capitalistas faz tempo. De forma mais agressiva nos últimos duzentos anos. O socialismo real acabou não se configurando como alternativa. Houve, sem dúvida, crescimento humano neste processo. Porém, também sem dúvida, tal crescimento custou caro. Não estaria na hora de redirecionar o que se entende por “progresso” na direção de um maior equilíbrio nas relações que compõem a vida no planeta? Vamos “pagar para ver” para onde o “deus mercado” nos conduzirá?

Sim, precisaremos pensar e agir de forma processual. Precisaremos estabelecer etapas. Precisaremos encontrar a intercessão que une todos e todas que acreditam em outro mundo possível. Precisaremos na etapa atual, por exemplo, defender a democracia como instrumento político que permita o debate e a configuração do novo horizonte. Mas não podemos nos render ao modelo político representativo que está esgotado. Não podemos mais confiar totalmente no modelo econômico totalmente extrativista.

Seguindo aquela ideia gandhiana, precisaremos ser a mudança que desejamos no mundo. Anciãos, adultos e jovens, homens e mulheres, deveremos constituir um novo padrão de vida, não um novo normal. Quanto tempo será necessário? Não há previsão possível. Previsível é que da forma como está não haverá futuro. Trabalhemos agora no terreno pedregoso para que outras gerações possam plantar, e outras ainda possam colher.

É interessante que muita gente que prega o normal se afirma cristã. Termino esta reflexão no domingo no qual o texto bíblico é o Evangelho de Mateus 11,25-20. Neste trecho Jesus faz uma oração ao Pai dizendo:

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos”.

Parece que boa parte dos cristãos não confia muito nisso. O Papa Francisco tem sido uma grande exceção. Ele tem afirmado que nada pode ser feito para o povo, mas somente com o povo, isto é Bem Viver, isto é o UBUNTU da tradição africana: eu só posso ser se você for comigo. Essa é a nossa esperança, sem messianismo, sem salvadores da pátria. Quem viver verá.