A política como picadeiro do caos
Se até há pouco tempo a política necessitava de programas, propostas e árduo convencimento de parcela da população em torno de um denominador comum, hoje, ao que parece, tudo isso é dispensável. A política passou a ser disputada com regras que escapam ao debate público e reina à revelia nos extremos, onde o diálogo é asfixiado. A política tornou-se binária e alimenta-se de inimigos paridos por tramas conspiratórias e fake news, servindo-se das redes sociais para lastrear impiedosamente difamações, medos e absurdos que implodem, a um só golpe, a coerência, a lógica e os fatos.
As mídias sociais foram transformadas em um poderoso instrumento no jogo político, a ponto de colocar em risco a forma clássica de fazer política, além de ameaçar as estruturas da democracia e disseminar o caos. O que importa são as emoções despertadas nas pessoas, preferencialmente aquelas que tocam no ressentimento e no estoque de raiva que diariamente são desaguados nas redes sociais a espiar os culpados dos problemas que afetam o mundo.
A política passou a trabalhar com farto material até então pouco manifesto: a cólera das pessoas. Não se esperam mais análises cuidadosas dos políticos a esboçar diagnósticos dos problemas que afetam a vida das pessoas com o objetivo de oferecer prognósticos em tempo de eleição. Não importam as pautas políticas, os problemas a serem resolvidos, mas, sim, encontrar culpados e queimá-los vivos na fogueira digital dos novos e impiedosos inquisidores. Basta ofertar a imagem do inimigo numa postagem acrescida de “Basta!”, “Você irá se chocar!”, “Vergonhoso!” “Compartilhe!” “Vamos chegar a um milhão de compartilhamentos!”. Isso é o bastante para recrutar uma legião de seguidores rasos no pensamento e na crítica.
A política do convencimento deu lugar à política do engajamento. Trilhada por algoritmos, a mensagem que chega ao cidadão digital não apenas reforça-lhe a convicção, como também acirra-lhe com uma dose generosa de raiva pelo estado da arte das coisas, incentivando o compartilhamento, mesmo que o conteúdo seja falso.
O rancor, que antes era analógico, limitava-se ao âmbito de relações interpessoais, em grupos limitados. Hoje, esse sentimento é disseminado de forma digital, transformando os temas políticos em trincheiras que reforçam a animosidade e maculam qualquer tentativa de diálogo ou de consenso. A velha política partidária ficou no pretérito assim como as antigas videolocadoras. É o reinado da política na era da Netflix.
Os partidos cederam aos algoritmos. Agora, o cidadão carrega no bolso um aparelhinho conectado às verdades que explicam de forma simplificada a complexidade do mundo. Empoderado, ele dispensa os especialistas, ludibria dados e estatísticas. Potencializa seu ceticismo na ciência e compartilha com os seus, a exemplo do que ocorreu na Itália, que certos governos patrocinam a aviação comercial mundial com o objetivo de espalhar agentes químicos e biológicos na atmosfera. E para reforçar a veracidade do que afirma, envia uma foto com rastros brancos deixados nos céus por essas aeronaves a serviço dos inimigos que combate.
A nova política está encapsulada nas mídias sociais, nos seus novos atores, desde youtubers indignados que multiplicam a audiência de suas teorias excêntricas a outros tantos que revolvem e instigam a raiva coletiva, conseguindo, aos poucos, alastrar uma epidemia colérica alimentada virtualmente.
Na política dos algoritmos, os elementos centrais da democracia como a formação de consensos, o debate autêntico e o respeito ao contraditório, estão ameaçados. Prospera-se a desintegração e a desintermediação em todos os domínios, transformando a política em picadeiro do caos, em que vale vociferar o ódio, a raiva e o ressentimento, menos, é claro, o bom senso.
(Artigo publicado na Folha de Londrina, edição de 25 e 26 de janeiro de 2020)