Vereador e portal de notícias enganam sobre proposta de leitura obrigatória da Bíblia em escolas

O uso da Bíblia em escolas tem sido um tema recorrente em época de eleições municipais. As polêmicas que esse tema suscita são usadas como ferramenta de engajamento em mídias digitais e de aceno de políticos às suas bases eleitorais. O caso mais recente foi o de um vereador de Cuiabá (MT), que foi repercutido no portal Metrópoles, no RD News, parceiro do primeiro em Mato Grosso, e no G1 do estado

O vereador em questão, Rodrigo Arruda e Sá (PSDB), publicou um vídeo em que pede apoio da população para aprovar o projeto de lei que inclui a leitura bíblica como recurso paradidático em salas de aula do município. O parlamentar é evangélico (Comunidade das Nações em Cuiabá) e costuma publicar conteúdo sobre fé em seu perfil do Instagram.

Imagem: Reprodução Metrópoles

Imagem: Reprodução RD News

Projeto de Lei contradiz discurso de vereador e da notícia divulgada

Ao longo do vídeo publicado no Instagram, o vereador usa termos muito comuns ao discurso ultraconservador na política como “resgate da família”, “hino nacional na escola”, “valores da família”. Ao se referir à Bíblia, comete um deslize ao dizer que o livro sagrado dos cristãos Bíblia foi escrito “décadas atrás”. 

Porém,  o projeto não é exatamente o que o vereador apresenta no vídeo e é repercutido pelo portal de notícias Metrópoles. Sá diz: “Aqui nós vamos colocar um projeto de lei que é obrigatório o estudo da Bíblia, a leitura bíblica nas escolas municipais e particulares de Cuiabá”. Porém, o texto do Projeto de Lei não inclui a noção de obrigatoriedade.

O Projeto de Lei mencionado pelo vereador é o 142/2024, que foi apresentado em 10 de julho de 2024, e já foi despachado às Comissões da Câmara Municipal de Cuiabá. O texto do projeto menciona que “a leitura de textos bíblico poderá ocorrer nas escolas” (grifo nosso) e só cita a palavra “obrigatoriedade” no Art. 2º, para se referir à negação dela, em que diz: “Será sempre garantida a liberdade de opção religiosa e filosófica, sendo vedada a obrigatoriedade de participação em qualquer atividade”.

Imagem: reprodução do projeto de lei. Fonte: Câmara Municipal de Cuiabá

Na própria legenda da publicação no Instagram o texto é mais ameno:  diz que o projeto de lei permite a leitura de textos bíblicos (destaque nosso) e menciona que “A participação será totalmente opcional, respeitando a liberdade religiosa e filosófica de cada um.”

Imagem: Reprodução Instagram

Nos comentários da publicação essa inconsistência continua, pois Sá interage com os comentários positivos e chama seus apoiadores para compartilhar a respeito do projeto para “ajudar a aprovar”, de forma a convocá-los para se engajar e aumentar a visibilidade do vereador nessa época pré-eleição.

Imagem: Reprodução Instagram

Observa-se na interação um discurso confuso por parte do vereador: ora dá a entender, com linguagem incisiva, que o projeto é pela obrigatoriedade do uso da Bíblia nas escolas, e pede pelo apoio de sua base, como que para participar de uma disputa; ora ameniza o discurso, deixando claro que a participação dos alunos seria facultativa e que preza pela liberdade religiosa.

Metrópoles e RD News não apuram o conteúdo e apenas divulgam a proposta, em breve nota, com o termo “leitura obrigatória”. G1-MT tem apuração, usa os termos como constam no PL – “poderá ser utilizada” – e ouviu um cientista político que avalia que a proposta não poderá ser aprovada por conta da laicidade do Estado.

Casos sobre a Bíblia e leis municipais e estaduais

O uso da Bíblia no espaço público para suscitar polêmicas já foi tema de apurações anteriores de Bereia. Em maio deste ano, por exemplo, houve o caso do prefeito de Sorocaba que produziu vídeos enganosos e afirmou  que o Tribunal de Justiça de São Paulo havia proibido a Bíblia nas bibliotecas da cidade por perseguição aos cristãos.  O ocorrido, diferentemente do alarde do prefeito, foi que a decisão da Corte apenas julgou inconstitucional obrigatoriedade do livro sagrado nas bibliotecas, dada a constitucional laicidade do Estado, ou seja, o Estado brasileiro não é confessional, por isso, instituições públicas no Brasil não podem professar e propagar preceitos ou símbolos de uma determinada religião, mas atuar para que todas tenham direito a suas práticas de fé. Casos semelhantes aconteceram, também em 2024, em São José do Rio Preto (SP) e, em 2021, no estado do Amazonas, este com decisão do STF

Além disso, Bereia também já verificou desinformação na forma como portais religiosos repercutiram a utilização da Bíblia em projeto de lei para redução de pena no Maranhão. Em 2020, também, foi publicada por Bereia uma checagem sobre diversos casos de desinformação a respeito de leitura bíblica nas escolas, de forma semelhante ao caso atual de Cuiabá. 

Bereia levantou que pelo menos dez PLs muito semelhantes à proposição do vereador Rodrigo de Arruda e Sá, foram apresentados em municípios dos estados do Amazonas, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, além do Distrito Federal. Todos visam incluir a leitura bíblica como “recurso paradidático” nas escolas, dos quais sete foram propostos ou aprovados em 2024, ano de disputa eleitoral. Possivelmente, estes PLs terão o mesmo destino dos demais e serão declarados inconstitucionais.

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Bereia classifica como enganosa a notícia do portal Metrópoles e do RD News, de que a leitura da Bíblia em escolas de Cuiabá poderá se tornar obrigatória por força do Projeto de Lei 142/2024. O discurso do vereador Rodrigo Arruda e Sá, divulgado em vídeo, contradiz o texto de sua autoria, que não prevê obrigatoriedade e torna facultativa a participação dos alunos em atividades que venham a usar o texto religioso como recurso paradidático, caso aprovada a proposta.

A retórica do parlamentar comunica diretamente com o público religioso e ultraconservador, afeito a discursos sobre a defesa de “valores da família” e da presença de símbolos da fé cristã na política. Dessa forma, ao proferir o engano de que a proposta tornará a leitura bíblica obrigatória é um aceno à sua base eleitoral em um ano de campanha eleitoral municipal.

A existência de ao menos uma dezena de proposições nos mesmos termos do projeto de lei de Arruda e Sá demonstra como parlamentares de diferentes regiões do Brasil estão atentos aos temas que conquistam o eleitorado religioso conservador. Mesmo que algum PL seja declarado inconstitucional pelo Judiciário, essas mesmas propostas ainda tendem a ser usadas como capital político para alimentar discursos de perseguição religiosa contra cristãos, como identificado em outros casos verificados pelo Bereia.

É importante que leitores e leitoras estejam atentos ao uso de símbolos religiosos como campanha política neste ano eleitoral. Especial atenção deve ocorrer quando isto é feito de forma sabidamente inconstitucional, para fins de uso posterior em discursos de pânico moral, e busca de audiência por produtores de notícias.

Referências de checagem:

RD News https://www.rdnews.com.br/legislativo/vereador-pretende-tornar-obrigatoria-leitura-da-biblia-nas-escolas-de-cuiaba/195912. Acesso em 15 jul 2024

Metrópoles https://www.metropoles.com/brasil/vereador-pretende-tornar-obrigatoria-leitura-da-biblia-nas-escolas Acesso em 15 jul 2024.

G1 Mato Grosso https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2024/07/11/projeto-de-lei-propoe-leitura-da-biblia-em-escolas-publicas-e-particulares-de-cuiaba.ghtml Acesso em 15 jul 2024

Instagram 

https://www.instagram.com/p/C9QlXZWvwva/ Acesso 15 jul 2024

https://www.instagram.com/p/CwbJ718OxHy/ Acesso em 15 jul 2024

Câmara Municipal de Cuiabá https://legislativo.camaracuiaba.mt.gov.br/processo.aspx?id=443503&tipo=103&autor=8146 Acesso em 16 jul 2024

Bereia

https://coletivobereia.com.br/materias-sobre-projeto-de-lei-que-inclui-leitura-da-biblia-para-reducao-de-pena-sao-imprecisas/ Acesso em 18 jul 2024

https://coletivobereia.com.br/e-verdade-que-stf-derrubou-obrigacao-de-biblia-em-escolas-e-bibliotecas-no-amazonas/ Acesso em 18 jul 2024

https://coletivobereia.com.br/eleicoes-2024-panico-sobre-plano-nacional-de-educacao-e-ideia-de-perseguicao-a-cristaos-preparam-terreno-para-eleicoes/ Acesso em 18 jul 2024

https://coletivobereia.com.br/prefeito-de-sorocaba-produz-videos-enganosos-ao-afirmar-perseguicao-aos-cristaos/ Acesso em 18 jul 2024

Câmara Legislativa do Distrito Federal https://ple.cl.df.gov.br/#/visualizar-documento/116203 Acesso em 18 jul 2024

Câmara Municipal de Porto Alegre https://www.camarapoa.rs.gov.br/processos/138772 Acesso em 18 jul 2024

Câmara Municipal de Limeira http://consulta.limeira.sp.leg.br/Documentos/ListarArquivosPdf/341502 Acesso em 18 jul 2024

Câmara Municipal de Belo Horizonte 

https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-proposicoes/projeto-de-lei/825/2024 Acesso em 18 jul 2024

Câmara Municipal de Fundão https://fundao.splonline.com.br/Sistema/Protocolo/Processo2/Digital.aspx?id=7028&arquivo=Arquivo/Documents/PL/PL62024-202402091439125105.pdf&identificador=37003000320038003A005000#P7028 Acesso em 18 jul 2024

Câmara Municipal Manaus https://static.poder360.com.br/2023/11/integra-pl-biblia-nas-escolas-camara-municipal-manaus.pdf Acesso em 18 jul 2024

Religião e Poder https://religiaoepoder.org.br/artigo/estado-laico/ Acesso em 19 jul 2024

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Foto de capa: StockSnap/Pixabay

Grande jornal noticia como verdade conteúdo de página de humor que ‘vende’ terrenos no céu

Uma suposta venda de terrenos no céu virou notícia, em 25 de junho passado, com a matéria “Igreja vende terreno no céu a R$ 550 por metro quadrado”, do jornal Estado de Minas. De acordo com o conteúdo, o anúncio foi publicado nas mídias sociais pela Iglesia del Final de los Tiempos (Igreja do Fim dos Tempos). 

O valor do metro quadrado no plano espiritual seria de US$ 100 (cerca de R$ 548 na cotação atual), que em conversão para o real fica abaixo da média dos imóveis em bairros nobres das capitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

A matéria traz, ainda, o texto do anúncio, publicado, originalmente, em espanhol no último 29 de maio, em uma página do Facebook: “O Profeta Andrés de la Barra encontra-se com Deus no Reino dos Céus e anuncia que temos terras celestes disponíveis, se quiser informações sobre as condições baixe o aplicativo e leia as informações oficiais. Lamentamos informar que se não respondermos à sua mensagem é por este motivo, da mesma forma que Sua Santidade San Andrés de la Barra nos deu ordem de não responder mensagens referentes a essa publicação”.

Imagem: Reprodução de Estado de Minas

Sites como Coluna Financeira, Notícias Uai, Folha de Italva e Fatos Desconhecidos reproduziram as informações publicadas pelo Estado de Minas, mas sem adicionar detalhes relevantes sobre o caso.

Uma paródia de igreja

A Iglesia del Final de los Tiempos está presente no Facebook, Instagram e Youtube, somando mais de cinco mil seguidores nas mídias sociais. Porém, ao contrário do que a matéria do Estado de Minas afirma, não se trata de uma instituição religiosa formal, mas, sim, de uma paródia – uma imitação jocosa criada para criticar aquilo que está sendo reproduzido. 

Perfis de paródia, também classificados como uma das modalidades de desinformação, são comuns na internet. Um dos mais conhecidos é o Apóstolo Arnaldo, personagem de um líder evangélico criado para satirizar pastores corruptos. Desse modo, o uso da ironia, o exagero e o destaque de traços do alvo da crítica são características das páginas de sátira e estão presentes nos conteúdos publicados pelos perfis da Iglesia del Final de Los Tiempos, de origem latina, em língua espanhola: 

  • venda de símbolos de fé;
  • constantes pedidos de doações em dinheiro;
  • uso de discurso que subjuga as mulheres.

Imagem: Reprodução do Facebook

Desta forma, a página da “igreja” no Facebook não anuncia apenas terras celestiais, mas também oferta certificados de:

  • heterossexualidade;
  • salvação;
  • salvação VIP;
  • indulgências;
  • virgindade (no valor de US$ 2500). 

Em uma publicação de 28 de maio, o profeta Andrés de la Barra, líder da “religião”, pede que as mulheres (chamadas de costelas, em alusão a história bíblica de que a mulher foi criada a partir da costela de Adão) vistam roupa íntima de renda branca durante a “verificação” de sua virgindade – um sabonete íntimo “cristão” vendido pela “igreja” seria de uso obrigatório para obter a certificação de pureza.

Imagem: Reprodução do Facebook

Imagem: Reprodução do Facebook

A página apresenta Andrés de la Barra não só como profeta, mas também como Messias e autor do Terceiro Testamento, um evangelho secreto e exclusivo de seus seguidores – um dos livros dessa “versão final” da Bíblia se chama “Alucinações”. No canal de Youtube da Iglesia del Final de los Tiempos, de la Barra prega contra futebol, ciclismo, academias e os personagens da franquia de jogos Pokémon. Além disso, no final dos vídeos ele pede que os fiéis paguem o dízimo até o dia cinco de cada mês para evitar multas por atraso.

Imagem: Reprodução do Youtube

Casos semelhantes

O anúncio de venda de lotes celestiais não é uma novidade: em maio deste ano, o site Boatos.org verificou um vídeo pelo qual um suposto pastor oferece terrenos no céu com valor a partir de R$ 100 mil. De acordo com a checagem, o conteúdo foi produzido pela página Igreja da Sagrada Oferta, que satiriza igrejas evangélicas.

Em 2022, uma suposta venda de balão com ar profético pela mesma “igreja” também passou pela apuração do Boatos.org, que verificou se tratar apenas de uma piada da página de paródia.

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Bereia conclui que é falsa a notícia de que uma igreja venda terrenos no céu. A matéria do jornal Estado de Minas se baseia apenas na postagem de uma página de humor que satiriza igrejas e religiosos – o conteúdo publicado se resume a montagens e imagens criadas por inteligência artificial. Não foi realizada a devida apuração jornalística para produzir informação qualificada sobre o caso. Pela forma com que se apresenta o texto, indica-se apenas a preocupação de captar leitores e leitoras, com a adequação dos valores em dólares para reais. 

Uma pesquisa atenta foi suficiente ao Bereia para afirmar que não foram encontrados indícios de que existam fiéis, templos ou espaços de culto reais da Iglesia del Final de los Tiempos.  

Bereia alerta leitores e leitoras para publicações sobre religião, em especial sobre grupos destacados no cenário público, como evangélicos, em tom sensacionalista, para captação de público, sem preocupação com informação digna. Tais textos servem apenas para reforçar preconceitos e intolerâncias. 

Referências de checagem:

Perfil Iglesia del Final de los Tiempos no Facebook: https://www.facebook.com/IglesiaApostolicaDelFinalDeLosTiempos. Acesso em 02 de julho de 2024.

Boatos.org: https://www.boatos.org/religiao/pastor-vende-balao-com-ar-profetico-ungido-por-r-500.html. Acesso em 08 de julho de 2024.

https://www.boatos.org/religiao/igreja-esta-vendendo-terreno-no-ceu-por-precos-a-partir-de-r-100-mil.html . Acesso em 08 de julho de 2024.

Youtube: 

https://www.youtube.com/@IglesiaIFT . Acesso em 02 de julho de 2024.

https://www.youtube.com/@arnaldotaveira/videos . Acesso em 05 de julho de 2024.

Site do Apóstolo Arnaldo:  https://www.apostoloarnaldo.com.br/sobre . Acesso em 05 de julho de 2024.

UNESCO Digital Library: Jornalismo, fake news & desinformação: manual para educação e treinamento em jornalismo – UNESCO Digital Library Acesso em 10 de julho de 2024.

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Foto de capa: Tumisu/Pixabay

ELEIÇÕES 2024 – Pânico sobre Plano Nacional de Educação e ideia de perseguição a cristãos preparam terreno para eleições

A cinco meses das eleições municipais de 2024, temas que aparecem com frequência em espaços religiosos ganharam destaque nas últimas semanas: a imposição do medo de doutrinação ideológica em escolas e a já conhecida suposta perseguição  contra cristãos e seus símbolos de fé. 

Em 7 de junho, a vereadora de Campinas (SP) Débora Palermo (PL),  membro da Igreja do Nazareno, convocou seus seguidores para uma reunião da Frente Parlamentar de Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes em Campinas, que discutiu os “riscos” do Plano Nacional de Educação (PNE) e do Sistema Nacional de Educação (SNE). 

Em vídeo publicado em seu perfil do Instagram, a vereadora evangélica diz que “coisas terríveis” são propostas pelo Plano: “Você sabe quantas vezes é usado o termo ‘LGBTQIA+’ e ‘gênero’ nessa proposta? E você sabe quantas vezes é usado o termo ‘língua portuguesa’ e ‘matemática’? (…) É um plano que é contra as escolas cívico-militares, é contra as escolas cristãs, é uma ideologia, uma manipulação de nossas crianças e isso não pode ocorrer. Você tem que conhecer, tem que discutir junto conosco esse plano aqui na segunda-feira”.

Imagem: Reprodução do Instagram

Esta é uma das muitas menções críticas alarmistas, desde a realização da Conferência Nacional de Educação (Conae), em janeiro passado. Na época, por exemplo, o deputado federal Mario Frias (PL-SP)  compartilhou um vídeo no Instagram com a frase “Esquerda projeta ditadura psicopedagógica para os próximos 10 anos” e a chamada que propaga pânico “Projetam seus filhos!!!”.

Imagem: Reprodução do Instagram

Estes discursos se assemelham ao proferido pela vereadora Débora Palermo e pelos palestrantes da 3ª reunião da Frente Parlamentar de Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes de Campinas.

A recorrência desses temas tem levado  o Bereia a verificar informações e conteúdos que se relacionam direta ou indiretamente com os fatos que ganharam repercussão neste mês de junho. Veja, a seguir, a checagem das afirmações de políticos influentes em grupos religiosos sobre o Plano Nacional de Educação e a Conferência Nacional de Educação, que fez recomendações para o texto final.

A repetição de falsidades e pânico moral no evento organizado pela vereadora de Campinas 

O conteúdo do vídeo divulgado pela vereadora Débora Palermo é apenas um extrato do conteúdo que permeou a reunião que a Câmara de Vereadores de Campinas realizou. Uma das palestrantes do evento é a advogada Adriana Marra, que foi candidata não eleita deputada federal pelo PROS de Minas Gerais em 2022, tendo recebido 1.230 votos. Durante a fala de Marra na reunião,  ela afirma que o PNE é parte de um projeto de poder cujas estratégias podem envolver orgias com crianças de tenra idade.

“Essas estratégias que são usadas hoje aqui no Brasil elas já foram usadas, já estão descritas, conhecidas há mais de um século. A começar na caída do Império Russo, quando quando o comunismo ascendeu lá as estratégias eram alienar as famílias, embebedar os pais, trabalhar com pornografia e orgias com crianças de tenra idade, a afastar essa população das igrejas”, disse a advogada. 

Bereia verificou que, além de não haver há qualquer registro histórico que comprove a alegação de Adriana Marra, a advogada recorre ao imaginário do “perigo comunista”, abordagem frequente entre partidários do extremismo de direita no Brasil. 

Imagem: Reprodução do Youtube

Outra palestrante da reunião promovida pela vereadora Débora Palermo, foi a professora e proprietária do Centro Educacional CONSER (Rio Verde – GO) Osvaldina Paula de Oliveira. Ao buscar mais referências sobre a escola, Bereia identificou um perfil no Instagram que tem nos destaques uma aba “Igreja” entre outras que também incluem “CONAE”. 

Imagem: Reprodução Instagram da Escola Conser

No destaque “CONAE” há muitas imagens e vídeos críticos à conferência, classificados como “absurdos”,  entre eles um vídeo, no qual uma participante associa a professora e escritora bell hooks à pedofilia. 

Imagem: Reprodução do Instagram da Escola Conser

A mulher relata no vídeo:

“Me chamou muito a atenção um colóquio com o título ‘Desconstruindo paradigmas na educação’, na perspectiva dessa senhora aqui [o nome bell hooks aparece na tela] Quem foi ela? Ela era uma feminista americana que escreveu mais de 30 livros e em um dos livros dela, o livro ‘Ensinando a transgredir – Educação Como Prática da Liberdade’,No capítulo onde trabalha ‘Eros, erotismo e o processo pedagógico’ ela conta que, em certo momento, ela sentiu atração erótica por um aluno e ela tinha aprendido a se reprimir, a se retrair, a negar esses sentimentos, porém ela decide encarar todas as paixões despertadas na sala de aula e a lidar com elas. Pois bem, era uma das salas, eu não podia participar de todas, alguns colegas participaram de outros colóquios e mostraram as suas perspectivas, essa é a minha experiência, e fica para que possamos pensar quais são esses paradigmas que se pretende desconstruir, erotismo? Sexualidade? Pedofilia? Eis a questão”.

Bereia verificou o capítulo do livro de bel hooks citado no vídeo e constatou que a fala oculta a informação de que o caso mencionado pela escritora se passa em uma universidade, o que não permite qualquer relação do caso refletido pela professora escritora com pedofilia.

Confira o trecho extraído das páginas 254 e 255 de “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”, de bel hooks:

“No primeiro semestre como professora de faculdade, havia na minha classe um aluno do sexo masculino que eu sempre parecia ver e não ver ao mesmo tempo. A certa altura, no meio do semestre, recebi um telefone de um terapeuta da faculdade que queria falar comigo sobre o modo como eu tratava esse aluno durante as aulas. O terapeuta me disse que os alunos haviam lhe contado que eu era anormalmente áspera, rude e simplesmente má quando me relacionava com aquele aluno. Eu não sabia exatamente de quem se tratava, não conseguia relacionar o nome dele com o rosto ou um corpo, mas depois, quando ele se identificou na sala de aula, percebi que eu sentia uma atração erótica por ele. E que meu jeito ingênuo de lidar com sentimentos que eu havia aprendido a nunca ter na sala de aula consistia em me esquivar (e por isso o tratava mal), reprimir e negar. Ultraconsciente, na época, de como a repressão e a negação podiam ‘ferir’ os alunos, eu estava determinada a encarar todas as paixões despertadas na sala de aula e a lidar com elas”.

Esta associação de pedofilia a movimentos de esquerda e grupos LGBTQIA+ é uma prática comum em conteúdos disseminados pela extrema direita, e explorada em espaços religiosos, como Bereia já checou. De forma semelhante, a noção inventada de “ideologia de gênero” é um dos temas mais usados por quem produz desinformação em espaços religiosos. Estes temas emergem com mais intensidade em períodos eleitorais, como estratégia de campanha e tem relação com a fala da vereadora Débora Palermo, gravada no vídeo checado pelo Bereia.

O que é o Plano Nacional de Educação (PNE)

A Constituição Federal estabelece, no artigo nº 214, a criação do Plano Nacional de Educação (PNE), um documento que deve reunir diretrizes, estratégias, objetivos e metas para o desenvolvimento da educação no país. Desse modo, a norma prevê, ainda, que todas as esferas federativas devem trabalhar juntas para alcançar os seguintes objetivos:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar;

III – melhoria da qualidade do ensino;

IV – formação para o trabalho;

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.

VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

Nestas bases, o PNE define as metas da educação brasileira para os próximos dez anos, sendo revisto e discutido ao fim do período – quando uma nova versão deve ser aprovada pelo Congresso. O plano atual foi sancionado em 2014 e estabeleceu as seguintes diretrizes:

  1. Erradicação do analfabetismo;
  2. Universalização do atendimento escolar;
  3. Superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da justiça social, da equidade e da não discriminação;
  4. Melhoria da qualidade da educação;
  5. Formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; 
  6. Promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;
  7. Promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país; 
  8. Estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade;
  9. Valorização dos profissionais da educação;
  10. Promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental. 

O documento com as propostas para a próxima edição do PNE, vigente de 2024 a 2034, foi aprovado em 30 de janeiro deste ano na Conferência Nacional de Educação (Conae), que foi alvo de uma intensa campanha de desinformação, como verificado por Bereia. De acordo com as checagens, influenciadores, associações de educação, parlamentares e perfis nas mídias sociais retrataram o evento como um avanço da esquerda “na doutrinação de crianças e adolescentes”.

No que diz respeito à fala da vereadora de Campinas Débora Palermo (PL), no vídeo divulgado, Bereia verificou que, de fato, o documento final da Conae propõe que o Sistema Nacional promova o “encerramento do processo de militarização das escolas públicas do país, ampliando os programas de combate à violência e ao uso de drogas”, com o devido embasamento de tal indicação. Porém, é falso afirmar que a Conferência se pronunciou contra a  existência de escolas cristãs ou confessionais.

Além do documento final do evento público reafirmar a existência e o respeito aos direitos fundamentais das instituições confessionais, estas estiveram representadas no Fórum Nacional de Educação, que articula a Conae, pela Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec) e pela Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas (Abiee). 

Reprodução: Reprodução Documento Final Conae 2024

Bereia verifica que, além de propagar conteúdo falso sobre suposta campanha contra escolas cristãs pelos participantes da Conae 2024, a vereadora Débora Palermo estimula a ideia da suposta perseguição a cristãos no Brasil, para alimentar seu discurso.

Discurso de perseguição a cristãos ganha espaço em mídia não-religiosa

Outro tema explorado em espaços digitais religiosos neste mês de junho foi, mais uma vez,  o da perseguição a cristãos. O site O Antagonista publicou, no dia 9, a matéria intitulada “MP abre guerra contra a Bíblia”. No texto que aparenta ser informativo, mas tem redação opinativa, são criticadas decisões do Ministério Público de São Paulo sobre a obrigatoriedade da presença de Bíblias em bibliotecas públicas de São José do Rio Preto (SP) e o uso da frase “sob a proteção de Deus iniciamos nossos trabalhos” no início de sessões legislativas da cidade. 

Bereia verificou que, o MP-SP, tais práticas criam preferências e um tratamento privilegiado parauma religião, o que não cabe ao Legislativo Municipal e vai contra o princípio da laicidade do Estado brasileiro. A matéria opinativa do site O Antagonista para reforçar a falsa ideia de perseguição a cristãos no Brasil, afirma que as decisões judiciais tentam igualar o Cristianismo, fé da maioria dos brasileiros, a outras religiões, e essa ideia seria uma forma de discriminação.

Imagem: Reprodução O Antagonista

A imagem que ilustra a suposta matéria informativa exibe um livro em chamas e reforça o tom alarmista usado no título: remete à ideia de que questionar a inconstitucionalidade de leis municipais significa declarar guerra ao símbolo da fé cristã, o que pode ser equivalente a lançá-lo ao fogo – ainda que as ações do MP não tratem sobre a circulação ou comercialização de Bíblias.

Um caso semelhante foi verificado pelo Bereia neste ano: em março, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) declarou como inconstitucional a Lei Municipal 7.205/04, de Sorocaba (SP), que torna obrigatória a inclusão de Bíblias entre as obras de Bibliotecas Municipais. Por conta da decisão, o prefeito da cidade Rodrigo Manga (Republicanos), missionário da Igreja Mundial do Poder de Deus, produziu vídeos com o discurso de que cristãos e a “obra de Deus” estavam sendo perseguidos.

Imagem: Reprodução Instagram

De acordo com a apuração, a decisão do TJ-SP não proíbe que bibliotecas públicas disponham de Bíblias, mas considera que a obrigatoriedade da inclusão do livro cristão, nesses espaços públicos, viola a laicidade do Estado. Este argumento também embasou o entendimento do STF, em 2021, sobre uma norma do Estado do Amazonas que estabelecida obrigatoriedade de Bíblias em escolas e bibliotecas públicas: foi declarada a inconstitucionalidade por conta de tal lei estimular e promover um conjunto de crenças e dogmas em prejuízo de outros.

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Bereia classifica como falsas as afirmações da vereadora de Campinas (SP) Débora Palermo (PL) e do site de notícias O Antagonista, que propagam, respectivamente, pânico relacionado à regulação da educação no País e à suposta perseguição a cristãos no país.

Em vídeo gravado, sobre as propostas encaminhadas pela Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em janeiro passado, à redação do Plano Nacional de Educação (PNE), serem contrárias à existência de escolas cristãs no País. Como a checagem demonstra, o documento final da Conae recomenda o encerramento do sistema de escolas cívico- militares que não correspondem às necessidades educacionais do país, na avaliação dos docentes participantes da conferência. Porém, sobre escolas confessionais, o texto recomenda o respeito aos direitos constitucionais destas instituições.  Além de propagar mentiras sobre a educação no país, a vereadora ainda contribui para a disseminação de pânico sobre a falsa perseguição a cristãos no Brasil.

A fala da parlamentar também é marcada pela associação do termo LGBTQIAP+ a um perigo para crianças, o que foi corroborado por outras falas na reunião que ela convocou por meio da Câmara de Vereadores de Campinas. Tal abordagem gera um clima de pânico que leva o público a ter julgamentos errôneos e sentimentos hostis por uma população que tem o direito de existir, de acordo com as leis do país mas é alvo de crimes de ódio: o Brasil ainda é o país com mais assassinatos de pessoas LGBTQIAP+. 

Desse modo, informações disseminadas por outras opositoras ao documento elaborado pela Conae, convidadas para a reunião, geram o mesmo efeito, que colocam grupos progressista como alvo: primeiro com a afirmação falsa de que orgias com crianças eram promovidas na Rússia pós-revolução, e depois com o vídeo enganoso que distorce a obra da escritora bell hooks para associá-la à pedofilia.

No mesmo período, se soma a publicação de matéria do site O Antagonista que oferece conteúdo falso sobre suposta guerra da Justiça contra as Bíblias. Como Bereia verificou, esta afirmação não procede, pois o veículo, com texto opinativo com aparência de informação, acaba por servir como meio para propagação da falsa ideia de uma perseguição a cristãos no Brasil, como já checado em outras várias matérias.

Bereia chama a atenção de leitores e leitoras para o uso do pânico relacionado à educação no país e à falsa perseguição a cristãos no Brasil que são temas recorrentemente utilizados em campanhas digitais para captar apoios, em ambientes digitais religiosos, com uso do alarmismo e do medo. Tal prática, identificada em grupos extremistas da direita política, busca suporte a determinadas pautas e votos em processos eleitorais, como o municipal que será realizado no segundo semestre deste ano.

Referências de checagem:

Canal TV Câmara Campinas no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=8EjFeWsSJBc. Acesso em 13 de junho de 2024

Instagram:

https://www.instagram.com/reel/C77TPR-RDDD/?igsh=ZHZydjF2NzNyMWx5 Acesso em 11 de junho de 2024

https://www.instagram.com/reel/C7ws_RxRB62/?igsh=MTllcjBiMzNzc2R0ag%3D%3D Acesso em 11 de junho de 2024

https://www.instagram.com/p/C8FVX-pRJEi/ Acesso em 12 de junho de 2024

https://www.instagram.com/osvaldinapauladeoliveira/ Acesso em 13 de junho de 2024

https://www.instagram.com/stories/highlights/18438058342026569/?locale=de&hl=am-et Acesso em 13 de junho de 2024

https://www.instagram.com/p/C3QRduzrMtV/?locale=de&hl=am-et Acesso em 13 de junho de 2024

Site de Débora Palermo: https://deborapalermo.com.br/quem-sou-eu/ . Acesso em 14 de junho de 2024

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade; tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

Bereia:

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-estrategia-discursiva-e-arma-politica/ Acesso em 12 de junho de 2024

https://coletivobereia.com.br/conferencia-nacional-de-educacao-e-alvo-de-intensa-campanha-de-desinformacao-em-ambientes-digitais-religiosos/ Acesso em 12 de junho de 2024

https://coletivobereia.com.br/associacao-crista-desinforma-com-discurso-alarmista-sobre-conferencia-nacional-de-educacao/ Acesso em 12 de junho de 2024

https://coletivobereia.com.br/prefeito-de-sorocaba-produz-videos-enganosos-ao-afirmar-perseguicao-aos-cristaos/ Acesso em 12 de junho de 2024

https://coletivobereia.com.br/panico-moral-sobre-ideologia-de-genero-aborto-erotizacao-de-criancas-e-defesa-da-familia-e-usado-para-disputa-eleitoral-com-base-em-desinformacao/ Acesso em 25 de junho de 2024

O Antagonista: https://oantagonista.com.br/cultura/perseguicao-a-cristaos-atinge-niveis-alarmantes-em-2024/ 

Publicação no X: https://x.com/vinicios_betiol/status/1799907008696471929?t=EJVFZvPcSBVsO1-ungZFfw&s=19 Acesso em 12 de junho de 2024

CNN: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/lgbtfobia-brasil-e-o-pais-que-mais-mata-quem-apenas-quer-ter-o-direito-de-ser-quem-e/ Acesso em 25 de junho de 2024

Uol: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/11/29/rodrigo-manga-republicanos-e-eleito-prefeito-de-sorocaba.htm Acesso em 25 de junho de 2024

Perfis evangélicos na rede digital enganam sobre arroz importado pelo governo federal

*Matéria atualizada às 16:49 para correção de informações.

Pauta sugerida pelo grupo de Correspondentes do Bereia

Por conta das enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul, o governo federal anunciou, em 9 de maio de 2024, que o País precisaria importar arroz, visando impedir a falta do grão produzido majoritariamente no estado inundado. Com o comunicado, um vídeo de uma “máquina chinesa” voltou a circular em grupos e perfis de evangélicos nas mídias digitais, com afirmações de que o grão adquirido seria falso. Outras publicações afirmam que a proposta teria a finalidade de “destruir o agro” e “acabar com a economia”. 

“Olhem o arroz falso. É este que o (Lula) quer que o povo consuma! Leiam sobre os ingredientes”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook

Nas imagens, é possível ver dois homens operando uma máquina, onde inserem um líquido transparente e um pó branco nas tubulações do equipamento. Após um processo interno, o aparelho transforma os ingredientes em uma mistura expelida em finas tiras onduladas. Depois, os rapazes encaixam uma peça de corte para começar, enfim, a produção de inúmeros grãos brancos similares ao arroz. 

Imagem: reprodução/Facebook

Além das imagens acima, diversos influenciadores e páginas, que compartilham conteúdo evangélico, criticaram a decisão do governo federal, alegando que ela teria sido tomada com o intuito de prejudicar os produtores do Rio Grande do Sul. 

Veja abaixo a checagem do Bereia sobre o vídeo e entenda a questão da compra de arroz importado pelo governo federal. 

Arroz da China?

O vídeo que tem circulado, na verdade, foi publicado no YouTube em 13 de agosto de 2021, pelo canal da empresa SunPring Extrusion, uma empresa baseada na China que fabrica máquinas de alimentos.

Reprodução: Youtube

De acordo com a descrição do vídeo da empresa, a máquina é feita para produzir um arroz fortificado, um substituto que ofereça mais benefícios e a um menor custo. É possível usar arroz quebrado – que seria vendido a um preço mais baixo – e adicionar alimentos como milho, trigo, aveia e soja, e nutrientes (cálcio, zinco e ferro) que vão enriquecer o produto nutricionalmente, e agregar valor de mercado.

O Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que a fortificação do arroz aumenta a quantidade de vitaminas e minerais essenciais no alimento.

O vídeo já circulou outras vezes, em anos anteriores, e também em outros países. Em 13 de maio de 2023, por exemplo, as imagens também foram usadas para desinformar nas Filipinas

Reprodução: site AFP

A equipe de checagens em português da Agence France-Presse (AFP), uma agência de notícias francesa, também verificou o conteúdo e escreveu que, quando o conteúdo viral circulou pela primeira vez, “um porta-voz da SunPring Extrusion confirmou à AFP que a sequência mostra uma ‘extrusora de alimentos de parafusos duplos’ produzindo arroz fortificado – e não arroz de plástico –, utilizando farinha de arroz quebrado como o principal ingrediente”. 

Em 19 de junho de 2023, ainda à AFP, a especialista sênior de pesquisa científica no Instituto de Pesquisa de Arroz das Filipinas, Rosaly Manaois, afirmou que supostos relatos sobre arroz de plástico não tinham sido confirmados. “Houve relatos sobre a proliferação de ‘arrozes de plástico’ em diferentes países, supostamente vindos da China, mas nenhum deles foi confirmado”, explicou.

Governo federal autoriza importação do arroz

No dia 9 de maio de 2024, o governo do Brasil publicou, em edição extra do Diário Oficial da União, uma medida provisória que autoriza a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a importar até 1 milhão de toneladas de arroz. 

De acordo com o texto divulgado, a ação busca repor o estoque público do Brasil devido às enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul. O estado responde por 70% da oferta nacional do produto.

Reprodução: Diário Oficial da União

Dias antes do anúncio do governo federal, o presidente Lula afirmou que, para equilibrar a produção, o Brasil poderia importar arroz ou feijão para colocar “na mesa do povo brasileiro um preço compatível com aquilo que ele ganha”. 

Em 20 de maio, o país zerou temporariamente a tarifa de importação de três variedades de arroz para garantir a oferta do alimento na dieta da população. A decisão foi tomada em reunião extraordinária com representantes do Comitê Executivo de Gestão (Gecex) da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e publicada em Diário Oficial no dia 21 do mesmo mês.  

Em nota, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) Geraldo Alckmin, afirmou que “ao zerar as tarifas, buscamos evitar problemas de desabastecimento ou de aumento do preço do produto no Brasil, por causa da redução de oferta”. 

A medida foi criticada pelo presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) Gedeão Pereira, que avaliou a decisão como “desnecessária” em uma entrevista à CNN

“Não prevemos nenhum tipo de desabastecimento de arroz, a não ser momentâneo, por questão de logística e impasses com a emissão de notas fiscais”, disse o presidente da Federação à CNN. As críticas foram repercutidas por opositores do governo federal. 

Após a decisão da importação, o presidente da Conab Edegar Pretto, sinalizou à CNN que a ideia é comprar os grãos do Mercosul, origem de 96% das importações de arroz em 2023, porque a tarifa de importação será zero. 

No entanto, de acordo com a última linha do texto publicado pelo governo federal, também existe a possibilidade do grão ser adquirido com a Tailândia, que é o maior produtor de arroz do mundo e já exportou o produto para o Brasil anteriormente em situações emergenciais – como durante a pandemia.

Reprodução: Gov.br

Na última quinta-feira (6), a Conab realizou, em formato eletrônico, um primeiro leilão para compra de até 300 mil toneladas de arroz importado, na modalidade “viva-voz”.  

Perfis evangélicos desinformam sobre decisão do governo

Após o anúncio da autorização de exportação de arroz no país, diversas publicações em mídias sociais, que têm como público alvo a comunidade evangélica, começaram a divulgar informações e recircular vídeos com pedidos de boicote da ação.

Um dos vídeos mais compartilhados, na verdade, foi divulgado pela primeira vez em maio de 2022, no Kwai, por uma usuária que faz postagem de cunho cristão-religioso.  

Nas imagens, que voltaram a circular nas últimas semanas, uma mulher aparece filmando um punhado de arroz que está na “boca” do fogão acesa. No decorrer da gravação, ela comenta que está fazendo uma “experiência” e mostra o grão derretendo. 

O vídeo original recebeu mais de três mil compartilhamentos e 900 comentários. 

Reprodução: Kwai

“O arroz está derretendo, está pegando fogo. O que nós estamos comendo é plástico, vocês estão vendo bem? Eu estou apavorada com isso, estava sentindo uma dor terrível no meu estômago (…). Gente, não é brincadeira. Olha só a redução populacional”, afirmou a mulher, em um vídeo intitulado como “arroz que comprei é de plástico”. 

Em 21 de maio de 2024, uma usuária publicou as imagens de 2022 no grupo “Evangélicos com Bolsonaro” no Facebook. Já no dia seguinte (22), o vídeo foi postado no Twitter pela página Yeshua, que conta com mais de 12 mil seguidores, alegando uma suposta distribuição de arroz feita em Anápolis, em Goiás.

Reprodução: X

Outro vídeo divulgado sobre a compra do grão foi publicado em 19 de maio, pelo cantor gospel e pastor Juninho Lutero, dono do canal “O Documentarista”, no YouTube e TikTok. Nas imagens disseminadas na mídia social chinesa, o líder religioso pede para que seus seguidores não comprem o arroz importado pelo presidente Lula, porque o objetivo do mandatário seria “acabar e se vingar do agro”.

Reprodução: TikTok

“Não compre o arroz importado do Lula, não compre. Ainda que seja mais barato. Não compre. Por que é de péssima qualidade? Por que vai vir com bicho? Por que vai vir estragado? Não, não é por esse motivo. Pode ser de ótima qualidade e até melhor do que o arroz daqui, mas não compre. O Lula está tentando destruir o agro e acabar com a economia do Rio Grande do Sul”, afirma Juninho Lutero. 

Outros discursos ganharam as redes sem divulgar e citar as decisões do governo federal, como foi o caso do vídeo publicado no YouTube pelo missionário Flávio Rodrigues, em 22 de maio. Nas imagens, o homem recomenda que as pessoas não comprem o arroz importado. O conteúdo teve 170.208 visualizações. No dia 29 de maio, Rodrigues volta a divulgar um vídeo pedindo para que as pessoas não adquiram o grão

“Deus mostrou o arroz que irá matar muitos, não comprem. Oremos”, diz o título do vídeo de Rodrigues, que já alcançou 150 mil visualizações.

Reprodução: Youtube

Vídeos antigos x notícia atual: a mentiras ante o comunicado da importação do arroz

Bereia conclui que as informações veiculadas pelas páginas de líderes e influenciadores evangélicos são enganosas. Apesar dos anúncios feitos pelo governo federal em torno da aquisição de arroz importado, não se tem dados que comprovem a informação de que o grão seria de origem chinesa.

Também não existem fatos que corroborem a tese de que o presidente Lula tenha optado pela compra do arroz para prejudicar o agro local, muito menos de que o grão de “plástico” tenha chegado ao Brasil e esteja sendo comercializado. Os empresários e aliados que foram contra, expuseram seu descontentamento, pois não querem abrir mão do lucro, mas, em momento algum, avaliaram tal decisão como de má fé e em desfavor do grupo brasileiro. 

A recirculação de conteúdos antigos, como nos casos da máquina de arroz e do vídeo publicado por uma usuária do Kwai, faz parte de uma gama de ações enganosas, de manipulação de imagens, que de fato existem, tomadas por desinformantes que atuam deliberadamente no ambiente digital para fazer oposição ao governo federal. Bereia reafirma que, em um Estado democráticodm de direito, a oposição é importante na fiscalização e cobrança de políticas governamentais, porém isto não pode ser praticado com mentiras e abuso da liberdade de expressão. 

Referências de checagem:

SunPring Extrusion:

https://sunpring.com/ Acesso em 10 de jun de 2024

https://www.youtube.com/watch?v=OOJ3NQuLap0 Acesso em 10 de jun de 2024

https://sunpring.com/product/artificial-rice-making-machine/ Acesso em 10 de jun de 2024

Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (ONU):

https://innovation.wfp.org/project/rice-fortification Acesso em 10 de jun de 2024

Agence France-Presse (AFP): 

https://factcheck.afp.com/doc.afp.com.33JQ36E Acesso em 10 de jun de 2024

https://checamos.afp.com/doc.afp.com.34TW2LG?utm Acesso em 10 de jun de 2024

Diário Oficial da União (09/05): 

https://static.poder360.com.br/2024/05/DOU-MP-conab-arroz-9mai2024.pdf Acesso em 10 de jun de 2024

G1: 

https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/05/07/lula-diz-que-se-for-o-caso-brasil-pode-importar-arroz-e-feijao-para-lidar-com-prejuizos-nas-safras.ghtml Acesso em 10 de jun de 2024

Nota Ministério da Agricultura e Pecuária: 

https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/governo-zera-tarifa-de-importacao-para-garantir-abastecimento-de-arroz Acesso em 10 de jun de 2024

https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/leilao-para-a-compra-de-arroz-importado-pela-conab-sera-na-quinta-feira-6 Acesso em 10 de jun de 2024

Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul:

https://www.farsul.org.br/ Acesso em 10 de jun de 2024

CNN:

https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/agro-do-rs-diz-que-importacao-de-arroz-nao-era-necessaria-e-critica-decisao-do-governo/ Acesso em 10 de jun de 2024

https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/importacao-de-arroz-sera-pontual-e-priorizara-produtos-do-mercosul-diz-presidente-da-conab-a-cnn/ Acesso em 10 de jun de 2024

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Foto de capa: congerdesign / Pixabay

Vídeo impreciso sobre banimento de desabrigados de paróquia católica no RS viraliza

Com colaboração de Leonardo Nogueira

Em meio à calamidade que assola o Rio Grande do Sul após enchentes históricas, muitos conteúdos sobre a situação na região são amplamente compartilhados nas mídias sociais, o que acende o alerta de atenção para casos de disseminação de desinformação. 

Em apenas 16 dias após o início da tragédia, cerca de 42 páginas na internet foram derrubadas por veicular notícias falsas, e a Polícia Civil do estado investiga 52 casos envolvendo a propagação de mentiras e golpes.

Frente a esse cenário, leitores do Bereia sugeriram a checagem de um vídeo que apresenta a frase “Padre expulsa crianças autistas de abrigo no Rio Grande do Sul”. As imagens apresentam uma discussão entre uma mulher e um idoso, que, ao ser questionado sobre o que teria a declarar sobre a retirada de pessoas desabrigadas de uma igreja, responde: “Eu não tenho nada a declarar, se vocês tivessem se comportado como gente (o final da frase é inaudível)”. 

Imagem: reprodução/Instagram

O vídeo enviado ao Bereia foi publicado em 9 de maio e exibe o selo da página do jornal Diário do Vale (veículo regional do sul do Estado do Rio de Janeiro, sediado na cidade de Volta Redonda) no Instagram. Também é possível identificar uma edição que oculta informações: a palavra “padre” sobrepõe um destaque em vermelho com a expressão “denúncia”.

A partir deste indício de uma versão anterior que poderia apresentar mais informações, Bereia encontrou a postagem do influenciador digital Ivan Baron, ativista pela inclusão de pessoas com deficiência. Publicado em 8 de maio (um dia antes do conteúdo do Diário do Vale), além do alerta de “denúncia!”, o vídeo apresenta a frase “Padre expulsa desabrigados no RS de igreja, incluindo CRIANÇAS AUTISTAS, por não se comportarem como gente”.

Imagem: reprodução/Instagram

Bereia checou o conteúdo com base nas questões: o homem do vídeo é mesmo um padre? Quem é a mulher que discute com ele? Qual é a origem do vídeo? Crianças autistas realmente foram expulsas de um abrigo? 

Bereia contatou testemunhas do ocorrido e apurou que a história do caso é complexa.

Quem são os envolvidos e qual é a origem do vídeo

Na legenda da publicação do Diário do Vale, o conteúdo repete a afirmação de que crianças autistas, abrigadas na paróquia Santo Antônio, em Alvorada (RS), foram expulsas por um padre. 

O texto complementa que o clérigo teria interrompido o fornecimento de luz e água para pressionar a saída de pessoas que haviam sido acolhidas na igreja. A postagem diz, ainda, que o religioso teria afirmado que crianças autistas não estariam se comportando “como gente”.

Imagem: reprodução de postagem do Diário do Vale no Instagram em 9 de maio/Instagram

Bereia verificou que o idoso que aparece no vídeo é o padre Libanor Picetti, responsável pela paróquia Santo Antônio, na cidade de Alvorada (localizada na grande Porto Alegre, RS), há 36 anos. Em entrevista ao veículo Jornal da Semana, pela ocasião de seu aniversário de 70 anos, em 2020, o pároco conta que era um dos cinco padres da arquidiocese de Porto Alegre a ter mais de 30 anos na mesma igreja. 

Quando perguntado sobre o que queria ganhar de presente, o padre responde: “Se eu pudesse fazer qualquer pedido, gostaria que os meus paroquianos se dedicassem ao próximo e à caridade, principalmente na criança e no doente. Não quero nada pra mim, mas sim que eles entendam o valor do social”.

Conflito ganhou as redes

A mulher que discute com o padre Libanor Picette no vídeo é a empresária local e influenciadora digital Milena Bittencourt. Quando soube que as vítimas das enchentes teriam sido expulsas do salão da igreja por ordem do pároco, ela o questionou, enquanto gravava as imagens pelo celular. Elas foram repercutidas amplamente nas redes – uma das publicações teve mais de um milhão de visualizações.

Milena Bittencourt contou ao Bereia que, em 7 de maio, foi até a Paróquia Santo Antônio levar doações, e lá foi abordada por pessoas que pediram ajuda para fazer uma live e registrar a situação tensa que estava acontecendo. Foi neste momento que foi gravado o trecho do vídeo, publicado originalmente no perfil da loja da influenciadora no Instagram.

Nas imagens, voluntárias que prestavam apoio às vítimas dos alagamentos dizem que a polícia foi chamada para que todas fossem embora do local. Contam, ainda, que entre os abrigados no salão da igreja havia crianças autistas e uma criança doente, que precisou de atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), na noite anterior. 

Ainda na gravação, um voluntário explica que o padre queria que os desabrigados e voluntários se retirassem da paróquia, mas deixassem as doações que arrecadaram: “Ainda bem que a polícia veio aqui e conseguiu falar com ele para nós tirar (sic) as doação (sic)”, disse.

Na sequência, a empresária publicou outros vídeos que mostram a presença de, ao menos, três viaturas da Brigada Militar no local e uma grande mobilização da população para retirar pessoas (principalmente mulheres e crianças), alimentos, colchões e outros itens do espaço da igreja. De acordo com os relatos, todos que perderam suas casas na enchentes precisaram deixar o local. O registro da discussão com Picetti é um dos últimos a ser divulgado e teve mais de 180 mil visualizações atéo fechamento desta matéria.

Procurada pelo Bereia para falar sobre o caso, a paróquia Santo Antônio preferiu não se posicionar.

Padre mandou desabrigados saírem?

De acordo com Bittencourt e com relatos de voluntários no vídeo, a relação entre o padre e os desabrigados foi marcada por uma série de atritos durante o curto tempo em que as pessoas ocuparam o espaço. O grupo teria sido acolhido em 6 de maio, um dia depois de a Defesa Civil emitir um alerta de alagamento para a cidade de Alvorada. 

Os primeiros problemas, de acordo com o que é narrado nas imagens, envolveram o acesso à água do poço artesiano da paróquia: Picetti teria desligado o motor do poço algumas vezes por se incomodar com o número de pessoas (incluindo outros moradores da região, que padeciam com a falta de água potável) que buscavam pelo recurso no local. Para contornar a situação, voluntários conseguiram uma caixa d’água e a abasteciam com água retirada de outra localidade.

O padre Picetti também teria se incomodado com o excesso de barulho gerado pelas crianças que brincavam no pátio. Porém, de acordo com testemunhas ouvidas pelo Bereia, não foi essa a principal motivação do pedido para que as famílias saíssem da igreja. A versão completa do vídeo publicado por Milena Bittencourt, confirma que voluntários contam que o grupo foi “convidado a se retirar” do local, após se recusar a aceitar o apoio de pessoas ligadas a políticos locais.

“A gente não quis se envolver com política aqui. Veio um pessoal da Prefeitura e o Dr. Darci aqui, que vai sair candidato a vereador, e ele queria que a gente fizesse parceria, se unisse com ele e com o pessoal da Prefeitura”, disse uma voluntária. Depois da negativa, junto com a ordem para a desocupação do espaço, o padre Libanor Picetti teria pedido para que as doações fossem deixadas na igreja para que uma mulher, de nome Neusa, fosse buscar depois.

Bereia procurou a Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Alvorada para perguntar sobre a suposta visita de funcionários ao abrigo e sobre o envolvimento de Neusa Abruzzi, secretária da pasta, na situação, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem. Darci Barth, médico e ex-vereador do município, também não respondeu ao contato.

Bereia apurou que o nome do MDB, partido para disputar as eleições para a Prefeitura de Alvorada, em 2024, em substituição ao atual prefeito José Arno Appolo do Amaral, que encerra o segundo mandato, é o da ex-secretária de saúde do município Neusa Abruzzi. Ela esteve sete anos à frente da Secretaria de Municipal de Saúde, e assumiu, em agosto de 2023, a Secretaria Municipal de Comunicação Social e Relações Institucionais. 

Abruzzi passou a coordenar os projetos do município em conjunto com os governos estadual e federal, nas áreas de segurança, educação, geração de emprego, saúde, infraestrutura e inovação. Com a confirmação da candidatura, Neusa Abruzzi concorrerá, pela primeira vez, a um cargo eletivo.

Bereia tem, em seus arquivos, um vídeo (publicado em um perfil individual no Instagram, mas removido antes desta publicação ir ao ar) que confirma parte da história que veio a público. Em resumo, as imagens são gravadas em uma escada no pátio da paróquia Santo Antônio e registram três minutos de conversa entre voluntários e um homem, que dá a eles um prazo para que saiam da paróquia e deixem parte das doações: “Hoje não vem pessoas? (…) É, vou aguardar até umas cinco horas e depois a gente vai começar a mobilizar essas peças de roupa para outro lugar”.

Uma mulher prontamente responde que o destino das doações será diferente: “Não, isso aqui a gente vai guardar, daí é nosso, a gente vai levar pra um lugar”. Os participantes da conversa discutem sobre o suporte prestado aos desabrigados e não chegam a um consenso.

O homem, que demonstra ser responsável pela paróquia, reforça o prazo para que o local deixe de servir como abrigo. “Então, cinco horas. Não vindo ninguém pra dormir aqui hoje, nós vamos desmobilizar o espaço pra poder também manter a ordem”. Ele diz, ainda, que parte das doações seriam enviadas para outro lugar e a Prefeitura entraria em contato para tratar sobre a situação.

Desse modo, o conteúdo confirma que desabrigados e voluntários receberam uma ordem para deixar o salão da igreja, deixando no local os donativos arrecadados.

O motivo da remoção

Bereia ouviu uma pessoa que prestou apoio aos desabrigados e presenciou os momentos de tensão vividos na paróquia Santo Antônio, em 7 de maio. A testemunha, que preferiu não se identificar, afirma que existe uma relação política entre a paróquia e a Prefeitura. Diz, ainda, que os nomes de Dr. Darci e Neusa foram citados na visita de pessoas que teriam objetivos políticos de se aproximarem do trabalho de acolhida às vítimas da chuva, organizado somente por voluntários.

Sobre essa questão, Milena Bittencourt conta que esses visitantes pediram para fazer fotos do abrigo e levar algumas doações para a Prefeitura, o que gerou a revolta daqueles que coordenaram o apoio aos desabrigados e arrecadaram doações sem ajuda do poder público.

Versão sobre uso de drogas no local

Com a repercussão do caso, comentários em postagens nas mídias sociais relatam uma versão diferente da que é contada por voluntários e testemunhas. De acordo com esses relatos, a motivação para a retirada dos desabrigados seria o comportamento inadequado do grupo, o que envolveria o uso de bebidas alcoólicas, de drogas ilícitas e de rádio em volume alto.

Imagem: reprodução/Instagram

Milena Bittencourt contesta a versão e diz que, se ela fosse verdadeira, a igreja teria as imagens de suas câmeras de segurança como prova. A outra testemunha ouvida por Bereia conta que mora perto da paróquia e não viu tais práticas, que mulheres e crianças eram maioria no local e que, diante de tamanha calamidade, não havia qualquer espaço para o comportamento mencionado.

Fiéis prestam de apoio ao padre 

Em 13 de maio, a missa mensal em honra a Santo Antônio foi marcada por manifestações de apoio ao padre Libanor Picetti: fiéis lotaram a igreja e ostentaram cartazes prestando solidariedade ao pároco. No dia anterior, a página da igreja no Facebook fez uma publicação em referência ao caso, e destacou que a postura seria de ignorar o que chamou de provocações.

Imagem: reprodução/Facebook

Imagem: reprodução/Instagram

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Com base na apuração, Bereia conclui que o conteúdo disseminado é impreciso. A frase destacada no vídeo divulgado pelo jornal Diário do Vale 3 e verificado, conforme esta matéria, diz que crianças autistas “foram expulsas” da igreja. De fato elas foram retiradas, de acordo com testemunhas. Porém, a nota viralizada nas redes não informa que essas crianças não foram as únicas removidas do local e que não foram a causa da ação da igreja: todos os desabrigados tiveram que deixar o espaço. 

Apesar de o padre Libanor Picetti afirmar, nas imagens, que as pessoas não se comportaram “como gente”, a referência a crianças autistas não é feita por ele nem por Milena Bittencourt no vídeo original. Além disso, relatos de testemunhas indicam que a motivação para a ordem do pároco teria caráter político, diante da recusa dos voluntários e dos beneficiários da ajuda de políticos locais.

Desse modo, a ausência dessas informações pode levar o público a julgamentos errôneos, como uma exclusiva violação de direitos de crianças com deficiência por parte do padre e da igreja. Ainda que tal fato seja, em parte, verdadeiro, o contexto é mais amplo, conforme relatos de testemunhas e o vídeo que registra um representante da paróquia indicando um prazo para que um grupo saísse do local.

Referências de checagem:

CBN: https://cbn.globo.com/brasil/noticia/2024/05/16/policia-civil-investiga-disseminacao-de-fake-news-e-golpes-durante-tragedia-no-rs.ghtml Acesso em 15 maio 2024

Globo Rural: https://globorural.globo.com/clima/noticia/2024/05/defesa-civil-emite-alerta-de-inundaes-em-alvorada-rs-e-lagoa-dos-patos.ghtml Acesso em 15 maio 2024

A Semana: http://www.jornalasemana.net/noticias/cultura/padre_libanor_celebra_os_70_anos_de_idade_mas_afirma_se_sentir_o_mesmo_jovem_de_antes/8096 Acesso em 17 maio 2024

Paróquia Santo Antônio no Facebook: https://www.facebook.com/paroquiasantoantonioalvorada Acesso em 14 maio 2024

Perfil da paróquia Santo Antônio no Instagram: https://www.instagram.com/santoantonio_alvorada/ Acesso em 14 maio 2024

Milena Bittencourt no Instagram https://www.instagram.com/lojamacamordida/reels/ Acesso em 14 de maio 2024

Diário do Vale: https://www.instagram.com/reel/C6v-IPMJ99n/?igsh=MTVzOHhiMHQxYjFjaQ%3D%3D Acesso 14 de maio 2024

Correio do Povo: https://www.correiodopovo.com.br/notícias/política/eleições-2024-nome-do-mdb-para-sucessão-em-alvorada-assume-nova-secretaria-1.1080524 Acesso em 23 de maio 2024

Site gospel engana sobre ataque a vereador autor de lei que restringe “ensino de gênero”

* Matéria atualizada em 08/05/2024 para ajuste de texto

O portal de notícias Pleno.News publicou, em 29 de abril, matéria apontando que o  vereador Anderson Campos (Republicanos), da cidade de Nilópolis, no Rio de Janeiro, teria sofrido supostos ataques por ter criado uma lei  “que restringe o ensino de assuntos relacionados a gênero em escolas públicas e privadas do município da Baixada Fluminense”.

Ao afirmar que o parlamentar foi alvo de ataques, o texto cita o trecho de uma nota emitida pelo Sindicato dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe), avaliada como  um ataque à lei e ao vereador. 

Bereia verificou a íntegra da nota citada na matéria do Pleno.News e sua repercussão nas mídias sociais.

Imagem: Reprodução / Pleno News

O que diz a lei que quer restringir “ensino de gênero” nas escolas

Promulgada em 9 de abril de 2024, a Lei Ordinária nº 6.813, de autoria de Campos, tem como objetivo “assegurar a pais e responsáveis o direito de vedarem a participação de seus filhos em atividades pedagógicas no âmbito do município Nilópolis”.

A norma também obriga as instituições de ensino do município a informarem os pais sobre quaisquer “atividades pedagógicas de gênero” que possam ser realizadas no ambiente escolar, e define as práticas como “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, orientação sexual, diversidade sexual, igualdade de gênero e outros assuntos similares”. 

Dessa forma, a participação dos alunos ficaria condicionada à prévia autorização dos pais, que devem encaminhar à escola um documento assinado que informe se concordam ou não com a atividade promovida. 

A proposta de Campos prevê, ainda, que as instituições de ensino recebam advertência, multa, suspensão de atividade e até mesmo cassação da autorização de funcionamento se houver descumprimento da lei. Em caso de reincidência, escolas podem ter que pagar de R$ 1 mil a R$ 10 mil por aluno que tenha participado de atividades não aprovadas pelo responsável.

Referência da imagem: Reprodução / Boletim Oficial da Câmara Municipal de Nilópolis

Para entender os impactos da lei na rotina do ambiente escolar, datas comemorativas, como o Dia Internacional da Mulher, podem exigir que as instituições de ensino precisem de autorização dos pais para atividades no dia a dia dos alunos. Isso porque o 8 de março, por exemplo, é marcado pela memória das conquistas femininas na história e pela luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, o que pode ser entendido como a noção de igualdade de gênero, tal como citada na lei.

A norma foi promulgada pelo presidente da Câmara de Nilópolis, vereador Zé Ribeiro (PL), após o prefeito do município, Abraãnzinho, da mesma legenda que o parlamentar, não ter sancionado e nem vetado a proposta em 15 dias – tempo que o chefe do executivo da cidade tem para a decisão, de acordo com a Lei Orgânica do Município, antes de que ela se dê por sancionada automaticamente. 

Quem é o vereador Anderson Campos 

Campos, 26 anos, é vice-presidente da Câmara de Vereadores de Nilópolis e se apresenta como um líder de jovens apaixonados por Jesus. É vinculado à Igreja Assembleia de Deus Wallace Paes Leme, e foi eleito em 2020 com 1.486 votos. Em 2022, o parlamentar foi candidato a deputado estadual no Rio de Janeiro, pelo Republicanos, com um total de 9.249 votos, número que não foi suficiente para ser eleito.

O vereador ganhou as páginas dos jornais ao ser processado pela apresentadora Xuxa Meneghel, em 2021, após se referir a ela como “assediadora de menores”, em postagens no seu perfil do Instagram. Ao perder a ação por calúnia, injúria e difamação, o vereador teve que apagar o conteúdo ofensivo e publicar pedidos de desculpas.

Nota do SEPE e repercussão

A nota do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) em Nilópolis, citada na matéria do Pleno News, foi divulgada pela unidade regional do sindicato em Nilópolis (portanto,não é o parecer da direção estadual) e repudiou a aprovação da Lei 6.813 pela Câmara Municipal.

Publicada na página da organização no Facebook, a única menção do texto ao vereador Anderson Campos diz que ele é “conhecido por seu alinhamento com a extrema direita bolsonarista, tenta impor a ideologia do seu campo política através da coação e da ameaça com multa e fechamento de escolas, caso estas se recusem a cumprir uma lei inconstitucional”. 

O posicionamento da regional do sindicato ainda citou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de abril de 2020, que declarou ser inconstitucional a Lei 1.516/2015, do Município de Novo Gama (GO), que tinha como objetivo proibir a utilização, em escolas públicas municipais, de material didático que contenha o que chama de “ideologia de gênero”. Bereia já produziu matéria sobre este e outros casos.

A nota da unidade regional do Sepe faz críticas ao conteúdo da lei e ao vereador, mas elas são restritas ao âmbito de sua atuação política:

“A lei 6.813 de 09 de abril de 2024, é um retrocesso na luta dos direitos civis contra o machismo e a Lgbtfobia (ódio contra lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais). O Brasil, segundo a ONU, é um dos países mais violentos contra mulheres, lésbicas, gays e transexuais, sendo estes as principais vítimas de homicídio, junto com a população negra, no país. Em defesa da constituição e dos direitos de todos a vida, o Sepe – Nilópolis tomará ações contra a lei do machismo e da  Lgbtfobia aprovada pela Câmara Municipal de Nilópolis”, concluiu o sindicato.

Os comentários na postagem do sindicato carregam o mesmo tom de crítica da nota e não citam o vereador, nem manifestam qualquer hostilidade ao autor da lei. Nas publicações de Campos no Instagram, Twitter e Facebook também não se encontram comentários em tom de ataque a ele, e prevalece a participação de seus apoiadores.

Vereador alinhado à extrema-direita 

O alinhamento com pautas defendidas pela extrema direita e a proximidade com os membros da família Bolsonaro são ostentados com orgulho nos perfis de Campos nas mídias sociais, e o mesmo se declara com um “vereador bolsonarista”.

Em fevereiro deste ano, Campos deu a honraria de cidadão honorário de Nilópolis ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O vereador decidiu entregar pessoalmente o título na casa do capitão reformado do Exército.

Imagem: reprodução do Facebook

Imagens: Reprodução / Instagram

Após a publicação do portal Pleno News, perfis no Instagram repercutiram a informação de que o parlamentar estava sendo alvo de ataques pela criação da lei 6.813/2024, sem informar que tipo de ataques.

Imagens: Reprodução / Instagram

Bereia entrou em contato com a assessoria de imprensa do parlamentar, mas até o fechamento deste texto não recebeu resposta. 

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Bereia classifica como enganosa a notícia publicada pelo site gospel Pleno News, de que o vereador Anderson Campos (Republicanos) tem sido atacado por seu trabalho na Câmara de Nilópolis. A aprovação da lei e a crítica emitida pelo núcleo regional do Sepe são verdadeiras, mas a apresentação dos fatos é feita para confundir e gerar a narrativa de perseguição contra o parlamentar. A matéria do Pleno News, em nenhum trecho, demonstra conteúdo que possa ser classificado como ataque. Apenas cita trechos da nota da unidade municipal do Sepe.

Como Bereia verificou, a nota da unidade municipal do Sindicato dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro, tem teor e argumentos que desaprovam a lei proposta por Anderson Campos, porém não apresenta palavras que possam ser classificadas como violentas ou de “ataque”. Bereia também não identificou textos ou imagens em forma de ataque nas mídias sociais do parlamentar nem nas do Sepe. Figuras públicas, como um vereador, estão sujeitas a manifestações, também públicas, de opiniões críticas à sua atuação. 

Bereia alerta leitores e leitoras sobre a estratégia de publicação de conteúdo enganoso sobre “ataques”, especialmente em período eleitoral, como forma de campanha baseada no pânico da perseguição religiosa a cristãos, algo inexistente no Brasil, como já verificado em várias matérias. 

Referências da checagem:

Diário Oficial da Câmara Municipal de Nilópolis: https://vozdosmunicipios.com.br/wp-content/atos-oficiais/2024/Abril/26-04-2024/camara3549.pdf Acesso em: 5 mai 2024

Metrópoles: https://www.metropoles.com/brasil/vereador-tera-que-apagar-post-sobre-xuxa-ser-assediadora-de-menores Acesso em 5 mai 2024

Perfil do vereador Anderson Campos: 

https://www.instagram.com/andersoncamposbr/

https://www.instagram.com/p/C6XtKjwrL1j/?igsh=Y3V5c3YxOTFyaDA%3D https://www.instagram.com/p/C6Z3VwQAe08/  Acesso em 5 mai 2024

Núcleo nilopolitano do Sindicato dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe): https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=pfbid07MppVZx5Y4EHAvTmK52WbT3Ad6pkhHXYCtagXJLZtKDU7ZG4StGFnRMFKLEsHrYgl&id=61557291435048 Acesso em 5 mai 2024
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF): https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442331&ori=1  Acesso em 5 mai 2024

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Foto de capa: YouTube