Novos Projetos de Lei em municípios propõem uso da Bíblia nas escolas e negam pluralidade religiosa

Na sequência do acompanhamento sobre comprometimento do princípio do Estado laico em proposições legislativas, o Bereia apurou que dois projetos de lei municipais, em Divinópolis (MG) e Joinville (SC), que dispõem sobre a leitura da Bíblia nas escolas, foram aprovados em agosto passado. Em ambos os casos, houve propostas de parlamentares por emendas que incluíssem outros livros religiosos na leitura paradidática escolar, como O Livro dos Espíritos e O Alcorão, que foram rejeitadas. Tais projetos chamam a atenção para a negação do pluralismo religioso e para a negligência parlamentar diante das múltiplas experiências religiosas.

A Lei  nº 9.567 foi sancionada pela Prefeitura de Divinópolis, em 11 de agosto de 2025, sob justificativa de que “a Bíblia Sagrada é também um livro rico em história, cultura, filosofia, arqueologia e ensinamentos de muito valor”. O texto prevê, ainda, a preservação da liberdade religiosa nos termos da Constituição Federal, de forma que nenhum aluno poderá ser obrigado a participar das atividades relacionadas à Lei.

Reprodução/Prefeitura de Divinópolis

O vereador Matheus Henrique Dias (AVANTE/MG) foi o autor do Projeto de Lei nº 69, de 2025, que originou a lei. De acordo com o perfil do parlamentar na Câmara Municipal de Divinópolis, Dias é missionário consagrado na Comunidade Católica Missão Maria de Nazaré. 

A vereadora Kell Silva (PV) propôs primeiramente o Substitutivo I ao PL CM nº 69/2025, que buscava incluir outros livros religiosos, com o objetivo de fazer com que crianças e adolescentes tenham contato com textos diversos, estimulando a tolerância religiosa. O substitutivo foi rejeitado em 25 de junho.

Logo após, a parlamentar propôs a Emenda Modificativa nº 29 de 2025, com o mesmo objetivo do substitutivo. “Quando aprendemos sobre diversas religiões e suas tradições, desenvolvemos empatia e evitamos preconceitos, o que contribui para uma sociedade mais justa e harmoniosa. Além disso, o ensino plural incentiva o diálogo e a valorização da diversidade cultural e espiritual, preparando os estudantes para conviverem de forma mais aberta e respeitosa com as diferenças. Assim, a escola se torna um espaço onde todos podem se sentir acolhidos e respeitados, independentemente de suas crenças”, diz a justificativa da emenda.

A Emenda Modificativa foi rejeitada em plenário, em 5 de agosto. Alguns dos argumentos dos vereadores votantes abordaram que a maioria da população de Divinópolis é cristã e que, portanto, o impacto cultural de outras religiões é irrelevante no município. O autor do Projeto de Lei disse, ainda, que a emenda proposta seria uma tentativa de sabotar o projeto.

Reprodução/Câmara Municipal de Divinópolis

A vereadora de Divinópolis pelo Partido Verde Kell Silva é historiadora formada pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), mestre em Cultura e Identidade pela mesma universidade e doutora em História Social da Cultura pela UFMG. Ouvida pelo Bereia, a vereadora declarou: “Eu sabia que o projeto ia passar, devido ao apelo que ele tem: quem vai ser contra a Bíblia na escola? E qualquer outro argumento que a gente usasse, poderia aumentar ainda mais o escopo dos conservadores – ultradireitistas em relação à esquerda. Por isso pensei na estratégia de abarcar outros livros religiosos como paradidáticos, justamente para quebrar o caráter doutrinador do projeto e deixá-lo mais plural”.

A vereadora acredita que não houve votos suficientes para suas propostas por pressões partidárias e pelo receio de abordar questões mais sensíveis à sociedade. “Penso a educação como uma forma de desconstrução. Justamente por sermos de maioria cristã, eu inclusive sou católica, entendo que devemos conhecer a cultura, os povos e as religiosidades do mundo para nos tornamos seres mais tolerantes, mais empáticos, mais humanos”, concluiu a educadora.

Em maio deste ano, foi promulgada a Lei Municipal  nº 11.862, em Belo Horizonte (MG), de autoria da vereadora Flávia Borja (DC – Democracia Cristã), que inspirou o Projeto de Lei de Divinópolis. Com ementas, artigos e justificativas com textos similares, outros projetos têm sido propostos em municípios pelo Brasil.

Em Joinville (SC), o Projeto de Lei Ordinária nº 147/2025, de autoria do vereador Brandel Junior (PL), foi aprovado com emenda no dia 12 de agosto e atualmente aguarda sanção ou veto da Prefeitura. O objetivo da proposta é o mesmo dos colegas de Divinópolis, instituir a leitura da Bíblia Sagrada como recurso paradidático nas escolas públicas e particulares do município. 

Reprodução/Câmara Municipal de Joinville

Em 21 de julho, a vereadora Vanessa da Rosa (PT) propôs uma Emenda Modificativa que buscava incluir outros livros religiosos na Lei proposta. Entre os livros listados, estavam O Alcorão (do Islã), a Torá(do Judaísmo) e O Livro dos Espíritos (do Espiritismo Kardecista). A emenda foi rejeitada em 23 de julho na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, com três votos contrários, sob argumentos de que mudava o teor do Projeto de Lei, e que a vereadora deveria propôr um projeto paralelo com o mesmo objetivo da emenda.

“O resultado dessa votação escancara a hipocrisia dos projetos apresentados nessa Casa, que vem sempre travestidos de boas atitudes, de boas intenções, e no fundo são recheados de preconceito e intolerância. […] Religião quem trabalha são as famílias, de acordo com sua fé e a sua crença. À escola cabe trabalhar a pluralidade das religiões”, disse Vanessa da Rosa em vídeo publicado em sua conta no Instagram.

Reprodução/Câmara Municipal de Joinville

O que dizem os especialistas

O professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alexandre Bahia falou com o Bereia sobre o princípio da laicidade do Estado. “A ideia de laicidade é de que o Estado deve ser neutro com relação a religiões. Cada um pode ter a sua religião, o Estado democrático de direito garante que cada pessoa possa ter a sua religião, mas ninguém pode ser nem beneficiado, nem punido por ter ou não ter alguma religião”.

Já sobre esses projetos de lei que tramitam pelo Brasil, o professor diz que são iguais em todo o país, “É um copia e cola absolutamente igual”. Bahia acredita que ao escolher um único livro religioso para ser incluído como paradidático nas escolas, há um privilégio de uma religião em detrimento de outras. “Não importa que seja a maioria, não importa que historicamente a formação do Brasil se deu por uma maior parte de pessoas cristãs, mas isso é privilegiar uma determinada religião e, portanto, isso viola o princípio da laicidade de Estado”.

A professora e pesquisadora de Educação e Religião Andréa Silveira acredita que a finalidade destas propostas é política, não pedagógica. “Fica ainda mais claro que a intencionalidade desses projetos de lei que pretendem incluir exclusivamente a Bíblia como material paradidático nas escolas não é garantir uma aprendizagem ampla e significativa, ou mesmo o direito educacional de crianças e adolescentes. A garantia de direitos educacionais ampara-se justamente na inclusão da diversidade de formas de pensar, crer, ser, viver e estar no mundo, que se manifesta, invariavelmente, na pluralidade religiosa”.

Silveira conclui que a rejeição às emendas que propõe a inclusão de outros textos sagrados, além da Bíblia, revela intencionalidades políticas supressivas. “Isso revela que essas propostas, que querem se impor com força de lei, têm uma intencionalidade política específica, qual seja, consolidar um projeto de sociedade que tenha como centro organizador e de controle valores morais cristãos ultraconservadores, logo, um modelo de sociedade, por princípio, excludente”.

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Bereia chama a atenção, por conta de casos anteriores já checados, que tais projetos devem ser questionados no Supremo Tribunal Federal, a partir de ações do Ministério Público, e as leis municipais declaradas inconstitucionais por violarem o princípio do Estado laico. O uso desta temática como plataforma político-ideológica tem sido recorrente, em especial em períodos eleitorais e a declaração de inconstitucionalidade vem sendo usada como falsa acusação de perseguição à fé cristã. 

Foto de capa: Unplash

Câmara Municipal de Cachoeiro do Itapemirim (ES) aprova lei que obriga prática cristã em escolas

A Lei nº 8186 /2025, que torna obrigatória a realização da oração do ‘Pai Nosso’ nas escolas de Ensino Fundamental da rede pública e privada do município, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de Cachoeiro de Itapemirim(ES), no último 4 de julho. O objetivo seria “promover valores cívicos, éticos e de respeito, reforçando o papel da escola na formação cidadã”, de acordo com o relato do autor da proposição, o vereador Coronel Fabrício (PL).

A lei, aprovada com emenda, também torna obrigatória o canto do hino nacional e o hasteamento das bandeiras nacional, estadual e municipal. Em perfi de mídia social. o parlamentar comemorou a aprovação do Projeto de Lei (PL 15/2025) e relatou que um dos objetivos da implementação é resgatar o respeito aos símbolos nacionais.

Foto: Reprodução/Instagram

A legislação em questão prevê que a oração do ‘Pai Nosso’ seja realizada diariamente antes do início das atividades pedagógicas, considerando o caráter voluntário da participação. O descumprimento da lei sujeitará a direção da unidade escolar, responsável por organizar e participar das solenidades, a penalidades administrativas.

Inicialmente, a Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara do município l teve parecer contrário à aprovação do PL. Em abril passado, o Coronel Fabrício abriu um recurso pedindo que o parecer fosse reconsiderado, o que foi acatado em 1 de julho, 3 dias antes da promulgação da lei.

Bereia entrou em contato com o Ministério Público do Estado do Espírito Santo, que informou em nota que instaurou Notícia de Fato para verificar a legalidade da lei. O órgão desconsiderou a medida de imposição de uma oração ligada a uma única religião e concluiu que não há ilegalidade, alegando que a participação durante a oração do ‘Pai Nosso’ é voluntária. 

Leia a nota na íntegra:

“O Ministério Público do Estado do Espírito Santo, por meio da Promotoria de Justiça Cível de Cachoeiro de Itapemirim, informa que instaurou Notícia de Fato para verificar a legalidade da Lei Municipal 8.186/2025.

Após análise, o Ministério Público concluiu que não há ilegalidade na norma, uma vez que a participação na oração é expressamente voluntária, preservando a liberdade religiosa e o princípio da laicidade do Estado. 

Não foram encontrados ainda elementos que configurassem violação de direitos ou imposição religiosa. Diante disso, o procedimento foi arquivado.”

Estado laico 

Segundo a Constituição do Brasil, o país funciona sob o sistema de Estado laico, o que significa que o instituições públicas não podem adotar ou promover religiões. 

O Art.19 da Constituição Federal institui que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, incluindo no ambiente escolar. Já o Art.5, inciso VI, assegura a liberdade de crença e culto (o que garante o direito de crer e de não crer).

A Lei nº 8186 /2025 prevê o respeito à diversidade cultural e religiosa nas escolas e considera que o ‘Pai Nosso’ defende o caráter universal desta prática e o lugar desta oração na cultura.  Porém, várias são as críticas a este tipo de proposição porque ela priviiegia prática de uma única religião, a cristã, e desconsidera outras crenças e práticas também presentes na cultura.

Em 13 de junho passado, o coletivo independente ‘Não só Mais um Silva’ publicou uma nota de repúdio ao PL 15/2025. O grupo considerou a proposta um “atentado aos princípios constitucionais que garantem o direito à liberdade religiosa e o Estado laico”. Foi denunciado ainda que a oração do ‘Pai Nosso’ nas escolas é um “desrespeito à pluralidade e aos direitos fundamentais dos cidadãos”.

Bereia fez reportagem sobre outros Projetos de Lei de igual teor

Bereia já verificou que, em diversas partes do país, PLs do mesmo teor têm sido apresentados por vereadores de partidos da direita política, com textos  que revelam um padrão, na busca de inserir a leitura da Bíblia nas escolas. A questão tem levantado debates, visto que apoiadores da medida alegam se tratar de uma forma de preservação da “ética e de valores”, enquanto críticos avaliam os projetos como interferência indevida e ameaça à democracia e à laicidade do Estado. 

O ensino religioso é previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) com caráter não-confessional, ou seja, educar sobre religiões sem que nenhuma seja favorecida em detrimento de outra. Quando uma crença é favorecida, alunos com crenças diferentes podem se sentir excluídos ou constrangidos no ambiente escolar, ainda que a participação seja voluntária. 

A professora e pesquisadora de Educação e Religião Andréa Silveira reflete sobre este cenário: “O que está sendo disputado é o poder de estabelecer quais são as virtudes cívicas que, levadas às últimas consequências, são definidoras da própria identidade nacional”. 

Andrea Silveira alerta que é “por isso, [que] vem crescendo a cada pleito a presença de atores religiosos na disputa da representação no Legislativo e no Executivo”. Para a pesquisadora, eles “não apenas acreditam que quem controla a escola governa o mundo, mas também, disputam o campo político como agentes desse controle por meio das políticas públicas para a educação.”

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Imagem de capa: Gabriel Jabur/Agência Brasil

Interferência de religiosos na educação: professor perseguido por aula com mitologias africana e grega pede demissão de escola municipal

Um professor de história pediu desligamento de uma escola municipal em Ilhabela (Litoral de São Paulo), que segue o modelo cívico-militar. Ele alega  ter adoecido por conta do constrangimento público que sofreu por ter usado símbolos da mitologia africana e grega em aula sobre o conceito de tempo. A atividade em questão foi ministrada para turmas do sexto ano do ensino fundamental, questionada por responsáveis de alunos ligados a grupos religiosos e criticada publicamente por um vereador, durante sessão plenária da Câmara Municipal da cidade. 

Bereia teve acesso à matéria do UOL sobre o caso e buscou aprofundar as informações, para que não seja tomado como algo isolado, como se pode observar por conta de outras checagens e reportagens.

Entenda o caso

O doutorando em História, professor César Augusto Mendes Cruz, ministrou, na primeira quinzena de fevereiro passado, aula sobre o conceito de tempo sob diferentes perspectivas culturais, para turmas do sexto ano da Escola Municipal (Cívico-Militar) Major Olímpio, em Ilhabela (SP). Segundo o professor, o objetivo era mostrar como diferentes civilizações compreendem e representam o tempo, utilizando referências da mitologia africana e grega. 

O mito iorubá de Irokô foi usado para apresentar o tempo como uma entidade simbólica nas culturas de matriz africana; e a figura do titã Cronos, na grega. A aula foi ilustrada por três obras de arte europeias que representam o tempo como um homem idoso: uma pintura de Francisco Goya, uma de Peter Paul Rubens e uma de Jacopo del Sellaio; a canção “Oração ao Tempo”, de Caetano Veloso, foi usada para concluir a reflexão.

O conteúdo, no entanto, foi alvo de críticas de natureza religiosa e ideológica da parte de responsáveis pelos estudantes e da direção da escola, o que gerou forte repercussão. Ainda em fevereiro, o professor foi convocado para uma reunião com integrantes do alto escalão da Secretaria Municipal de Educação (SME) de Ilhabela. De acordo com ele, o encontro, com a presença do secretário adjunto de Educação, um assessor jurídico, coordenadoras pedagógicas e membros da gestão escolar da unidade onde lecionava, ocorreu sem aviso prévio.

“Entrei na sala sem celular, sem testemunhas, sem saber do que se tratava. Fui surpreendido e inquirido por seis pessoas”, declarou. Ainda de acordo com Cruz, os questionamentos giraram em torno de reclamações feitas por pais inconformados com o conteúdo da aula sobre o conceito de tempo, que incluía referências afro-brasileiras.

Posteriormente, César Cruz buscou acesso aos registros da reunião, sem sucesso. Ele afirma ter protocolado três solicitações formais com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), pedindo cópia da ata da reunião e das reclamações feitas por familiares. No entanto, segundo o professor, a SME não respondeu dentro dos prazos legais, nem forneceu os documentos requisitados.

Além disso, o educador solicitou por escrito uma retificação da ata da reunião e orientações específicas da secretaria sobre como abordar conteúdos afro-brasileiros no currículo escolar, como exige a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. A resposta, segundo ele, só veio parcialmente, semanas depois, sem atender integralmente às demandas.

Vereador do Partido Liberal desinforma em plenário

O caso foi politizado e chegou à Câmara Municipal de Ilhabela. A aula foi alvo de críticas em discurso do vereador Gabriel Rocha (PL) na tribuna da Câmara Municipal de Ilhabela. O parlamentar concentrou sua fala na pintura de Francisco Goya, que representa o deus grego Cronos, também conhecido como Saturno, entre romanos, devorando um filho. O quadro foi uma das imagens apresentadas durante a atividade voltada ao conceito de tempo em diferentes culturas. 

“Essa aula foi dada para crianças de dez anos. O que estão aprendendo é sobre um quadro libidinoso e perturbador”, afirmou na tribuna e ainda disponibilizou o discurso em vídeo divulgado em seu perfil no Instagram. Rocha leu trechos de uma análise psicanalítica que interpretava a obra com referências à “impotência sexual” e “horror canibal”. Ele também admitiu não compreender o assunto abordado em aula. “Talvez eu não entenda muito de história”, disse o vereador que é formado em Fisioterapia e Medicina Chinesa (Acupuntura) e expõe em mídias sociais uma identidade católica.

Além deste vídeo nas mídias sociais, o político de extrema direita publicou outros quatro sobre o professor Cruz e a denúncia. Gabriel Rocha foi o mais votado da legenda nas últimas eleições e foi o idealizador da implantação das escolas cívico-militares no município que é administrado pelo prefeito Toninho Colucci, também do PL. A plataforma das escolas cívico-militares vem sendo implementada no estado pelo governador de São Paulo, o capitão do Exército Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Imagem: Reprodução/Instagram


A obra do pintor e escultor espanhol Francisco Goya, produzida em 1819, representa o mito grego de Cronos — ou Saturno, na mitologia romana — que devora os próprios filhos ao saber, por profecia, que seria destronado por um deles. A pintura é conhecida por seus traços sombrios e foi utilizada como um dos exemplos visuais para discutir como diferentes culturas representam o tempo.

Reprodução: quadro “Saturno devorando um filho” de Francisco Goya

Adoecimento

Após as denúncias do vereador Gabriel Rocha e a repercussão do caso, o professor de história César Augusto Mendes Cruz passou a ser perseguido nas redes digitais e em grupos ligados a lideranças religiosas. “Meu nome circulou em grupos de WhatsApp de pastores, e minhas redes sociais foram vasculhadas por familiares de alunos”, afirma.

Cruz atribui ao pronunciamento do parlamentar o agravamento do clima de hostilidade. “Ele ignorou todo o conteúdo plural da aula e reduziu a atividade a uma única imagem, retirada de contexto, como se meu objetivo fosse chocar ou causar perturbação”, diz. Para o docente, a crítica não teve base pedagógica, mas sim caráter político e ideológico. “Essa fala serviu como combustível para os ataques e reforçou minha sensação de isolamento.”

Após ser exposto e atacado, o professor se sentiu acuado e afirmou que não tinha mais condições de permanecer em sala de aula e pediu demissão. “Fiquei doente. E não queria ser mais um educador adoecido num ambiente que normaliza o assédio”, disse.

O que diz a lei?

A Lei nº 11.645/2008 alterou o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. (Nesta alteração de 2008, foi incluída a cultura indígena ao texto de 2003).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017, estabelece diretrizes para a educação básica no Brasil e reforça a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena, conforme previsto nas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008.

No componente curricular de História, a BNCC propõe que os estudantes desenvolvam a habilidade de: “Identificar diferentes formas de compreensão da noção de tempo e de periodização dos processos históricos (continuidades e rupturas) ”. (Página 421 da BNCC – EF06HI01)

Entidades acadêmicas, sindicatos de professores e movimentos educacionais divulgaram notas de repúdio, acusando a Prefeitura de Ilhabela de omissão diante do que consideram um caso de censura pedagógica.

O conteúdo apresentado em sala de aula foi respaldado publicamente pela seção paulista da Associação Nacional de História (ANPUH-SP), entidade que representa historiadores no estado. Em nota divulgada nas redes sociais, a organização afirmou que a atividade estava de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Currículo Paulista e a Lei 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. A ANPUH-SP também manifestou repúdio ao que classificou como “obstrução do trabalho como historiador” e “interferência irregular da administração escolar”.

O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), também publicou nota criticando a postura da gestão escolar diante da pressão exercida por grupos externos. A entidade apontou que o episódio se assemelha à lógica de propostas como a do projeto “Escola Sem Partido” e defendeu a autonomia docente, destacando que o conteúdo fazia parte do currículo oficial e que a liberdade de cátedra deve ser preservada.


Imagem: Reprodução Instagram


Imagem: Reprodução Instagram

Pressões ideológicas na educação

O caso do professor César Augusto Mendes Cruz não é isolado. Nos últimos anos, a educação brasileira tem sido palco de embates ideológicos protagonizados por setores da extrema direita política e religiosa que buscam limitar a autonomia docente e reconfigurar o currículo escolar com base em agendas conservadoras. Essas investidas têm gerado denúncias de censura pedagógica, perseguição a professores e o enfraquecimento de políticas de valorização da diversidade cultural.

Entre os principais instrumentos dessa ofensiva está o Projeto Escola Sem Partido (ESP), apresentado em diversas casas legislativas do país desde 2004. Com o argumento de combater a “doutrinação ideológica”, o projeto, que nasceu no contexto católico romano,  propõe limitar a atuação dos professores, proibindo que expressem opiniões pessoais e tratando temas como gênero, sexualidade, raça e política como potenciais formas de “influência ideológica”.

Embora o ESP nunca tenha sido aprovado em nível federal, diversas versões municipais e estaduais foram propostas ou implementadas. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que propostas do tipo violam a liberdade de cátedra e o pluralismo de ideias, princípios constitucionais garantidos pelo artigo 206 da Constituição Federal. Ainda assim, iniciativas informais de fiscalização de professores continuaram ocorrendo. Mesmo sem aprovação legal, ações de intimidação e pressão política foram incentivadas por apoiadores da pauta, levando ao cerceamento informal da prática pedagógica.

Segundo o Mapeamento Educação Sob Ataque, realizado pela Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, houve ao menos 201 casos entre 2013 e 2023 envolvendo intimidação a docentes por conteúdo abordado em sala de aula. Um dos episódios relatados ocorreu em Jaguariúna (SP), em 2022, quando um professor foi ameaçado após abordar diversidade sexual e de gênero em aula — o caso ganhou repercussão nacional após ser compartilhado por figuras públicas nas redes sociais, resultando em ataques diretos ao docente e à sua família.

O relatório da Human Rights Watch (HRW), de 2022, também documenta como o clima de censura impulsionado por iniciativas como o projeto “Escola Sem Partido” tem restringido a liberdade de ensinar. A organização relata o caso da professora Sayonara Nogueira, de Uberlândia (MG), que passou a evitar certos temas em aula após sofrer perseguições e vigilância por parte de grupos organizados. O documento aponta que esse tipo de pressão tem levado professores a se autocensurar, com receio de retaliações por parte de famílias, gestores e políticos locais.

Esses episódios exemplificam um cenário mais amplo de hostilidade à autonomia docente e à diversidade de pensamento no ambiente escolar — fenômeno que tem crescido paralelamente ao avanço de pautas ultraconservadoras na política e na educação brasileira.

O que dizem especialistas?

Bereia ouviu a doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juíz de Fora, pesquisadora na área de religião, política, educação, fundamentalismo religioso e ensino religioso, e professora da educação básica Andréa Silveira de Souza. Ela aponta que casos como o do professor de História de Ilhabela revelam o protagonismo da religião cristã conservadora na perseguição a docentes. Segundo ela, essa influência se manifesta tanto de forma explícita, como na polêmica envolvendo o uso de mitos iorubás em sala de aula, quanto de forma implícita, ao estruturar um projeto de controle moral baseado na lógica do “Escola Sem Partido”. 

Para a pesquisadora, o discurso que defende o direito dos pais garantirem uma educação religiosa e moral compatível com suas crenças, mesmo em escolas públicas e laicas, é a base ideológica de uma agenda fundamentalista que busca suprimir a pluralidade e o pensamento crítico no ambiente escolar. 

“Fato é que a religião, na sua forma cristã e conservadora, se tornou eixo estruturante e organizador de programas, projetos, discursos e iniciativas que diuturnamente vigiam e perseguem professoras e professores com o objetivo de silenciá-los e destituir do espaço escolar qualquer traço de pluralidade e valorização da diversidade de ideias, formas de pensar, crer, ser, viver e estar no mundo”, explica a doutora em Ciência da Religião. 

Andréa Silveira também alerta para a institucionalização da perseguição a professores, intensificada com a ascensão da extrema direita ao poder desde 2018. Ela ressalta que, embora o discurso de vigilância a educadores esteja presente desde 2003, com o surgimento do “Escola Sem Partido”, a atuação direta de gestores escolares e políticos conservadores têm tornado a autocensura uma realidade comum entre docentes. “A autocensura tem se tornado uma forma de autopreservação”, lamenta. 

A professora destaca ainda que esse cenário se agrava com a desvalorização histórica da carreira docente no Brasil, levando muitos educadores ao adoecimento emocional e profissional, como no caso do professor de Ilhabela, que pediu demissão após sofrer pressão política e religiosa. 

“Esse caso é importante porque ilustra não apenas o modo como a religião na sua perspectiva cristã foi capturada pelo conservadorismo alinhado à extrema direita, mas também, o método de instrumentalização da religião por parte desses grupos, que conta com a atuação direta de famílias, gestores escolares, poder executivo e legisladores municipais, articulados para vigiar e impedir o que deve ou não ser ensinado na escola, bem como o que deve ou não ser utilizado como recurso didático-pedagógico”, frisa Andrea Silveira. 

Na avaliação da pesquisadora, o modelo das escolas cívico-militares, como a unidade em que ocorreu o episódio, é emblemático desse projeto conservador. Essas instituições, segundo ela, combinam militarismo e moral religiosa para impor um controle rígido sobre currículos e práticas pedagógicas, sem que isso necessariamente traga benefícios à aprendizagem. “Nesses espaços, a religião assume um papel essencial de controle moral”, observa. Para Andréa Silveira, esse controle, somado ao clima de desconfiança e hostilidade cultivado por discursos da extrema direita, tem rompido os vínculos fundamentais entre professores e estudantes, minando a confiança necessária para um processo educativo pleno. “Sem diálogo e respeito à alteridade, nós caminhamos a passos largos para a barbárie”, conclui.

Bereia ouviu também o doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juíz de Fora, professor e pastor Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek. Para o pesquisador, o caso do professor perseguido em Ilhabela é mais um reflexo da desvalorização da liberdade de cátedra no Brasil. Ele critica o fato de educadores altamente preparados terem seus conteúdos questionados por setores políticos que demonstram desconhecimento e desprezo pelo saber acadêmico. “Mesmo diante de uma discordância, o caminho é o diálogo, e não o constrangimento inquisitorial”, defende. 

Dusilek destaca ainda que não apenas professores, mas também pastores, ao considerar o contexto das igrejas evangélicas, têm sofrido com a pressão de grupos religiosos capturados por um fundamentalismo com motivação política. Este movimento utiliza as igrejas como plataformas para reverberar ideologias de extrema direita mascaradas de doutrina religiosa. “As igrejas, via de regra, se tornaram em espaço de reverberação do fundamentalismo, que nada mais é que uma ideologia política de extrema direita com verniz religioso”, aponta o doutor em Ciência da Religião. 

Segundo o pesquisador, esse movimento tem impactos diretos sobre a educação, como a censura seletiva de conteúdos, o aumento da vigilância sobre docentes e a demonização do ensino público, especialmente das universidades federais. Dusilek aponta ainda o desprezo generalizado pela figura do professor, o que, além de incentivar a violência contra esses profissionais, contribui para a precarização da carreira docente. “Parece que parte das igrejas passou a agir como meio de pressão, reagindo a espantalhos criados por discursos ideológicos”, afirma.

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Bereia ressalta o caráter alarmante da escalada da violência e da desvalorização da educação no Brasil diante dos fatos supracitados. A apuração desta reportagem revelou algo maior do que um caso isolado: trata-se de uma engrenagem articulada entre política, religião e desinformação, que tem mirado diretamente no coração da educação no país, seus professores. O que é observado em Ilhabela, e em tantos outros episódios recentes, é a tentativa de silenciar a formação ampla, o pensamento crítico, que inclui a arte e a articulação de diversas perspectivas da vida, submetendo a escola a interesses ideológicos que nada têm a ver com o direito à educação garantido pela Constituição do País. 

Chama a atenção do Bereia a ausência de notícias sobre o caso do professor César Augusto Mendes Cruz em veículos da imprensa tradicional – apenas o site UOL repercutiu nacionalmente o caso. Além dele, apenas sites locais e de viés progressista relataram e alertaram sobre o ocorrido. 

Referências

UOL

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/05/14/aula-com-mitologia-gera-demissao-de-professor-em-sp-fui-acuado-e-exposto.htm – Acesso em 24 MAI 2025

Jornal do Litoral

https://jornaldolitoral.com/index.php/2025/05/15/professor-de-ilhabela-pede-demissao-apos-polemica-com-mitologia-em-aula-para-adolescentes/ – Acesso em 24 MAI 2025

Portal6

https://portal6.com.br/2025/05/19/professor-pede-demissao-de-colegio-militar-apos-pais-nao-gostarem-do-conteudo-que-ele-passou-para-os-alunos/ – Acesso em 24 MAI 2025

Tribuna de Minas

https://tribunademinas.com.br/colunas/maistendencias/professor-e-demitido-apos-dar-aula-com-mitologia-para-alunos/ – Acesso em 24 MAI 2025

Revista Fórum

https://revistaforum.com.br/brasil/2025/5/14/professor-atacado-em-sp-apos-dar-aula-sobre-mitologia-africana-grega-179329.html – Acesso em 24 MAI 2025

Educação Sob Ataque

https://educacaosobataque.org/ – Acesso em 30 MAI 2025

Human Rights Watch

https://www.hrw.org/pt/report/2022/05/12/381942  – Acesso em 30 MAI 2025

STF

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=450392  – Acesso em 30 MAI 2025

Instagram

https://www.instagram.com/p/DG1Dy64PT5p/?utm_source=ig_embed&ig_rid=017aee5e-44c4-4d60-b6a0-8972ef53d339   – Acesso em 30 MAI 2025

https://www.instagram.com/p/DGnt-2uuhhs/?utm_source=ig_embed&ig_rid=81ef9642-e8f9-412f-add3-77f395e28bdb  – Acesso em 30 MAI 2025

CONJUR

https://www.conjur.com.br/2021-jun-20/constituicao-stf-inconstitucionalidade-escola-partido/#:~:text=A%20suposta%20neutralidade%20pretendida%20pelo,o%20Estado%20Democr%C3%A1tico%20de%20Direito.  – Acesso em 30 MAI 2025

Camara

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Leis

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Agência Brasil

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Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/politica/governo-tarcisio-volta-atras-e-quer-implementar-escolas-civico-militares-em-sp-ainda-em-2025/  – Acesso em 2 JUN 2025

Religião e Poder

https://religiaoepoder.org.br/artigo/escola-sem-partido – Acesso em 2 JUN 2025

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Foto de capa: Paulo Stefani / PMI

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