O que é woke e por que o termo virou alvo de disputas políticas e religiosas

Woke é uma palavra da língua inglesa: a conjugação do verbo wake, acordar, com o significado de “acordado”. A construção política do termo, nos Estados Unidos, remonta ao século XX, quando ganha significado no vocabulário das pautas afro-americanas. Nesse contexto,  woke tornou-se alerta de vigilância contra a injustiça, hoje o termo é usado em memes, discursos políticos e pregações religiosas de forma bem diferente de sua origem. Importado do debate estadunidense, o termo woke ganhou força no Brasil como rótulo pejorativo.

Esta matéria integra a série especial Bereia Explica sobre termos usados  para desinformação em discursos políticos e religiosos. Nesta primeira parte, são apresentadas  a origem e a trajetória de woke. Na segunda, é introduzido  o conceito de “marxismo cultural”, outro rótulo amplamente difundido em redes religiosas e políticas, também marcado por distorções históricas e ideológicas.

Primeiros registros do termo “Woke”

A National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) – maior e mais antigo grupo de direitos civis da América dos Estados Unidos – afirma que, o uso do termo “woke” está documentado desde a década de 1920 e surgiu como um sinal interno ao grupo afro-americano, “incentivando os negros a estarem cientes dos sistemas que os prejudicam e, os colocam em desvantagem”.

O ativista Marcus Garvey, em sua coletânea The Philosophy and Opinions, publicada em 1923, apresenta a inspiradora convocação:

“Wake up Ethiopia! Wake up Africa! Let us work towards the one glorious end of a free, redeemed and mighty nation. Let Africa be a bright star among the constellation of nations.”

Imagem: The Majority Press

Esse apelo pode ser traduzido livremente como: “Acorde, Etiópia! Acorde, África! Trabalhemos em direção ao único e glorioso objetivo de uma nação livre, redimida e poderosa. Que a África seja uma estrela brilhante entre a constelação de nações”. Isto reflete o ideal pan-africanista e o chamado à emancipação coletiva promovido por Garvey, que inspirou o uso do termo woke em outras expressões de busca por justiça para a população negra.

De acordo com o jornalista e escritor Michael Harriot, autor do livro, Black AF History: The Un-Whitewashed Story of America, em 1940, após descobrir que estavam recebendo menos do que seus colegas brancos, o líder de um sindicato de mineiros negros na Virgínia Ocidental, que lançou uma greve contra salários discriminatórios, teria dito, segundo a pesquisa de Harriot: “Estávamos dormindo. Mas continuaremos acordados de agora em diante”

A investigação de Elijah Watson

O jornalista Elijah Watson realizou, em 2017, uma longa pesquisa sobre as origens do termo “woke”. Em uma série de três reportagens, Watson mostrou como o termo nasceu na cultura afro-americana, como sinônimo de estar acordado e atento às injustiças raciais, ganhou nova vida nos anos 2000 nas culturas  hip hop e do soul com artistas como Erykah Badu e Georgia Anne Muldrow Por fim, foi desgastado e transformado em rótulo pejorativo, como sinônimo de radicalismo de esquerda.

📸 Imagem: Disco New Amerykah Part One (4th World War) (2008). Erykah Badu.

Watson analisa que o termo começou a perder força a partir de meados da década de 2010.

Se antes era positivo, sinônimo de consciência crítica, woke passou a ser usado também de forma pejorativa — inclusive por progressistas, que criticavam o uso performático e superficial da palavra. Com o tempo, o termo foi apropriado por influenciadores da extrema direita política como uma caricatura de militância exagerada.

Hoje, assinei um projeto de lei que acaba com a doutrinação woke em nossas escolas e locais de trabalho.
Estamos dando a pais, estudantes e funcionários a capacidade de reagir — Ron DeSantis, 22 de abril de 2022

O percurso do termo woke mostra como uma palavra criada por negros estadunidenses para despertar consciências contra a desigualdade racial foi apropriada pelo público em geral e, depois, distorcida por interesses ideológicos. 

Como lembra o jornalista Elijah Watson, as palavras evoluem rapidamente, e com as redes sociais esse processo se acelera: expressões criadas na comunidade negra logo são absorvidas, diluídas e até caricaturadas. Foi o que aconteceu com “woke”, que deixou de ser alerta contra injustiças para virar rótulo de disputa cultural. O processo teve a colaboração de meios de comunicação tradicionais — que tratam o termo como gíria de moda — e também de políticos interessados em transformá-lo em alvo.

Para especialistas, esse ataque não é apenas a uma palavra, mas à própria possibilidade de ensinar a história e reconhecer a dignidade da população negra. Como resume o escritor Michael Harriot, é mais fácil demonizar uma palavra do que admitir que se está atacando vidas e trajetórias humanas.

Uso político

O uso político do termo woke atingiu seu auge depois dos protestos de 2020 contra o racismo e a violência policial, quando milhões de norte-americanos buscaram aprender mais sobre racismo sistêmico e a história da anti negritude no país. Como resume o NAACP Legal Defense Fund:

“Mas quem é o culpado pela escalada especialmente febril em torno da palavra ‘woke’, que atingiu seu pico após o acerto de contas com a justiça racial de 2020, que na época inspirou uma onda de interesse entre os americanos que buscavam aprender mais sobre o racismo sistêmico e a história da anti-negritude neste país? A resposta, é claro, inclui políticos com motivações políticas e outros atores mal-intencionados que buscam disseminar o medo e impedir o progresso da justiça racial. Mas vai além disso.

Nos Estados Unidos, a disputa em torno da palavra woke chegou à legislação. O exemplo mais emblemático é a Stop WOKE Act , sancionada em 2022 pelo governador da Flórida, Ron DeSantis. A lei apresenta-se como uma defesa da “liberdade contra a doutrinação” nas escolas, proibindo o ensino de princípios associados à Teoria Crítica da Raça (CRT) e classificando treinamentos de diversidade como ilegais no ambiente de trabalho.

À primeira vista, a lei pode soar positiva: afirma incluir a história dos Estados Unidos, do Holocausto, de afro-americanos, hispânicos e mulheres, e se apresenta como proteção contra ideias discriminatórias. No entanto, especialistas e organizações de direitos civis apontam que, na prática, ela funciona como instrumento de censura, restringindo debates sobre racismo estrutural, privilégio e desigualdade. Pesquisadores compararam seus efeitos a antigas leis que proibiam a alfabetização de negros, agora aplicadas à proibição de um ensino crítico sobre raça.

O NAACP Legal Defense Fund alerta que a medida cria um efeito “gélido” nas salas de aula, levando professores e estudantes a se autocensurar por medo de retaliações. Há relatos de docentes que deixaram seus cargos por não terem liberdade de abordar sistemas racistas, além do bloqueio de programas de ensino avançado em estudos afro-americanos. 

Assim, o termo woke, antes usado como alerta contra injustiças, é transformado em inimigo simbólico, mobilizado em políticas públicas que, sob a aparência de neutralidade, promovem o apagamento da história negra e freiam avanços em justiça racial e inclusão.

Como o termo circula em redes religiosas no Brasil

No Brasil, woke se tornou um rótulo genérico, usado em discursos religiosos e políticos como sinônimo de “politicamente correto” (entendido como exagero no ajuste correto da linguagem para evitar discriminações) ou de uma suposta tentativa de “ideologizar” crianças, jovens e até adultos por meio de escolas, universidades, jornais, TVs e filmes. 

Neste enquadramento, praticamente tudo pode ser classificado como woke: desde debates sobre diversidade até produções culturais ou medidas de inclusão social. A palavra funciona, assim, como uma atualização de outros termos já usados no país com o mesmo propósito, como “ideologia de gênero” ou “marxismo cultural”, todos mobilizados para criar a sensação de que valores tradicionais estariam sob ataque.

Além de servir como rótulo genérico, woke foi incorporado às narrativas conspiratórias em redes religiosas no Brasil. Estudos recentes mostram que comunidades no Telegram com agendas anti-woke, anti-gênero e revisionistas formam uma parte central do debate conspiratório nacional. Ao ser usado como “insulto genérico”, “woke” perde seu sentido original de vigilância contra injustiças e passa a operar como arma retórica para controlar a linguagem e limitar os espaços de debate democrático.

Pesquisadores como Isabela Kalil (FESPSP) e Guilherme Casarões (FGV-EAESP) apontam que essa disseminação está ligada à fabricação de discursos polarizados e simplificados, capazes de mobilizar leituras religiosas e conservadoras sobre o presente. 

Em paralelo, trabalhos do Instituto Atlas alertam para o fato de que o discurso político extremista que faz uso da religião para convencer tem reconfigurado o debate público, transformando woke em símbolo — inclusive sob o viés moral — de uma “máxima ameaça” à fé e à família.

A história do termo woke ajuda a entender como as palavras podem atravessar fronteiras culturais e ganhar novos sentidos em contextos distintos. O que nasceu como um chamado afro-americano para vigilância contra a injustiça racial foi absorvido pelo vocabulário popular, diluído pela mídia, apropriado por movimentos políticos e transformado em rótulo pejorativo em disputas ideológicas. 

Nos Estados Unidos, essa transformação chegou ao ponto de orientar legislações que restringem o ensino crítico sobre raça. No Brasil, o termo “woke” circula com força em redes religiosas, apresentados como ameaças à fé e à família, em um processo que mistura moralidade, identidade e política. 

Recuperar a origem e o verdadeiro significado desses termos é, portanto, um passo essencial para evitar simplificações e desinformação e para se compreender como a linguagem pode ser usada tanto para promover consciência quanto para justificar exclusões.

Referências:

A Origem do Woke por Elijah C. Watson. https://www.okayplayer.com/the-origin-of-woke-william-melvin-kelley-is-the-woke-godfather-we-never-acknowledged/698051?utm Acesso em 27 AGO 25

https://www.okayplayer.com/the-origin-of-woke-how-erykah-badu-and-georgia-anne-muldrow-sparked-the-stay-woke-era/451522 Acesso em 27 AGO 25 

https://www.okayplayer.com/the-origin-of-woke-how-the-death-of-woke-led-to-the-birth-of-cancel-culture/411500 Acesso em 27 AGO 25 

Legal Defense Fund (LDF) 

https://www.naacpldf.org/woke-black-bad/

https://www.naacpldf.org/about-us

https://www.naacpldf.org/press-release/florida-educators-and-students-challenge-floridas-discriminatory-stop-woke-act

TIME https://time.com/4830959/oxford-english-dictionary-woke/?utm 

https://time.com/6168753/florida-stop-woke-law/?utm

https://aaregistry.org/story/black-history-and-stay-woke-a-story

http://aaregistry.org/story/the-negro-world-is-published/ 

https://www.amazon.com/Black-AF-History-Whitewashed-America/dp/0358439167

https://www.naacpldf.org/woke-black-bad/?utm_

https://arxiv.org/abs/2409.00325?utm

https://atlasinstitute.org/the-evangelical-populist-nexus-and-democratic-risks-in-brazil/?utm_

https://fundacaofhc.org.br/en/debate/the-far-rights-social-media-strength-ideology-and-strategy/?utm_

https://www.laphamsquarterly.org/migration/manifest-destiny?utm

https://www.jpanafrican.org/ebooks/eBook%20Phil%20and%20Opinions.pdf

Imagem de capa: Freepik

Por que Testemunhas de Jeová não são classificadas como evangélicas? Bereia explica controvérsia sobre dados do Censo 2022 e distinções doutrinárias 

*Matéria atualizada 15/07/2025 para correção de informação


A recente divulgação dos dados do Censo Demográfico de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) gerou debates, especialmente em relação à classificação de grupos religiosos. Uma das principais discussões levantadas por parte do público evangélico e por comentaristas do tema foi a não inclusão das Testemunhas de Jeová na categoria “evangélicos”, o que, segundo alguns, teria impactado para menos o percentual de crescimento do segmento. 
Diante da repercussão, Bereia buscou especialistas para elucidar os motivos dessa classificação e as distinções teológico-doutrinárias que fundamentam a decisão do IBGE.

Imagem: print site Agência Brasil

O contexto das críticas 

Com a publicação dos resultados do Censo 2022, que apontaram o crescimento dos evangélicos para mais de um quarto da população brasileira (26,9%), alguns comentários públicos questionaram a metodologia do IBGE por não alocar as Testemunhas de Jeová no grupo evangélico, mas sim em “Outras religiosidades”. Essa abordagem gerou a percepção de que o número de evangélicos poderia ser ainda maior se essa inclusão fosse feita.  

Para aprofundar a compreensão sobre a classificação, o Bereia entrevistou o doutor em Ciência da Religião Emerson José Sena da Silveira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Segundo o especialista, a decisão do IBGE de enquadrar as Testemunhas de Jeová na categoria “Outras religiosidades” é correta, apesar de se referirem a Jesus Cristo e, genericamente, poderem ser considerados cristãos.

O pesquisador aponta quatro principais divergências doutrinárias e práticas que separam as Testemunhas de Jeová dos evangélicos (protestantes históricos, pentecostais e outros movimentos):

1. Divergência Cristológica: Para as Testemunhas de Jeová, Jesus Cristo não é Deus, mas o primogênito criado por Jeová, nome que consideram o correto e legítimo para Deus. Esta visão contrasta diretamente com a doutrina da Trindade, pilar inegociável para a maioria das denominações evangélicas, que creem em um só Deus manifesto em três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo).


2. Regras Comportamentais Rigorosas: Testemunhas de Jeová adotam a proibição de transfusões de sangue e retiro e outras restrições associadas ao Antigo Testamento, que não são práticas comuns ou obrigatórias entre evangélicos.


3. Exclusivismo Religioso: Testemunhas de Jeová acreditam ser o único grupo que guarda a interpretação correta da Bíblia, o que as leva a desincentivar relacionamentos e interações sociais fora dele.


4. Abstenção de celebrações, de atuação política e do serviço militar: Testemunhas de Jeová seguem uma postura pacifista, que as impedem de exercer o serviço militar, distanciam-se de manifestações cívico-religiosas e da participação política, o que as diferencia de muitos grupos evangélicos engajados nessas esferas.

O prof. Emerson Sena observa que “estas e outras características fazem das Testemunhas de Jeová uma organização religiosa mais separada das demais organizações cristãs, mais sectária, se usarmos as ideias [do estudioso das religiões] Max Weber sobre seita, que não é um julgamento de valor ou preconceito, mas uma ideia sociológica”.

Corroborando esta análise, o pastor e teólogo Átila Augusto, doutorando em Ciência da Religião pela  PUC-SP, afirmou ao Bereia que as Testemunhas de Jeová “não são evangélicas, nem do ponto de vista histórico, nem teológico-institucional”. Ele enfatiza que elas “nem reivindicam esse espaço; rejeitam as bases teológicas surgidas com a Reforma Protestante”.

As perspectivas

Em consulta aos documentos das Testemunhas de Jeová, Bereia verificou que elas próprias não se identificam como protestantes ou evangélicas. Este grupo religioso considera a crença protestante como uma “doutrina pagã e não bíblica”, defendendo a unicidade de Deus, a quem chamam exclusivamente de Jeová, e veem Jesus Cristo como sua primeira criação e um ser subordinado, não como o Deus Todo-Poderoso. Esta posição é amplamente divulgada em suas publicações oficiais abertas ao acesso público.

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O Censo do IBGE, que não classifica as Testemunhas de Jeová entre católicos e evangélicos, é recurso fundamental para a compreensão da diversidade religiosa do Brasil. Embora ambos sejam grupos cristãos, as Testemunhas de Jeová se distinguem deles por terem uma interpretação única da Bíblia e uma abordagem específica sobre fé e a prática religiosa, o que justifica a categorização do IBGE.

É importante ressaltar que qualquer abordagem sobre o Censo 2022 neste momento tem como base apenas os dados de agrupamento geral de religiões — pois ainda não há acesso aos números referentes aos subgrupos, conforme detalhado no “Apêndice 1 – Composição dos grandes grupos de religião”, que integra o documento do IBGE (2025). A lista inclui categorias como “Evangélicas de Missão” (com subdivisões como luterana, presbiteriana, metodista, batista, congregacional, adventista e outras), “Evangélicas de origem pentecostal” (com várias igrejas específicas), além de “Evangélicas – igrejas evangélicas indígenas” e “Evangélica não determinada”.

As informações completas dos subgrupos religiosos do Censo 2022 ainda será posteriormente divulgada,  possivelmente no segundo semestre de 2025, o que reforça a necessidade de cautela na interpretação inicial dos resultados e a importância de se basear em análises aprofundadas e contextualizadas, como as apresentadas pelo Bereia nesta matéria.

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Imagem de Capa: Divulgação/Testemunhas de Jeová

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