Caso Marajó: articulações políticas e religiosas da desinformação – parte 2

* Matéria atualizada em 01/07/2024 às 11:00 para acréscimo de informações

A parte 1 deste conteúdo, levantado pelo Bereia, abordou o caso Marajó, que inundou as redes digitais com desinformação e pânico moral após a viralização de uma música da cantora Aymeê Rocha, apresentada no reality show gospel Dom.

A menção ao tráfico de órgãos no Marajó, feita durante o Dom Reality, tem capítulos mais antigos também associados a grupos religiosos. Em vídeo disponível na plataforma Kwai, o pastor da Zion Church Lucas Hayashi diz que “recentemente, encontraram lá na Ilha do Marajó um cemitério clandestino com corpos sem os órgãos internos, de adultos e também de crianças. Possivelmente, tudo isso é para o comércio de órgãos, transplante”. Na última semana de fevereiro passado, o pastor foi confrontado pelo escritor Ale Santos, durante episódio do podcast Inteligência Ltda. Hayashi disse que não tem provas, e que apenas diz “o que as pessoas estão falando”.

A Zion Church, cujos líderes são os primos Lucas e Teófilo (Téo) Hayashi, descendentes de missionários evangélicos japoneses, tem como extensões da igreja o Instituto Akachi, que atua na Ilha de Marajó, e o Movimento Dunamis, que tem ligações com políticos conservadores e religiosos. 

Nas redes digitais da família Hayashi, o frequente apelo à vida religiosa coaduna-se com a propagação de pânico moral em pautas políticas. Em 7 de julho de 2022, o casal Lucas e Jackeline Hayashi publicou, no Instagram, uma defesa do armamento da população. Além de vídeos em que efetuam disparos em um estande de tiros, o casal, que lidera um programa da igreja voltado à educação infantil, mostra-se à vontade ao empunhar fuzis e posa sorrindo para a foto. A legenda traz alguns apelos: “Cuidado com a ‘beleza’ do desarmamento! Uma das maneiras de implementar um governo dit4dor é através do desarmamento. A 4rm4 é neutra. O problema está em quem a usa”.

Imagem: reprodução Instagram (Lucas e Jackeline Hayashi)

Assim que a música de Aymeê Rocha ganhou relevância nas redes, Lucas Hayashi publicou foto com a cantora em seu perfil no Instagram. Diversos conteúdos sobre o Marajó foram veiculados nos perfis de Lucas, de Téo, do Instituto Akachi e do Movimento Dunamis, incluindo relato de suposta vítima da exploração sexual, também publicado no canal do movimento no YouTube. Chama atenção o tom alarmante das postagens, que utilizam termos como “trazer à tona a verdade sobre Marajó”, e a divulgação da chave Pix do Instituto Akachi, propagada também por outros perfis nas redes.

Luis Barbosa, do Observatório do Marajó, destaca: “é muito importante que o Ministério Público seja acionado quando ocorrem essas denúncias, os conselhos tutelares, nas suas devidas competências, e não fazer campanhas, né? Campanhas feitas por organizações de outros estados para arrecadar fundos, arrecadar Pix, sendo que a gente nem sabe a procedência, de fato, dessa ajuda”.

Imagem: reprodução do Instagram (Lucas Hayashi e Aymeê Rocha)

A utilização do pânico moral e o apelo a experiências sobrenaturais é comum nas atividades coordenadas pelos Hayashi. Durante o lançamento do filme “Som da Liberdade”, envolto em controvérsias religiosas checadas por Bereia, Lucas Hayashi, ao falar sobre o problema da exploração infantil, disse que “trata-se de uma luta que transcende o mundo material natural, é uma guerra cultural de dimensões espirituais”.

No artigo “O Reino de Deus na Terra: Dunamis Movement, religião e política no Brasil contemporâneo”, a mestre em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Helen Teixeira relata que o Movimento Dunamis é um movimento paraeclesiástico marcado por fluidez e dinamismo. A pesquisa explica que o Dunamis é “composto e cercado de pessoas que pensam da mesma forma, ou passam a pensar concordemente, impactadas pelo senso de pertencimento comunitário, triunfalismo e estilo de vida cool, marcado pelo consumo e pela estética jovem, e também pelos atos milagrosos e místicos”.

Em entrevista ao Bereia, Helen Teixeira detalhou como o Movimento Dunamis importou ideias e conceitos religiosos norte-americanos, como a “teologia das sete montanhas”, para estruturar sua atuação no Brasil. As sete montanhas, ou sete áreas de influência, são: negócios e economia, governo, mídia, artes e entretenimento, educação, família e religião. “A ideia é que a sociedade está dividida em sete áreas que formam uma cultura (…) Isso tem tudo a ver com o dominionismo, com essa ideia de que os cristãos precisam ocupar as áreas de influência, precisam estar em postos de liderança para que a cultura do país volte a parecer a cultura do Reino de Deus”.

A noção de domínio está fundamentada na percepção de que os cristãos, por muito tempo, isolaram-se na esfera religiosa e não atuaram nas demais áreas de influência, razão pela qual a cultura estaria “perdida e decaída”. Fora do campo conceitual, a participação da Zion na vida política no país tem como exemplo maior o festival The Send Brasil, organizado pelos Hayashi, em 2020. O evento ocorreu simultaneamente em três estádios de futebol – Morumbi (SP), Allianz Parque (SP) e Mané Garrincha (DF) – e contou com a participação da então ministra Damares Alves e do então Presidente da República Jair Bolsonaro, que foi ovacionado pela plateia presente no Mané Garrincha, em Brasília. Bereia checou material sobre o evento à época.

Imagem: reprodução Pleno News (Bolsonaro no festival The Send Brasil)

Imagem: reprodução do Guiame (Damares no festival The Send Brasil)

Outra figura importante do Dunamis Movement, Henrique Krigner foi candidato a vereador em São Paulo pelo Partido Progressista (PP). Estreante, não foi eleito, mas recebeu mais de 16 mil votos e doações de grandes empresários. A Big Wave Media, produtora de conteúdo ligada ao Movimento Dunamis, recebeu R$ 40.000 por serviços prestados à campanha.

Em seus perfis em mídias sociais, Krigner diz que está cursando mestrado em Políticas Públicas, na Liberty University, universidade localizada no estado da Virgínia (EUA), fundada pelo pastor batista Jerry Falwell, destacado líder do fundamentalismo naquele país, em 1971, e conhecida por reunir evangélicos articulados com as esferas de poder. Em reportagem, a revista New Yorker descreve a universidade como “um motor de poder e ambição” em que os alunos consideram “o mundo”, ou seja, a própria sociedade, como algo distante de suas experiências pessoais e um lugar que inspira desconfiança.

Imagem: reprodução do Instagram

Embora argumentem que não apoiam políticos específicos, apenas ideias, as lideranças do Movimento Dunamis apoiaram a reeleição de Jair Bolsonaro à presidência em 2022. Em uma publicação sobre como votar naquelas eleições, Téo afirma que é preciso verificar se o candidato “se alinha com a cosmovisão bíblica”. Durante a campanha presidencial, o Movimento Dunamis organizou um podcast com a presença do então candidato Bolsonaro. Em seus perfis no Instagram, ainda estão expostos conteúdos que chamam o atual Presidente da República de “ladrão”, “bêbado” e apresentam diversos argumentos críticos à esquerda, em geral. 

Imagem: reprodução do Instagram (Teo Hayashi e Dunamis Movement)

Mobilização religiosa na política brasileira

Na semana em que, mais uma vez, a Ilha de Marajó foi alvo de desinformação política e religiosa, deu-se um outro acontecimento político e religioso de relevância nacional. O antropólogo e professor do departamento de estudos de mídia da Universidade da Virgínia (EUA) David Nemer publicou, no seu perfil no X, sobre a mobilização popular para a manifestação de 25 de fevereiro na Avenida Paulista, em São Paulo (SP), protagonizada pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e pelo casal Jair e Michelle Bolsonaro.

Nemer relata que, durante semanas, as convocações para a manifestação tinham pouco apelo emocional, indicativo de baixa adesão ao ato. “Bolsonaro não podia aumentar o tom pois nessa própria semana ele foi interrogado pela PF e o próprio está sob investigação – com um sério risco de ser preso muito em breve. Seus aliados políticos, como seus filhos e Nikolas Ferreira, fizeram convocações, mas também contidas”, comentou.

Segundo o professor, dois fatos foram cruciais para o engajamento do público na manifestação que contou com mais de 185 mil pessoas. O primeiro, teria sido a fala do presidente Lula sobre as agressões de Israel contra a Palestina, instrumentalizada pelas igrejas que propagam o sionismo cristão. O segundo, foi a mobilização da extrema direita no caso relativo à Ilha do Marajó, com “divulgação e compartilhamento de fake news sobre cancelamento de ações e projetos do governo federal”. Nos dois fatos, a presença de grupos religiosos exerce papel fundamental para a execução de um ato político.

Imagem: reprodução do YouTube (Michelle Bolsonaro durante ato na Av. Paulista)

O historiador e professor de literatura comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) João Cezar de Castro Rocha, em participação no podcast Pauta Pública, falou sobre a fusão de religião e política observada no Brasil contemporâneo: “O que nós vimos no dia 25 de fevereiro de 2024 não foi uma manifestação bolsonarista. (…) A manifestação foi menos bolsonarista do que um chamamento público. Pela primeira vez, a explicitação de um projeto: a teologia do domínio”.

No principal discurso daquele 25 de fevereiro na Avenida Paulista, Michelle Bolsonaro foi categórica: “Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”. 

Para combater “o mal”, a extrema direita utiliza o discurso religioso de identidade cristã e propaga informações falsas e pânico moral. Em uma constante mobilização de suas pautas conservadoras, do armamentismo ao papel da religião na política, garante seu espaço nas redes e nas ruas, mesmo que, para isso, precise veicular informações enganosas sobre abuso sexual infantil, como no caso Marajó.

ATUALIZAÇÃO: Silvio Almeida anuncia campanha e estratégia nacional contra exploração e abuso de crianças e adolescentes no Marajó

O Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, anunciou na manhã desta terça-feira (19) em Breves, no Pará, uma campanha nacional do governo federal para combate à exploração e ao abuso sexual contra crianças e adolescentes. A expectativa é de que a iniciativa pública seja lançada em maio deste ano, mês marcado pelo 18 de maio, data oficial de enfrentamento a essas violações de direitos humanos. De acordo com Almeida, a campanha será lançada junto a uma estratégia nacional ligada ao tema. 

“Temos de fazer política pública e sermos absolutamente intolerantes com quem comete violência contra crianças e adolescentes. Isso é inadmissível. Precisamos ter políticas de educação, cultura, cuidar das famílias, ter saúde e olhar para as crianças e que não têm pai nem mãe”, elencou o gestor ao subir o tom contra quem viola direitos fundamentais e promove discurso de ódio nas redes sociais. 

A declaração aconteceu durante lançamento da Escola de Conselhos do Pará, ação do MDHC em parceria com a Universidade Federal do Pará e o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente para formação de atores do Sistema de Garantias dos Direitos do público infantojuvenil, com investimento será de R$ 1 milhão.

ATUALIZAÇÃO: a revista Piauí produziu matéria neste 30 de junho, em que mantém vivo o assunto. O texto da revista destaca como essas informações falsas se espalharam rapidamente pelas redes sociais e foram amplificadas por políticos e influenciadores, prejudicando a imagem da Ilha do Marajó. A reportagem ressalta que esse tipo de desinformação pode ter consequências graves, como a estigmatização de comunidades inteiras. De acordo com o presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente da cidade de Melgaço, no Pará, o arquipélago de Marajó “tem sido vitimado em carregar essa carga, mas nós sabemos que essa é um uma situação que ocorre muito em outras regiões. Se você for ver a questão dos caminhoneiros nas estradas, é alarmante. Você vê meninas que são exploradas, que estão ali expostas, mas o Marajó virou holofote da situação. Eu não estou dizendo que nós não temos problema. Nós temos. Mas nós estamos cuidando deles e fazendo o possível para que isso possa ser resolvido”, conclui.

Referências:

YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=dYez-vJK6PY&t=231s&ab_channel=CortesdoIntelig%C3%AAncia%5BOFICIAL%5D Acesso em: 4 mar 2024

https://www.youtube.com/watch?v=b8cO82bvoE0&ab_channel=Ag%C3%AAnciaP%C3%BAblica Acesso em: 4 mar 2024

Zion Church https://zionchurch.org.br/geracao-5-2 Acesso em: 3 mar 2024

Coletivo Bereia 

https://coletivobereia.com.br/controversias-sobre-filme-som-da-liberdade-sao-transformadas-em-panico-moral-para-propagacao-de-desinformacao/ Acesso em: 1 mar 2024

https://coletivobereia.com.br/movimento-the-send-brasil-e-criticado-por-doutrinar-politicamente-jovens-evangelicos/  Acesso em: 5 mar 2024

https://coletivobereia.com.br/como-expressoes-sionistas-cristas-no-brasil-desinformam-sobre-o-que-ocorre-no-oriente-medio/ Acesso em: 1 mar 2024

TSE – Divulgacand

https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/71072/250000707279 Acesso em: 4 mar 2024

https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/71072/250000707279/integra/receitas Acesso em: 4 mar 2024

Seade http://produtos.seade.gov.br/produtos/eleicoes/candidatos/index.php?page=pol_det&cand=297818 Acesso em: 4 mar 2024

New Yorker https://www.newyorker.com/news/annals-of-education/can-liberty-university-be-saved Acesso em: 4 mar 2024

G1 https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2024/02/26/como-especialistas-da-usp-calcularam-que-havia-185-mil-pessoas-no-ato-de-bolsonaro-na-paulista.ghtml Acesso em: 1 mar 2024

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Foto de capa: reprodução do YouTube

Caso Marajó: religião, política e desinformação – parte 1

As redes digitais foram tomadas, na última semana de fevereiro passado, por discursos político-religiosos e desinformação sobre exploração sexual infantil na Ilha de Marajó (PA). Os debates foram deflagrados, depois da divulgação do extrato de um vídeo, em que a cantora gospel Aymeê Rocha faz referência à região, alcançar mais de quatro milhões de visualizações no YouTube.

Com a ajuda de influenciadores, políticos e grupos religiosos, as mídias sociais foram cenário de publicações falsas, enganosas e descontextualizadas. Bereia apurou o caso e o papel de grupos políticos e religiosos na manutenção do discurso desinformativo sobre o Marajó.

Reality show gospel: Aymeê Rocha e jurados religiosos

A canção “Evangelho de Fariseus”, composta pela cantora paraense Aymeê Rocha, foi interpretada por ela na fase semifinal da segunda temporada do reality show Dom, em 15 de fevereiro. Divulgado como o primeiro programad e música gospel nesta modalidade no Brasil, o “Dom Reality” é produzido pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (UniCesumar) e transmitido no canal de YouTube da instituição.

Em tom emotivo, a canção de Aymeê Rocha apresenta uma crítica a cristãos para quem “o dízimo importa mais do que os corações”, uma alusão ao comportamento de fiéis e à oposição entre egoísmo e altruísmo, ego e amor ao próximo, ganância e assistência humanitária. A certa altura da música, a compositora cita a região de Marajó – maior arquipélago flúvio-marítimo do planeta, situado no estado do Pará – ao cantar “Ah, enquanto isso, no Marajó, o João desapareceu esperando os ceifeiros da grande seara”. A frase serviu de gancho para que os jurados do reality falassem sobre problemas sociais que ocorrem no local.

O produtor musical, fundador e diretor da Criativum Assessoria e Marketing, diretor executivo e artístico do Dom Reality Paulo Alberto questionou Aymeê Rocha sobre a citação ao Marajó: “Em determinado momento da música, não sei se vocês se atentaram, você trouxe a palavra Marajó. Você está se referindo às ilhas de Marajó? Você fala: ‘enquanto isso lá nos Marajós, crianças’… Você fez uma referência a um local. Tem alguma história por trás disso? Porque isso despertou muito forte, eu acho que tem alguma experiência que você viu ou ouviu que marcou seu coração e você trouxe isso para essa música, eu estou errado?”.

Imagem: reprodução YouTube (Aymeê Rocha no reality gospel DOM)

A cantora responde à indagação com a afirmação de que na Ilha de Marajó “tem muito tráfico de órgãos” e crianças de cinco anos “saem numa canoa e se prostituem dentro do barco por R$5,00”. Depois de outro jurado, o produtor musical Alex Passos, apoiar a abordagem de temas semelhantes em músicas gospel, Aymeê diz que, muitas vezes, os cristãos “terceirizam para o governo o que seria de responsabilidade do próprio cristão”.

Em seu perfil no Instagram, Paulo Alberto publicou, em colaboração com o portal de notícias Perfil, um vídeo em que concede entrevista ao veículo e fala sobre sua atuação no destaque ao tema da Ilha de Marajó durante a apresentação de Rocha. Na mesma data, o produtor musical publicou outro vídeo, em colaboração com a revista Caras, em que afirma que “a provocação do tema [sobre o Marajó] partiu do Dom Reality”. Paulo Alberto é apresentado pela Caras como um dos idealizadores do reality gospel e, segundo regulamento da competição, o(a) vencedor(a) garante, entre outros prêmios, um contrato de gestão de carreira atrelado à Criativum Assessoria e Marketing.

Influenciadores políticos e religiosos impulsionaram o tema

Inicialmente, a crítica aos cristãos presente na música de Aymeê Rocha foi o que ganhou espaço entre os comentários nas mídias sociais. Porém,após a abordagem destacada do produtor musical para o tema na apresentação da cantora, os comentários se voltaram para a Ilha de Marajó. Influenciadores digitais, como Carlinhos Maia, Juliette, Gessika Kayane – conhecida como GKAY – e Rico Melquiades compartilharam conteúdo sobre exploração sexual na ilha. No Instagram, alguns desses perfis contam com mais de 30 milhões de seguidores.

Em seu perfil no X, o escritor Ale Santos acusou a extrema direita de articular o compartilhamento de conteúdo ligado ao tema da ilha paraense. “A extrema-direita descobriu o poder das agências de influenciadores e agora as mobilizações de pautas sensíveis misturadas com fake news ficou mais fácil”, afirmou.

Em uma sequência de publicações, Santos expôs a ligação da viralização do vídeo de Aymeê Rocha com ações políticas da extrema direita e voltou a citar uma ação orquestrada. “Será que todos ‘organicamente’ estavam espalhando a música da cantora de um programa que não assistem, de uma bolha que não faz parte dos assuntos que eles lidam todo dia nas redes sociais, focados no próprio umbigo e de repente mobilizados. Eu duvido de viralização orgânica hoje em dia”, publicou.

Imagem: reprodução do X (perfil Ale Santos)

Não tardou para que antigas declarações da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves sobre o assunto fossem resgatadas nos comentários das publicações nas redes digitais. Políticos religiosos, com destaque para os deputados federais Nikolas Ferreira (PL) e Carlos Jordy (PL), logo endossaram o coro com desinformação acerca da exploração sexual de crianças no Marajó. 

Nikolas Ferreira reproduziu conhecidas falsas alegações de Damares Alves, enquanto Jordy divulgou vídeo de outra localidade associando as imagens ao Marajó. A ex-ministra e atual senadora Damares Alves (Republicanos-DF) publicou o vídeo da apresentação da cantora Aymeê Rocha em seu perfil do Instagram, com orientação para que os seguidores prestassem atenção em comentários dos jurados.

Segundo reportagem da Agência Pública, ao menos seis políticos investiram até R$ 100 para alavancar esses conteúdos, a partir de 24 de fevereiro. Conforme apurado, políticos de extrema direita patrocinaram postagens repercutindo denúncias falsas sobre um suposto esquema de exploração infantil no arquipélago. 

Os políticos identificados pela Agência Pública foram os deputados federais Luciano Galego (PL-MA,Maurício Neves (PP-SP), o deputado estadual do Pará e ex-superintendente regional do Incra Coronel Neil (PL), a vereadora de Navegantes (SC) Lú Bittencourt (PL), os vereadores de São Paulo Reinaldo Digilio (PRB) e Lucas Ferreira (sem partido). Juntas, as publicações apareceram 80 mil vezes para usuários do Facebook e Instagram.

Imagem: reprodução da reportagem no site Agência Pública

A antropóloga e coordenadora de Religião e Política no Instituto de Estudos da Religião (Iser), Lívia Reis destaca que a viralização dos conteúdos foi impulsionada pela atuação de influenciadores e que as postagens seguiram um padrão de conteúdo. “Houve uma mobilização de inúmeros influenciadores que produzem conteúdo sobre religião ou de influenciadores que são religiosos – evangélicos e católicos. Embora perfis de igreja tenham também falado sobre o assunto, o compartilhamento via influenciadores foi o que impulsionou a campanha e a circulação do conteúdo”.

Quanto à atuação de políticos como Nikolas Ferreira (PL-MG), Carlos Jordy (PL-RJ) e Damares Alves (Republicanos-DF), Reis destaca que, com essa campanha, políticos e grupos religiosos “visam consolidar a proteção da infância e o combate do abuso sexual infantil, feita de uma maneira mentirosa e assistencialista, como uma pauta dominada pela direita”. 

“Um dos argumentos, por exemplo, é que a sexualização de crianças é promovida pela esquerda, quando ela defende debates sobre gênero ou valorizam culturas periféricas, como o funk. Ignoram, por outro lado, que o maior número de abusos sexuais sofridos por crianças são feitos por familiares próximos dentro das próprias casas da vítima. Por isso trata-se de um argumento demagógico, que ganha adesão fácil da população, que passa a se ver próxima das pautas defendidas por eles”, afirma a pesquisadora.

Imagem: reprodução do Instagram

A Organização Não Governamental (ONG) Observatório do Marajó, que atua em prol da consolidação de instrumentos de ação política na região, divulgou, em 22 de fevereiro, nota pública intitulada “não acredite em tudo o que vês na internet”. Em trecho, a nota destaca que “A propaganda que associa o Marajó à exploração e o abuso sexual não é verdadeira: a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara”.

Em entrevista ao Bereia, o gestor de conteúdo do Observatório do Marajó e fundador do canal Marajoando Cultural Luis Barbosa falou sobre a atuação de grupos religiosos na repercussão do caso. “Eles impulsionaram bastante essa narrativa né, e me parece que é uma narrativa retomada da ex-ministra Damares Alves, que recorrentemente utiliza o Marajó para o uso político mesmo. Isso é muito estranho e acaba sendo muito ruim, porque toda vez a gente tem que reexplicar os problemas novamente”.

Circulação de informações falsas e enganosas

Em meio à grande repercussão do tema, impulsionada por influenciadores e políticos religiosos, houve circulação de diversas publicações mentirosas. Um vídeo que mostra um homem adulto beijando uma criança em um barco circulou nas redes digitais como se o caso tivesse acontecido na Ilha de Marajó. Na verdade, trata-se de um vídeo gravado em Mato Grosso do Sul e que circula como desinformação desde, ao menos, 2021, quando o conteúdo foi verificado pela Agência Lupa. Filmado pela mãe da criança, o vídeo mostra Rosinaldo de Andrade Messias assediando sua enteada. Pouco tempo depois de prestar depoimento à polícia, Messias foi encontrado morto. O caso aconteceu no município de Itaquiraí (MS) e foi noticiado pela imprensa à época.

Outro vídeo falsamente associado à Ilha de Marajó retrata um carro que transportava diversas crianças sendo abordado pela polícia. Nas publicações que agora circularam pelas plataformas digitais, diz-se que a polícia estaria resgatando vítimas de exploração sexual e tráfico humano. Conforme apontado pelo Estadão Verifica, trata-se de uma gravação feita no Uzbequistão, país da Ásia Central. O vídeo está disponível no YouTube com o título em russo: “No Uzbequistão, uma mulher transportou 25 crianças num carro”. O fato foi reportado em setembro de 2023 pelo jornal O Globo e consiste no caso de uma educadora que transportava, irregularmente, alunos até suas casas. À época, as autoridades do país asiático deram publicidade ao caso.

Imagem: reprodução YouTube (uniforme do policial e placa do carro são indícios de que o caso não foi no Brasil)

Enquanto a internet era tomada por incontáveis publicações falsas ou sem contexto sobre a Ilha de Marajó, uma publicação enganosa sobre programas federais direcionados ao arquipélago viralizou, com a afirmação de que o presidente da República Lula pôs fim ao programa Abrace o Marajó, implementado pelo governo Jair Bolsonaro. As publicações omitem o fato de que, em maio de 2023, o governo federal lançou o programa Cidadania Marajó, destinado ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e a garantir a cidadania e os direitos sociais na região. A revogação do programa anterior, alvo de denúncias de irregularidades, ocorreu quatro meses depois.

Nas plataformas digitais, diversos vídeos trazem imagens genéricas de populações ribeirinhas ou de crianças em situações de vulnerabilidade acompanhadas de legendas alusivas à exploração infantil e à Ilha do Marajó. Em muitos casos, as publicações valem-se de hashtags alusivas à recente repercussão e associam-se, também, à música gospel da cantora Aymeê Rocha. As postagens têm, em comum, o apelo ao sentimento de injustiça e a ausência de informações verificáveis, elementos frequentes em conteúdos desinformativos.

Imagem: reprodução do TikTok

Histórico de desinformação sobre a Ilha de Marajó

Os casos de desinformação relacionados à Ilha de Marajó não são uma novidade, tampouco a mobilização desse discurso por políticos e religiosos. Durante o lançamento do programa Abrace o Marajó, em 2019, a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves disse ter recebido relatos de que meninas marajoaras eram sexualmente abusadas por não vestirem calcinhas. “Nós temos que levar uma fábrica de calcinhas para o Marajó, gerar emprego lá e a calcinha sair baratinho para as meninas lá. Então estamos buscando, se alguém tiver aí uma fábrica de calcinhas e quiser colaborar com a gente, venha”, disse a ministra, que é pastora evangélica e advogada.

O Ministério Público do Pará (MPPA), por meio do Procurador-Geral de Justiça Gilberto Valente Martins, emitiu nota de repúdio contra as falas da ministra. Em um dos trechos, a nota diz que “a infeliz manifestação reforça a ‘cultura do estupro’, ainda observada em nossa sociedade, que tende a culpabilizar a vítima pela violência sexual sofrida, neste caso, sustentando a ausência de vestuário íntimo como justificativa à prática dos atos ofensivos pelos agressores”.

Em setembro de 2023, a Controladoria-Geral da União (CGU) apontou irregularidades no programa Abrace o Marajó, criado e liderado por Damares Alves. Segundo relatório da CGU, diversas ações do programa não foram concluídas nos prazos previstos ou sequer foram implementadas, o que comprometeu o acesso da população marajoara a seus direitos. O relatório afirma que, se confirmados, o prejuízo aos cofres públicos pode ultrapassar R$ 2,5 milhões.

Imagem: reprodução do Instagram

Em outro episódio, em 2022, durante culto na Assembleia de Deus de Goiânia, Damares Alves disse possuir imagens de crianças brasileiras, vítimas de tráfico, com os dentes arrancados. “Eu vou contar uma coisa para vocês que agora eu posso falar. Nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, de quatro anos, três anos, que, quando cruzam as fronteiras sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral”. Alves continuou e disse ter descoberto que “essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”. 

A imagem narrada pela então candidata ao Senado Federal circula desde 2010 em fóruns online que divulgam teorias da conspiração e são frequentados pela extrema direita, como mostrou O Globo. A fala se deu no contexto da campanha presidencial e a esposa do candidato à reeleição, Michelle Bolsonaro, estava presente. No mesmo evento, Damares Alves chamou a busca pela reeleição de Jair Bolsonaro de “guerra espiritual”.

Desta vez, além de o MPPA ter dito que não havia provas do que a ex-ministra dizia, o Ministério Público Federal (MPF) também entrou em cena e negou as alegações dela. Conforme noticiado pela assessoria de imprensa do Ministério Público Federal, “Em 30 anos, nenhuma denúncia ao MPF sobre tráfico de crianças no Marajó mencionou torturas citadas por Damares”. 

Posteriormente, o MPF ajuizou uma ação civil pública para que a União e a ex-ministra Damares Alves indenizem a população do arquipélago de Marajó no valor de R$ 5 milhões. No entendimento dos procuradores que assinaram a ação, houve “utilização sensacionalista da vulnerabilidade social daquela população, associada à divulgação de fatos falsos”, o que gerou danos sociais e morais coletivos, ainda agravados pela rápida transmissão da mensagem nos meios de comunicação.

No caso recente, impulsionado pela música gospel da cantora Aymeê, o Ministério Público do Pará também emitiu nota com o objetivo de esclarecer casos de abuso e exploração sexual no estado. O texto afirma que “as notícias de crimes recebidas nas Promotorias de Justiça são de pronto investigadas com todos os encaminhamentos devidos providenciados junto à rede de proteção” e que “no bojo das notícias de fato em trâmite nas Promotorias de Justiça, não há qualquer notícia de crimes relacionados a tráfico de órgãos”.

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O caso Marajó não se mostrou apenas uma viralização de conteúdo a partir de uma música em um reality show. Revelou-se, também, um emaranhado de articulações políticas e religiosas ancoradas em desinformação para convencer apoiadores. Confira a parte 2 sobre o caso Marajó – Articulações políticas e religiosas da desinformação.

Referências:

Agência Lupa

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2021/12/13/verificamos-flagrado-crianca Acesso em: 28 fev 2024

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2022/10/21/bolsonaristas-recem-eleitos-estrategia Acesso em: 28 fev 2024

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/02/23/lula-lancou-programa-contra-abuso-infantil-em-marajo-pa-antes-de-revogar-projeto-de-damares Acesso em: 28 fev 2024

https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/02/28/posts-fakes-e-sem-provas-sobre-marajo-voltam-a-ganhar-forca-nas-redes Acesso em: 28 fev 2024

Agência Pública

https://apublica.org/2019/09/investigamos-a-violencia-sexual-no-marajo-e-nao-e-nada-do-que-a-ministra-damares-diz/?utm_source=twitter&utm_medium=post&utm_campaign=marajo Acesso em: 29 fev 2024

https://apublica.org/2024/02/politicos-bolsonaristas-pagaram-para-impulsionar-denuncias-falsas-sobre-marajo/ Acesso em: 29 fev 2024

Aos Fatos

https://www.aosfatos.org/bipe/musica-aymee-rocha-reality-gospel-damares-marajo/ Acesso em: 29 fev 2024

https://www.aosfatos.org/bipe/pablo-marcal-abuso-infantil-instagram/ Acesso em: 29 fev 2024

BBC https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46448437 Acesso em: 1 mar 2024

Carta Capital https://www.cartacapital.com.br/politica/infancia-protegida/ Acesso em: 1 mar 2024

Cinform Online https://cinformonline.com.br/sergipano-paulo-alberto-comemora-carreira-ascendente-na-musica-gospel/ Acesso em: 28 fev 2024

Dom Gospel

https://domgospel.com.br/ Acesso em: 27 fev 2024

https://domgospel.com.br/regulamento.pdf Acesso em: 29 fev 2024

Estadão https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/video-carro-criancas-trafico-sexual-ilha-marajo-damares-alves-desinformacao/ Acesso em: 1 mar 2024

G1

https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2016/05/mpf-processa-ong-apos-video-sobre-suposto-infanticidio-indigena-em-ro.html Acesso em: 1 mar 2024

https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2021/11/24/homem-e-assassinato-apos-ser-filmado-beijando-crianca-em-barco-em-ms.ghtml Acesso em: 1 mar 2024

https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2023/05/06/apos-missao-no-marajo-ministerio-dos-direitos-humanos-e-da-cidadania-planeja-acoes-para-combater-abuso-e-exploracao-sexual-contra-criancas-e-adolescentes.ghtml Acesso em: 29 fev 2024

Isto É https://istoe.com.br/angelica-juliette-rafa-kalimann-e-outros-famosos-pedem-providencias-contra-abuso-infantil-na-ilha-de-marajo/ Acesso em 1: mar 2024

Ministério Público do Pará

https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/em-30-anos-nenhuma-denuncia-ao-mpf-sobre-trafico-de-criancas-no-marajo-mencionou-torturas-citadas-por-damares Acesso em: 29 fev 2024

https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-pede-que-damares-alves-e-uniao-indenizem-populacao-do-marajo-pa-em-r-5-mi-e-se-retratem-por-divulgacao-de-informacoes-falsas Acesso em: 29 fev 2024

https://www2.mppa.mp.br/data/files/21/65/A9/9D/736DD8102F73B3D8180808FF/Nota%20MPPA%20Marajo.pdf Acesso em: 29 fev 2024

https://www2.mppa.mp.br/noticias/nota-publica-repudia-posicao-de-ministra-sobre-abuso-sexual-de-meninas.htm Acesso em: 28 fev 2024

https://www2.mppa.mp.br/noticias/promotores-de-justica-do-marajo-emitem-nota-sobre-casos-de-abuso-sexual-no-arquipelago.htm Acesso em: 29 fev 2024

O Globo

https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/noticia/2024/02/23/bolsonaristas-usam-video-falso-para-denunciar-exploracao-sexual-infantil-na-ilha-do-marajo.ghtml Acesso em: 28 fev 2024

https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/noticia/2024/02/23/guerra-cultural-sobre-pedofilia-na-ilha-de-marajo-envolve-do-planalto-a-nikolas-ferreira-e-artistas.ghtml Acesso em: 28 fev 2024

https://oglobo.globo.com/mundo/epoca/noticia/2023/09/29/video-professora-e-presa-apos-transportar-25-criancas-em-carro.ghtml Acesso em: 1 mar 2024

Paulo Alberto – Criativum Assessoria e Marketing https://pauloalberto.com/ Acesso em: 29 fev 2024

Revista Veja https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/o-que-ha-por-tras-da-aberracao-de-damares/ Acesso em: 29 fev 2024

Secretaria de Estado de Turismo – Governo no Pará https://www.setur.pa.gov.br/polo-marajo#:~:text=O%20Polo%20Maraj%C3%B3%20%C3%A9%20constitu%C3%ADdo,da%20Boa%20Vista%20e%20Soure. Acesso em: 29 fev 2024

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YouTube

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https://www.youtube.com/watch?v=qksMX6DUMeE&ab_channel=%D0%98%D0%BD%D1%82%D0%B5%D1%80%D0%B5%D1%81%D0%BD%D0%BE%D0%B5%D0%BE%D0%B1%D0%BE%D0%B2%D1%81%D0%B5%D0%BC Acesso em: 1 mar 2024

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Foto de capa: reprodução YouTube (Aymeê Rocha no reality gospel DOM)