Desinformação com teor religioso baseou ataque contra deputada ligada ao MST  no Estado do Rio

Enquanto cumpria agenda de prestação de contas no município de Nova Friburgo, no distrito de Lumiar,em 12 de agosto passado, a deputada estadual Marina do MST (PT-RJ) foi atacada por manifestantes de extrema-direita.

Bereia teve acesso a áudios que indicam a organização do ataque a partir da propagação de desinformação, com uso de discurso religioso, a respeito do propósito da ida de Marina do MST ao distrito de Nova Friburgo. 

Entre os que propagaram áudios para convocar  a população para uma manifestação contra a deputada está um homem investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por incitar bolsonaristas a pegar em armas.

Ataque à deputada estadual Marina do MST (PT-RJ) em Nova Friburgo

Lucia Marina dos Santos, conhecida como Marina do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), é deputada estadual no Rio de Janeiro e cumpre o primeiro mandato. A parlamentar foi eleita defendendo, principalmente, as bandeiras da luta por soberania alimentar, agroecologia e o combate aos agrotóxicos.

Em visita à Nova Friburgo, Região Serrana fluminense, a deputada realizou uma reunião de prestação de contas do mandato, denominada Plenária Territorial, no centro da cidade, na manhã de 12 de agosto. À tarde, a reunião estava marcada para acontecer no distrito de Lumiar. 

Marina do MST tem a prática de divulgar as plenárias que realiza, desde 24 de maio, e também publica fotos dos eventos nas cidades fluminenses. 

Imagem: reprodução do Instagram

Um grupo de manifestantes, identificados como seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro, compareceu ao ato de prestação de contas da deputada Marina do MST, na praça Levi Aires Brust, em Lumiar, com o intuito de protestar contra a presença do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na localidade.

Imagens gravadas e publicadas nas redes digitais mostram uma multidão em torno de Marina e sua equipe. Os manifestantes, aos gritos de “fora”, cercaram a deputada, chegaram a empurrá-la e é possível ver pessoas arremessando garrafas em direção à deputada. Um vídeo mostra a chegada de viaturas policiais para conter as agressões.

Imagem: reprodução 

Mobilização do ataque via redes digitais com referência bíblica

Áudios compartilhados em grupos de Whatsapp mostram que a decisão de protestar surgiu a partir da divulgação de informações de que o evento se tratava de uma ocupação do MST e não de uma ação do mandato da deputada. Os autores dos áudios identificam-se como pessoas ligadas a organizações como Associação dos Agricultores Familiares e Ação Rural dos distritos de Lumiar, São Pedro da Serra e Macaé de Cima.

Em um dos áudios obtidos por Bereia, o autor se identifica como Jailton Barroso Eller e convoca outras pessoas para um “movimento pacífico, mas (…) de ‘passo firme’”. “Não queremos eles [MST] aqui. Mas, para isso, meus irmãos, não adianta só as lideranças, não adianta só eu, da Ação Rural, ir. (…) O povo tem que estar junto. Não podemos aceitar e [temos que] mostrar que não queremos eles aqui. Convoco a todos do 5º e 7º distrito para estarmos em Lumiar a partir das 12h, para já esperar esse povo e mostrar que a gente não quer eles (sic)  lá”, diz Eller.

Ao final da mensagem, o agricultor usa referências da Bíblia para incitar uma espécie de combate: “Não tem que ter plenária territorial aqui dentro do 7º distrito. Para quê esse inferno na nossa vida agora? Então vamos lutar. Nós somos pessoas de bem, pessoas que temem a Deus. (…) Para encerrar: Davi era um homem pacífico, um pastor de ovelhas. Estava no campo, mas foi ungido por Deus e derrotou Golias com cinco pedras (…). Estamos aqui há mais de 200 anos e vamos continuar, se nós nos unirmos cada vez mais. Não devemos aceitar esse movimento aqui dentro”, afirmou.

Jailton Barroso Eller, que fornece seu nome completo no áudio, já foi investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, em 2022, por incitar extremistas apoiadores da direita política  a pegar em armas. Segundo informações do blog Ancelmo Gois, em O Globo, um mandado de busca e apreensão foi expedido contra Eller, após o agricultor veicular, nas mídias sociais, áudios em que exalta o ataque do ex-deputado Roberto Jefferson contra policiais federais, conclamando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro a pegar em armas em caso de derrota do candidato a reeleição  nas eleições presidenciais.

Vereador de Nova Friburgo sugeriu que haveria invasão do MST em Lumiar

Além dos áudios que convocaram manifestação contra a presença da deputada estadual no distrito de Lumiar, um vereador de Nova Friburgo usou o plenário da Câmara Municipal para sugerir que haveria uma invasão por parte do MST. Em 10 de agosto, dois dias antes do ataque sofrido por Marina do MST e sua equipe, o vereador José Carlos Schuabb (PRTB-RJ) discursou, na Câmara dos Vereadores de Nova Friburgo, em tom crítico à ida da deputada.

“Sábado marcaram uma reunião lá [em Lumiar]. Nada mais, nada menos do que Marina do MST. Será que Lumiar, o 5º e o 7º distrito, tem tantas terras improdutivas assim (…) ou será que vão montar um acampamento na praça lá de Lumiar, que já vai começar as invasões?. Será possível isso?”, discursou o vereador.

Em 11 de agosto, a deputada estadual declarou à imprensa ter sido ameaçada por empresários da região, e por isso, não só acionou a Polícia Militar e Civil do município, como comunicou ao Ministério Público sobre as ameaças. No mesmo dia, em seu perfil na rede digital X (antigo Twitter), Marina do MST esclareceu o motivo de sua ida à cidade: “A gente não vai a Friburgo ocupar latifúndio de ninguém, inclusive porque a cidade é referência no que a gente defende: o pequeno produtor. 96% das propriedades são de pequenos produtores que colocam comida de verdade na mesa dos brasileiros. Friburgo dá aula para o Brasil”, publicou.

Imagem: reprodução do Twitter

Desdobramentos após o ataque

No mesmo dia do ataque, o Movimento Fé e Política da Diocese Católica de Nova Friburgo divulgou nota em solidariedade à deputada em que afirmava “Lumiar está inserida na Diocese de Nova Friburgo, o que nos exige cobrar posição da Igreja Católica contra esses fatos. Porque a Igreja de Nova Friburgo precisa ser um fator de formação/evangelização para a paz, a Justiça, e a sabedoria, ao invés do ódio que nasce da ignorância”.

Uma nota de solidariedade também foi publicada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em 14 de agosto, que dizia “O impedimento da realização do debate público de ideias e propostas por parte de representantes legitimamente eleitos pelo povo, mediante o uso de métodos de violência física e moral, constitui-se em ameaça à democracia e ao Estado de Direito, razão pela qual não podem ser tolerados em nossa sociedade”.

O presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), deputado estadual Rodrigo Bacellar (PL), emitiu, em 15 de agosto, uma nota oficial em solidariedade à deputada Marina do MST e cobrou punição aos envolvidos. No mesmo dia, a Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino no Estado-RJ (Feteerj) e o Sindicato dos Professores emitiram uma nota de repúdio ao ataque contra Marina do MST.

O Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também se posicionaram contra as agressões sofridas pela deputada em Lumiar. A Agência de Notícias das Favelas divulgou na sexta-feira, 18 de agosto, que dois atos públicos estavam programados para acontecer no Rio de Janeiro e em Lumiar,  em 18 e 25 de agosto, respectivamente.

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Bereia considera falso o conteúdo que levou ao ataque sofrido pela deputada estadual Marina do MST (PT-RJ). Os áudios utilizados para organizar o protesto contra a deputada revelam que houve desinformação sobre o motivo da visita da parlamentar a Nova Friburgo (RJ). O conteúdo dos áudios carecem de substância factual, caracterizando-se como boatos ou conteúdos fabricados para parecer informação.

O conteúdo veiculado nos áudios levou uma parcela da população a crer que a visita se tratava de um ato do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), possivelmente uma ocupação não apenas de propriedades rurais, mas também de imóveis. Nenhuma das informações disponíveis, porém, indicavam que isso aconteceria. Houve, ainda, uso de discurso religioso com o objetivo de mobilizar a população local contra a agenda oficial de uma deputada eleita.

Além dos áudios, o pronunciamento de um vereador no plenário da Câmara Municipal de Nova Friburgo, na antevéspera da ida da deputada à cidade, foi compartilhado juntamente com os áudios nos grupos de Whatsapp e contribuiu para a crença de que haveria “invasões”, o que, igualmente, não se sustenta à luz das informações disponíveis. Bereia alerta alerta para a importância de uma leitura cuidadosa dos fatos e informações relacionadas ao MST e suas lideranças. Extremistas usam justamente as lacunas de informação e de conhecimento sobre pessoas, grupos e fatos para acionar a intolerância e incitar violência.

Referências da checagem:

Extra.

https://extra.globo.com/blogs/extra-extra/post/2023/08/marina-do-mst-confirma-visita-a-nova-friburgo-depois-de-receber-ameacas.ghtml Acesso em: 17 ago 2023

https://extra.globo.com/blogs/extra-extra/post/2023/08/presidente-da-alerj-cobra-punicao-apos-marina-do-mst-ser-atacada-em-friburgo.ghtml Acesso em: 18 ago 2023

Twitter.

https://twitter.com/marinadomst/status/1690179369770037248 Acesso em: 17 ago 2023

https://twitter.com/marinadomst/status/1690459408319287296 Acesso em: 17 ago 2023

https://twitter.com/marinadomst/status/1690529567172145152 Acesso em: 17 ago 2023

G1.

https://g1.globo.com/rj/regiao-serrana/noticia/2023/08/13/deputada-do-mst-e-atacada-em-encontro-de-apoio-a-pequenos-produtores-no-norte-do-rj.ghtml Acesso em: 17 ago 2023

Marina do MST.

https://marinadomst.com.br/ Acesso em: 17 ago 2023

MST.

https://mst.org.br/2023/08/12/nota-em-solidariedade-a-deputada-marina-do-mst/ Acesso em: 17 ago 2023

O Globo.

https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2023/08/deputada-marina-do-mst-denuncia-ataques-de-bolsonaristas-em-visita-a-nova-friburgo-veja-video.ghtml Acesso em: 17 ago 2023

https://oglobo.globo.com/blogs/ancelmo-gois/post/2022/10/investigado-por-incitar-bolsonaristas-a-pegar-em-armas-e-alvo-de-operacao-em-friburgo.ghtml Acesso em: 18 ago 2023

Portal Multiplix.
https://www.portalmultiplix.com/noticias/cotidiano/presenca-de-deputada-petista-gera-confusao-em-distrito-de-nova-friburgo-no-fim-de-semana Acesso em: 17 ago 2023

Nova Friburgo em Foco. https://novafriburgoemfoco.com.br/friburgo-confusao-marca-presenca-de-deputada-petista-em-lumiar/ Acesso em: 17 ago 2023

YouTube.

https://www.youtube.com/watch?v=J01reEET_Bk&ab_channel=TVCidadeNovaFriburgo Acesso em: 17 ago 2023

https://youtu.be/b0VrykVfF20?t=7549 Acesso em: 17 ago 2023

Instagram.

https://www.instagram.com/reel/Cv2tOengvkV/?id=3167918294942546197_455134703 Acesso em: 17 ago 2023

Alerj.

https://www.alerj.rj.gov.br/Deputados/PerfilDeputado/491?Legislatura=20 Acesso em: 18 ago 2023

Infoamazonia.
https://infoamazonia.org/2022/11/09/bolsonaro-extrema-direita-youtube-mst-terrorista/ Acesso em: 18 ago 2023

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Foto de capa: reprodução Portal Multiplix em fotos de mídias sociais

Mídias viralizam notícia de que capela em cidade de São Paulo foi depredada por terraplanistas

Mídias noticiosas informaram no final deste abril de 2023, que uma igreja foi depredada por intolerantes religiosos e adeptos da teoria “terraplanista”. A notícia rapidamente ocupou grupos de mensagens e mídias sociais religiosas. 

Imagem: reprodução do site Metrópoles

Bereia checou as informações e, de fato, a Capela de Nossa Senhora da Piedade, conhecida como ‘Igrejinha’, localizada na zona rural de Araras (SP), foi alvo de um ato de vandalismo no sábado, 29 de abril. 

Segundo os relatos, um maçarico foi utilizado para destruir  a porta e invadir o local, que fica à Avenida Fábio da Silva Prado, no bairro Elihu Root. Na capela, que pertence ao território da Paróquia São Benedito, da Igreja Católica Romana, imagens de santos foram destruídas e jogadas ao chão, paredes pichadas com dizeres que expressam intolerância religiosa e teoria da conspiração. conhecida como “terraplanismo”.

Imagem: reprodução do G1

“Estas estátuas não tiveram poder algum para me impedir de entrar aqui, de movê-las de lugar e de escrever nestas paredes”. 

“Teriam elas algum poder para ouvir orações ou livrar do mal aqueles que clamam a elas?”

Imagem: reprodução do G1

“Detalhe importante, a Bíblia também diz que a Terra é plana Marcos 13:25”

“A Terra é um círculo plano com uma cúpula acima”. 

Nota da Diocese

A Diocese Católica de Limeira publicou nota em repúdio ao que classifica como ato de intolerância religiosa sofrido: 

A  Diocese de Limeira repudia veementemente a manifestação de intolerância religiosa cometida, no último fim de semana, contra a capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade, localizada na zona rural de Araras e que pertence ao território da paróquia São Benedito.

A capela foi invadida e teve imagens retiradas de seus nichos  e pichações nas paredes com dizeres que demonstram o desrespeito religioso.

Em tempos de um comportamento social agressivo, onde destaca-se a violência, o preconceito e a intolerância ao próximo, devemos ressaltar a Carta Magna de 1988, principalmente no tocante da prática da tolerância religiosa e da cultura de paz, respeitando a dignidade e a liberdade de consciência da religião.

Que a bandeira da paz, do respeito às manifestações religiosas e do amor ao próximo seja a bandeira a ser empunhada por todos nós.

Intolerância religiosa no Brasil

Mesmo com as mensagens de ódio religioso e referentes a teorias da conspiração, não é possível afirmar que os praticantes do ato de vandalismo são mesmo seguidores destas teorias ou que este tenha sido um ato pensado para justificar uma prática de cristofobia. 

De acordo com a cientista social Brenda Carranza, o termo cristofobia “se intensificou e consolidou uma narrativa de perseguição e ameaça, centrada no ataque aos cristãos (católicos e evangélicos), vilipendiados por sua fé, moralidade e crenças religiosas, (…) entretanto, uma perseguição religiosa pressupõe ameaça a direitos de expressão e culto religioso (liberdade religiosa) e de ataque físico e simbólico a templos, igrejas, pessoas e até morte. Porém, no Brasil é inexistente a ameaça e/ou ataque à maioria  histórica, demográfica e simbolicamente cristã, portanto, a narrativa parlamentar cristã é construída a partir de um sentimento de perseguição fictício” 

Para a pesquisadora do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER), antropóloga Lívia Reis, Bolsonaro deu legitimidade estatal à falsa trama de que cristãos brasileiros são acossados pelo que creem. “Para comprovar esse ponto, fez-se necessário que o governo estimulasse o uso de canais de denúncia entre pessoas cristãs, de modo que as estatísticas corroborassem essa narrativa”, diz a pesquisadora.

A alta de cristãos que acionam o Disque 100 também está, segundo Reis, “intimamente ligada à forma negacionista como o governo federal [no poder de 2019 a 2022] encarou a pandemia de covid-19, desencorajando medidas sanitárias de prevenção à doença, entre elas o fechamento das igrejas”. Determinações para a suspensão de cultos e missas foram interpretadas por algumas lideranças como um ataque à liberdade religiosa. 

A pesquisa resultante da parceria ISER / Data_Labe  aponta que após anos de protagonismo dos adeptos de religiões de matriz africana entre as vítimas de intolerância religiosa no Brasil, dados do Disque 100 indicam que cristãos passaram a ser maioria entre os denunciantes no canal, a partir do segundo semestre de 2020, quando o instrumento esteve sob o comando da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves. Diante desse quadro, ISER e Data_Labe apresentaram dados e opiniões sobre como a ascensão de fundamentalistas religiosos na política nacional durante o governo de Jair Bolsonaro pode ter contribuído para a mudança nos dados existentes até então.

A média de registros de denúncia de intolerância religiosa entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2022 indica 46% de fiéis do segmento cristão católico, 30% de cristãos evangélicos, 12% que apontaram não ter religião, 6% que indicaram a opção “outras”, 3% de espíritas, e 2% de afrorreligiosos. 

O cenário é bem diferente do período compreendido entre 2011 e o primeiro semestre de 2018, como consta na reportagem Terreiros na Mira, lançada, em 2019, pela associação jornalística Gênero e Número e pelo Data_Labe. Naquela análise, cerca de 60% das denúncias sobre intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100 eram referentes a seguidores de religiões de matriz africana. 

Cristãos também eram minoria no último levantamento nacional e oficial produzido pelo governo federal. O Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015), realizado pela Assessoria de Direitos Humanos e Diversidade Religiosa – ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos – foi lançado em 2017 e apontava que 33% das vítimas não tinham sua religião identificada. Em segundo lugar, com 27%, estavam cidadãos que professam as religiões de matriz africana, seguidos por evangélicos com 16% e católicos com 8%. 

Terraplanismo 

Terraplanismo, segundo o Dicionário dos Negacionismos (2022), é um termo anticientífico e negacionista utilizado para defender a noção de que a Terra é plana. É uma teoria conspiratória baseada em algumas passagens da Bíblia, em dados sem comprovação científica e na imaginação de promotores da noção, cultivada por adeptos.

Imagem: reprodução do Twitter

O jornalista científico Javier Salas explica que negar o formato esférico da Terra é o caso mais extremo de um fenômeno que define a nossa época: desconfiar dos dados, enaltecer a subjetividade, rejeitar o que nos contradiz e acreditar em falsidades: 

Apenas 66% dos jovens de 18 a 24 anos nos Estados Unidos têm plena certeza de que vivemos em um planeta esférico (76% na faixa de 25 a 34 anos). Trata-se de um fenômeno global, também presente no Brasil, que costuma ser motivo de piada. No entanto, quando observamos os mecanismos psicológicos, sociais e culturais que levam as pessoas a se convencerem dessa gigantesca conspiração, descobrimos uma metáfora perfeita que resume os problemas mais representativos de nossa época. Embora pareça medieval, é muito atual.

Uma pesquisa do Instituto Datafolha, de 2019, mostrou que uma parcela de 7% dos brasileiros acredita que o formato da Terra é plano – cerca de 11 milhões de pessoas.. O levantamento foi realizado com 2.086 entrevistados maiores de 16 anos, em 103 cidades do país. Entre os entrevistados,  90% declararam crer que a Terra seja redonda e o restante disse não saber sua forma. 

Segundo a pesquisa, a crença de que a Terra é plana corresponde à baixa escolaridade: 10% das pessoas que deixaram a escola após o ensino fundamental defendem o chamado terraplanismo. O número diminui entre os que estudaram até concluir o ensino médio (6%) ou superior (3%).

Na pesquisa Datafolha, de forma similar ao que ocorre nos Estados Unidos, o recorte por idade também revelou uma propensão ligeiramente maior à crença entre os jovens no Brasil. Abaixo de 25 anos, 7% creem na Terra plana, e o número cai para 4% na faixa entre 35 e 44 anos. O terraplanismo é mais popular, porém, entre aqueles brasileiros acima dos 60 anos —11% adotam a crença.

No Brasil ainda não há dados sobre quando o terraplanismo surgiu. O desenvolvedor web Danilo Wiener, 43 anos, é um dos coordenadores do movimento Terra Plana Brasil. Matéria da Folha de S. Paulo informou que, como hobby, ele costuma fazer experimentos de observação do oceano buscando mostrar que ele não possui curvatura. 

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Bereia classifica as notícias sobre o vandalismo contra a capela católica em Araras(SP), como imprecisas. A igreja foi, de fato, invadida, depredada e pichada com frases que expressam intolerância religiosa e teorias da conspiração que defendem o formato plano da Terra. Porém, não é possível afirmar que “terraplanistas” foram os responsáveis, tomando por base apenas os textos pichados nas paredes da capela. Apenas a investigação da Polícia Civil de São Paulo poderá apontar o perfil dos autores/as do ataque. 

Além disso, atos de intolerância religiosa contra igrejas,  praticado por “terraplanistas”, ou seja, adeptos de uma teoria da conspiração que tem vínculos com outras noções relacionadas à grupos extremistas são incomuns. Portanto, as ações que envolvem este caso podem ter outros objetivos. 

Bereia também chama a atenção para o transbordamento de teorias da conspiração expostas em mídias sociais digitais e de discursos de ódio para o “mundo real”, transformando retórica, teorias conspiratórias e ideias extremistas em combustível para atos violentos.

Referências de checagem:

Metrópoles. https://www.metropoles.com/sao-paulo/capela-e-invadida-e-pichada-com-frases-terraplanistas-em-sp Acesso em 04 MAI 2023 

El País. 

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/27/ciencia/1551266455_220666.html Acesso em 04 MAI 2023 

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/06/opinion/1533562312_266402.html Acesso em 04 MAI 2023 

Diocese de Limeira. https://diocesedelimeira.org.br/publicacoes.php?id=4700 Acesso em 04 MAI 2023 

Outras Palavras. https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/qanon-delirio-como-arma-ideologica-do-capital/ Acesso em 04 MAI 2023 

G1.https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2023/05/02/capela-de-araras-e-vandalizada-e-diocese-repudia-intolerancia-religiosa.ghtml Acesso em 04 MAI 2023  

Religião e Poder. https://religiaoepoder.org.br/artigo/cristofobia/ Acesso em 04 MAI 2023  

Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2023/01/20/noticia-diversidade,1447311/religioes-afro-sao-maior-alvo-de-intolerancia-apesar-de-suposta-cristofobia.shtml Acesso em 04 MAI 2023  

 Data Labe. https://datalabe.org/ Acesso em 04 MAI 2023  

 ISER. https://iser.org.br/ Acesso em 04 MAI 2023   

Genêro e Número https://www.generonumero.media/ Acesso em 04 MAI 2023  

Dicionário dos negacionismos no Brasil. Organização: José Szwako e José Luiz Ratton. Recife, Editora Cepe, 2022. https://www.cepe.com.br/lojacepe/dicionario-dos-negacionismos-no-brasil Acesso em 04 MAI 2023  

Cristofobia, uma estratégia preocupante

O presidente Jair Bolsonaro, no dia 22 de setembro de 2020, lançou no seu discurso de abertura do encontro anual da Organização das Nações Unidas (ONU), um termo que teve repercussão na imprensa nacional e internacional. Após fazer digressões sobre a situação econômica do país, a crise ambiental, as consequências da pandemia, relações internacionais, com foco na Venezuela, o Sr. Presidente pronuncia a seguinte frase: “faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. O discurso continua em direção ao Oriente Médio, prestando solidariedade ao Líbano, atingido recentemente por uma explosão portuária e acenando para parcerias com o Estado de Israel. O discurso é encerrado com uma frase que declara o Brasil, um Estado laico, como sendo: “um país cristão e conservador e [que] tem na família sua base. Deus abençoe todos”.

Essa frase aparentemente solta, pronunciada por um chefe de Estado numa congregação mundial das nações, não é leviana e não pode passar despercebida. Como não passou pela reverberação de seus efeitos que se encontra na imprensa, em geral, e nas redes sociais, em particular. Cabe uma ponderação reflexiva sobre o que é e pode vir a ser uma cristofobia no Brasil. Será feita de forma catequética, que via perguntas e respostas, ajuda a focar na argumentação.

Mas, o que é cristofobia?

É uma narrativa cristã construída a partir de um sentimento de perseguição, ameaça e/ou ataque. Usado sem essas situações reais de perseguição que pode ser seguida de morte, ameaça a direitos de expressão religiosa e de ataque físico e simbólico a templos, igrejas, pessoas. O termo pode ser utilizado como uma estratégia retórica que afirma supremacia de uma maioria cristã e justifica perseguição para aqueles que não são maiorias demográficas, simbólicas e políticas. Enquanto estratégia retórica e sem base real e fundamento o termo “cristofobia” se torna um preconceito com suas consequências discriminatórias.

O termo pode ser aplicado ao Brasil?

NÃO.

O Brasil é um país com maioria histórica, demográfica e simbolicamente cristã. É o Cristianismo sua matriz cultural, a orientação de seu código de costumes e o horizonte jurídico que impregna direitos fundamentais garantidos por lei na Constituição de 1988. Ainda que por diversos motivos, entre eles de cunho político, tanto no passado remoto quanto no recente, tenham-se registrado perseguições a pessoas que se confessam cristãs, atualmente isso não é um fato. Mesmo assim, no passado essa perseguição não era explicitada como sendo uma perseguição religiosa em massa, nem se colocava o sistema jurídico, policial e/ou militar para a perpetrar. Atualmente o Brasil não pode ser enquadrado entre os países como a Índia e no Oriente Médio, nos quais existe, em diferentes graus, essa perseguição por motivos religiosos. Contudo, dentro do Cistianismo e fora não tem sido referido como cristofobia e sim como perseguição aos cristãos, como o próprio Papa Francisco se referiu no seu discurso à ONU em ocasião do seu 75º aniversário, na mesma data do pronunciamento do Sr. Presidente Bolsonaro.

Por que, então, utilizar o termo no Brasil?

A resposta é muito interessante e deve ser colocada no contexto do uso retórico. Assim, cristofobia pode ser aproximadamente datado às intervenções públicas do deputado federal Marco Feliciano, na Câmara dos Deputados desde 2011, conhecidamente por suas atitudes homofóbicas, quem perante as passeatas gay em São Paulo, desde 2015, vem reagindo de forma acusatória, indicando que essas manifestações são expressões de aberrações morais e desvios de comportamentos. Utilizar pública e aleatoriamente o termo cristofobia é pavimentar a ideia de que existe um ódio contra o cristianismo. Tal ódio, segundo os disseminadores do termo, é nutrido por minorias sociais, étnicas e demográficas (entre elas comunidades LGBTQ+, movimentos sociais, indígenas, negros, pobres e feministas) que ameaçam o moral e costumes cristãos e acalentam desejos de atacar os cristãos.

Cristofobia pode ser um termo perigoso?

SIM.

Porque, de um lado, coloca na pauta religiosa, social e da mídia um fenômeno que não existe no Brasil nem na América Latina. De outro lado, porque como todo preconceito esconde as diferenças internas que há nos grupos que ele estigmatiza, justifica sua exclusão e reforça uma visão de serem ameaçadores para a ordem moral estabelecida por um tipo de interpretação cristã. Que dito seja, não é consenso no Cristianismo, nem católico nem evangélico, pois ambos segmentos são profundamente plurais. Mais ainda, e aqui entra o elemento perigoso: ele justifica ameaçar, atacar e criminalizar aqueles que são alvo de sua perseguição em nome de uma inversão criada por esses grupos que reverberam o termo. Dito de outra forma: cristofobia é um álibi para perseguir a quem se disse perseguido. Álibi que historicamente sempre foi nefasto para a sociedade e a religião, basta lembrar a Inquisição e ler a História.

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Foto de capa: Presidência da República/Reprodução