A Psicologia em xeque: o caso Marisa Lobo – violações e controvérsias com a defesa da ‘Psicologia Cristã’


Em um cenário onde a desinformação e a polarização se acentuam, a atuação de profissionais que misturam fé e ciência tem sido alvo de crescente no meio religioso. É nesse contexto que a figura de Marisa Lobo, autodeclarada “psicóloga cristã”, emerge como um ponto focal de controvérsia, levantando, mais uma vez, debates cruciais sobre a ética profissional, a laicidade da Psicologia, os limites entre a crença pessoal e a prática científica. 

A psicóloga, conhecida por suas palestras em igrejas e por posicionamentos contundentes e controversos sobre temas como sexualidade e “ideologia de gênero”, várias vezes candidata a vereadora, deputada estadual e federal, sem sucesso, enfrenta mais uma vez um processo de cassação de seu registro profissional. Este histórico remonta a 2014 e expõe as tensões entre o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e abordagens que o próprio órgão considera não científicas e antiéticas.

A trajetória de Marisa Lobo é marcada por embates recorrentes com os órgãos reguladores da psicologia no Brasil. Em 2014, seu registro profissional foi cassado pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), sob a acusação de fundamentar suas práticas em dogmas religiosos e de oferecer a controversa “cura gay”. 

Na época, a Justiça Federal chegou a anular o processo, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu o pedido de Marisa Lobo, afirmando a legalidade dos procedimentos adotados pelo CRP-PR. Posteriormente, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reformou a penalidade de cassação para uma Censura Pública, uma medida menos severa, mas que ainda assim representava uma advertência formal.

Atualmente, Marisa Lobo enfrenta uma nova ameaça de cassação de seu registro como psicóloga, um processo que, segundo ela, é movido por “perseguição religiosa”. Este novo capítulo reacende o debate sobre a autonomia do profissional de Psicologia e a necessidade de aderência aos princípios científicos da área. A psicóloga trata a situação como uma tentativa de silenciá-la, ao que atribui sua atuação contra a “ideologia de gênero” e suas palestras em ambientes religiosos.

A laicidade da Psicologia e a Resolução CFP 7/2023

O CFP, por meio de suas resoluções, busca garantir que a prática psicológica seja pautada em princípios científicos e éticos, desvinculada de dogmas religiosos. A Resolução CFP 7/2023, publicada em 6 de abril de 2023, é um marco nesse sentido. Ela estabelece normas claras para o exercício profissional, proibindo a associação do título de psicólogo a vertentes religiosas e impedindo a utilização de conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica nesses contextos .

Para o CFP, a Psicologia é uma ciência que deve ser exercida de forma laica, ou seja, sem a interferência de crenças ou doutrinas religiosas na condução do tratamento ou na orientação dos pacientes. Essa postura visa proteger a autonomia e a dignidade dos indivíduos, assegurando que o atendimento psicológico seja baseado em evidências científicas e no respeito à diversidade humana, sem qualquer tipo de proselitismo ou discriminação. A própria Marisa Lobo, em suas declarações, reconhece que “Psicólogos não falam de Deus no consultório”, mas argumenta que o CFP busca “desvincular o psicólogo de sua religião”, o que ela considera uma “ditadura”.

O termo “Psicologia Cristã”, amplamente utilizado por Marisa Lobo em suas palestras e em seu livros como o “Manual de psicologia cristã aplicada”, é um dos principais pontos de discórdia. O Conselho Federal de Psicologia não reconhece a “psicologia cristã” como uma especialidade ou abordagem da Psicologia. De acordo com a Resolução CFP 13/2007, o CFP reconhece apenas uma Psicologia, com 12 especialidades validadas técnica e cientificamente.

Imagem: reprodução/Instagram

A intersecção entre Psicologia e Religião tem sido um tema de debate e regulamentação no Brasil, especialmente no que tange à conduta ética dos profissionais. Bereia ouviu a Dra. Rebecca Maciel, participante do grupo de trabalho de profissionais e pesquisadores que discutem a Laicidade na Psicologia. Ela esclareceu as diretrizes que regem a prática de psicólogos no país, enfatizando a laicidade da profissão e a proibição de induções religiosas ou terapias de conversão. 

De acordo com Rebecca Maciel, o Código de Ética da Psicologia, de 2005, estabelece, no artigo 2b, que “o psicólogo não deve fazer indução religiosa”, com previsão de penalidades para o descumprimento. Essa base ética é complementada por uma série de resoluções do CFP que reforçam a proibição de práticas discriminatórias.

A pesquisadora enfatiza que a  necessidade dessas delimitações surge da constatação de iatrogenia, ou seja, de ações profissionais que resultaram na piora da saúde dos pacientes. Rebecca Maciel alerta para a falsa percepção de que um psicólogo da mesma religião seria mais acolhedor. Para ela, a negação da diversidade sexual por um psicólogo é considerada um absurdo, pois contraria os princípios éticos fundamentais da profissão. Além do papel científico de oferecer técnicas e conhecimentos e do papel político de combater práticas antiéticas, a psicóloga destaca um terceiro papel, muitas vezes esquecido: o de acolher a temática da fé de forma laica e ética.

Marisa Lobo, por sua vez, defende a integração da fé cristã com a psicologia, argumentando que a espiritualidade é um aspecto importante da vida humana e que a Psicologia não deve ignorá-la. Em seus livros, ela aborda temas como depressão, estresse, ansiedade e autoestima sob uma perspectiva que busca conciliar os princípios da Psicologia Clínica com a fé cristã. No entanto, a linha que separa a abordagem da religiosidade como um fenômeno humano da imposição de dogmas religiosos na prática clínica é tênue e, para o CFP, crucial para a manutenção da ética e da cientificidade da profissão.

Essa mistura de psicologia, sexualidade e religião nas palestras e publicações de Marisa Lobo é um dos pontos que geram preocupação e que motivam as ações do CFP. A crítica principal é que, ao apresentar-se como psicóloga e abordar esses temas em contextos religiosos, a psicóloga ode estar confundindo o público e desvirtuando a prática da Psicologia, que deve ser baseada em evidências científicas e no respeito à diversidade, sem preconceitos ou doutrinas religiosas. A defesa da “cura gay” no passado é um exemplo claro dessa controvérsia, uma prática que é amplamente condenada pela comunidade científica e pelos conselhos de psicologia por ser considerada antiética e prejudicial. 


Debate importante em curso

A controvérsia em torno da “Psicologia Cristã” e da atuação de Marisa Lobo, portanto, transcende o caso individual e se insere em um debate mais amplo sobre a demarcação entre ciência e religião no Brasil. A questão central não reside na fé do profissional, mas na fundamentação de sua prática, que, segundo as diretrizes da psicologia, deve ser pautada em conhecimento científico e em um código de ética que preza pela não discriminação e pelo respeito à diversidade. 

O desfecho deste novo processo de cassação poderá estabelecer um precedente importante sobre os limites da autonomia profissional e a aplicação das normas que regem a psicologia no país, reforçando a importância da checagem e da informação de qualidade para a compreensão de temas complexos e de grande impacto social. 

Quem tem medo da laicidade na psicologia?

A Psicologia é uma grande área de disputa para o campo religioso. Devido à sua interligação com os estudos da mente e a tradição da confissão (FOUCAULT, 1988), a área veio com uma raiz religiosa que, ao longo do tempo, os autores clássicos tentaram romper – como Freud, Skinner etc. – e que formulou, ao lado da Modernidade, uma profissão laica. Contudo, esse vínculo com a religião fez com que desde muito cedo a Psicologia caminhasse em um lugar ambíguo entre uma ala que queria que a Psicologia fosse uma técnica apropriada pelo campo religioso e outra, defendendo uma autonomia do campo (BELZEN, 2009). 

Essa disputa, que assinalei como histórica, ganha contornos muito específicos no Brasil. A entrada das disciplinas de Psicologia pelos seminários e instituições católicas ou protestantes fizeram esse contorno ser muito presente desde o início da profissão no Brasil. O catolicismo, inicialmente já interessado na área, teve um novo concorrente: os evangélicos, segmento na casa dos 9% em 1990 (dados do IBGE) que dá um salto vertiginoso para 31% da população brasileira em 2020, segundo o Datafolha.

Nesse território marcadamente afetado pela religião, a área da Psicologia se organizou e se regulamentou em 1977. Houve a criação dos Sistemas-Conselhos a partir da Lei 5766/1971, com uma organização em nível federal (Conselho Federal de Psicologia) e os conselhos regionais (Conselhos Regionais de Psicologia), divididos por áreas do país, não necessariamente estados. Cada conselho com eixos de trabalho e instâncias de debate para dois objetivos – orientar e fiscalizar a profissão. 

Nesse processo foi criado o primeiro Código de Ética do Psicólogo ainda em 1975, contudo, em função dos avanços profissionais e sociais – principalmente marcados pela Constituição Cidadã de 1988 e as Declarações Internacionais de Direitos Humanos – foi formulada a nossa última versão do código, em 2005. Nesta, tornou-se mais explícito o compromisso da área com a laicidade e a luta contra qualquer forma de violação dos direitos humanos. 

Em paralelo a esse processo, o CFP criou resoluções que, de modo diferente, já apontavam para a necessidade da laicidade, como a resolução 01/1999 – que proíbe a cura de homossexualidades e que, diversas vezes, foi objeto de grupos religiosos tentando retirar essa normativa; a 01/2000, que fala sobre a laicidade das práticas psicoterápicas; a 18/2002,  que versa sobre racismo e repudia todas as formas de discriminações raciais; a 01/2018,  que proíbe a cura de pessoas transgênero e a 08/22,  que proíbe a cura de pessoas não-monossexuais como bissexuais e pansexuais. Assim, a resolução 07/2023, criada para abarcar a temática sobre laicidade, apenas reforça aquilo que já está construído na profissão desde sua criação e no seu desenvolvimento. 

Além disso, os Sistemas-Conselhos, como citado anteriormente, trabalham com Eixos e grupos de trabalhos, dentre eles alguns específicos sobre Laicidade. Logo, a criação desta última resolução advém de um amplo debate de profissionais – muitas vezes que professam fé religiosa ou que já sofreram com as faltas éticas. Um dos grandes exemplos é um dos presidentes do Eixo de Laicidade do CRP-RJ, Héder Bello, que passou por tentativa de cura de sua sexualidade pela Rozângela Justino, que se autointitulava “psicóloga cristã”. Esta ex-psicóloga foi cassada e perdeu o seu registro profissional. Nesse processo, Bello produz, ao lado do CFP, o documento “Tentativa de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs” (2019), acumulando relatos de dezenas de outros pacientes que passaram por violações similares. Isso ocorreu anos antes da resolução 07/2023. 

Assim, a tentativa de se retirar uma norma do CFP não é uma movimentação nova e incomum na área, da mesma forma que o impulso de organizações para permanecerem usando terminologias que são antiéticas – como “Psicólogo Cristão”. Quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7426 surgiu de modo a barrar a Resolução 07/23, se retomou um mesmo movimento que já ocorrera no passado: “mas o psicólogo não tem “liberdade” de curar uma pessoa de sua sexualidade? E de expressar sua religião como profissional?” O uso do termo “liberdade de expressão” aparece como um opositor aos limites dados pelos Direitos Humanos. 

A resposta para as perguntas acima é “Não!” O psicólogo não tem liberdade para tudo. Por isso somos uma ciência e profissão. A laicidade é uma forma de proteger grupos minoritários de violências como as relatadas no documento “Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs” de 2019, na fala de três mulheres lésbicas:

1: A psicóloga começou invocar alguns trechos da Bíblia, falando sobre o mito da Criação, sobre o papel da mulher, sobre as convicções. 

2: Minha mãe disse que o pastor conhecia uma psicanalista que era uma irmã, ela era da igreja, sei lá o quê, e que tratava de casos assim. (…) Ela conversou comigo que talvez fosse isso que Deus queria, sei lá o quê. Antes da sessão, a gente fez uma oração, claro. 

3: Ao buscar ajuda psicológica, a psicóloga veio interpor uma questão de religião. […] Ela começou dizendo que era uma fase, depois ela entrou muito em religião, começou a falar que Deus tinha um plano para mim e que isso eram “atormentações”, que eu não podia me deixar cair nessas atormentações. Ela passava orações para eu fazer, orações, hinos para eu ouvir, e ficava falando versos bíblicos, nada a ver. (CFP, 2019, p.102.)

Em oposição a esta ADI 7426, organizada pelo Partido Novo e o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) – duas organizações que não são de psicólogos – o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Pedro Paulo Bicalho, decidiu mobilizar respostas que estão em processo. No caso do Rio de Janeiro, a presidente do Conselho, Céu Cavalcanti – uma mulher trans e que possui uma experiência religiosa – fez questão de realizar um evento chamado I Seminário sobre Psicologia, Religião e Espiritualidade, onde estava presente o Eixo de Laicidade do CRPRJ e a Comissão de Estudantes. O evento foi realizado no Instituto Teológico Franciscano, que apoiou firmemente a luta pela laicidade. Houve cerca de 400 pessoas presenciais e 500 online, ouvindo claramente o posicionamento e recebendo em mãos a resolução, a fim de lerem e entenderem a luta pela laicidade. A área continua em luta a fim de reafirmar seu lugar ao lado dos Direitos Humanos.

Referência:

BELZEN, Jacob A. Psicologia Cultural da Religião: Perspectivas, Desafios, Possibilidades. REVER: Revista de Estudos da Religião, v. 9, 2009.

CFP – Conselho Federal de Psicologia. Link: https://site.cfp.org.br/multimidia/projeto-memorias-da-psicologia-brasileira/. Acesso em 04 out. 2023. 

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Rio de janeiro: Graal, 1988.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Aaron Burden/Unsplash

Apoie o Bereia!

Faça parte da comunidade que apoia o jornalismo independente