O movimento antifeminista cristão no Brasil: O que é, quem integra e como opera – parte 2
O discurso das antifeministas cristãs é sustentado por um repertório híbrido de referências religiosas, filosóficas e políticas, que combina santas católicas, pensadoras conservadoras e líderes políticas que alcançaram destaque sem se identificarem com o feminismo. Essas figuras são frequentemente apresentadas como “exemplos de mulher forte, mas submissa à vontade divina”.
Entre as inspirações religiosas mais citadas estão Hildegard von Bingen e Edith Stein, ambas canonizadas pela Igreja Católica. A primeira, monja beneditina do século 12, é lembrada por sua sabedoria e obras místicas, mas nas redes antifeministas aparece como símbolo de obediência e pureza. Já Edith Stein, filósofa judia convertida ao Catolicismo, morta pelo Nazismo no Campo de Concentração de Auschwitz, é evocada como exemplo de intelectual piedosa e defensora de uma “identidade feminina essencial”.
Essas referências espirituais convivem com figuras políticas como a ex-primeira ministra britânica conservadora Margaret Thatcher, conhecida como Dama de Ferro, e a ex-primeira ministra de Israel Golda Meir, apresentadas como modelos de mulheres que teriam conquistado poder “sem precisar do feminismo”. Antifeministas brasileiras frequentemente utilizam frases ou imagens dessas líderes para reforçar a ideia de que “força e submissão não são opostos”.
No plano teórico, a principal inspiração estrangeira é a ativista estadunidense Phyllis Schlafly que, nas décadas de 1970 e 1980, liderou o movimento contra a Emenda de Igualdade de Direitos (ERA) nos Estados Unidos. Schlafly ficou conhecida por afirmar que o feminismo “roubou a felicidade das mulheres”, ao incentivá-las a competir com os homens em vez de se orgulhar do papel doméstico. O pensamento desta mulher se tornou uma das bases do antifeminismo cristão moderno e é frequentemente citado por influenciadoras e autoras brasileiras que compartilham desta noção.

No Brasil, essas ideias foram sistematizadas e adaptadas pela deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), que organizou o livro Não existe cristã feminista, publicado em editora própria. A obra reúne textos de autoras evangélicas e católicas que defendem a incompatibilidade entre Cristianismo e feminismo, argumentando que a igualdade de gênero seria uma distorção ideológica moderna.
Essas referências religiosas, políticas e literárias formam uma espécie de “biblioteca moral” do antifeminismo cristão: um conjunto de símbolos usados para legitimar a rejeição ao feminismo contemporâneo e propor uma “feminilidade virtuosa” baseada na submissão, na maternidade e na obediência à vontade divina.
Como o discurso antifeminista é apresentado
O antifeminismo cristão combina linguagem religiosa, moral e conspiratória em um mesmo pacote narrativo. De acordo com os estudos de Fernanda Lira e Fabiana Moraes, nas redes sociais digitais, as participantes deste movimento falam sobre fé, relacionamentos e maternidade, mas com um pano de fundo ideológico que associa o feminismo à corrupção espiritual e ao declínio moral da sociedade. As pesquisadoras indicam as características a seguir.

1. A leitura literal da Bíblia
Grande parte das influenciadoras antifeministas baseia-se em uma interpretação literal do livro de Gênesis, que descreve Eva como auxiliadora de Adão. A partir daí, defendem o chamado complementarismo, doutrina segundo a qual homens e mulheres têm papéis distintos e divinamente ordenados – o homem como líder e provedor; a mulher como submissa e cuidadora. Essa leitura serve de base teológica para rejeitar o feminismo e tratá-lo como “rebelião contra Deus”.
2. A batalha espiritual
Outro elemento central é a ideia de que existe uma guerra espiritual entre o bem e o mal, na qual o feminismo, a ideologia de gênero e o “marxismo cultural” seriam armas do inimigo da fé (Satanás e seu séquito). Essa narrativa ressignifica debates políticos e sociais em termos religiosos, apresentando o feminismo não como um movimento histórico, mas como uma força demoníaca que ameaça destruir a família e a fé cristã.
3. O enquadramento conspiratório

As antifeministas frequentemente utilizam rótulos como “ideologia de gênero”, “marxismo cultural” e “agenda woke” para simplificar fenômenos complexos e enquadrá-los como parte de uma suposta conspiração global contra os valores cristãos. Esses termos funcionam como atalhos discursivos, facilmente reconhecíveis por públicos conservadores, e permitem que o discurso religioso dialogue com o vocabulário político da nova direita.
4. A promessa de sentido e pertencimento
Apesar do tom combativo, o antifeminismo cristão também se apresenta como proposta de conforto emocional e espiritual. Ele oferece às mulheres uma identidade clara de esposa, mãe e cuidadora em um mundo percebido como confuso e moralmente instável. Essa “promessa de propósito” é um dos fatores que explicam sua forte adesão entre jovens cristãs que buscam segurança e pertencimento.

Em síntese, de acordo com os estudos de Lira e Moraes, o discurso antifeminista cristão combina fé, medo e marketing: defende uma visão tradicional da mulher, denuncia inimigos invisíveis e oferece produtos, cursos e comunidades que reforçam a mesma mensagem. Trata-se de uma retórica de salvação espiritual que também opera como estratégia de influência e monetização.
Onde e como opera o movimento antifeminista cristão
O antifeminismo cristão no Brasil funciona como um ecossistema digital e presencial bem articulado, que combina redes sociais, comunidades fechadas, eventos religiosos e produtos comerciais.
1. Plataformas e formatos
Instagram, YouTube, TikTok e podcasts são as principais ferramentas de propagação. O conteúdo é cuidadosamente produzido — fotos com estética “clean”, vídeos com fundo branco e legendas em tons suaves, trilhas sonoras devocionais e mensagens curtas. A forma leve e acolhedora contrasta com o conteúdo ideológico, que muitas vezes associa feminismo a pecado, desobediência e destruição da família.
Os reels e vídeos curtos são os formatos mais utilizados: frases de impacto (“a mulher moderna perdeu o encanto”), leituras de versículos, e pequenas “aulas” sobre submissão e propósito. Muitas influenciadoras também mantêm podcasts semanais sobre temas como namoro, casamento e maternidade, sempre em tom pastoral e confessional.
2. Comunidades fechadas e clubes
Além das redes abertas, essas influenciadoras cultivam um sistema de pertencimento fechado, com grupos pagos no Telegram, aplicativos próprios ou plataformas de cursos. Os clubes como o Clube Antifeminista, criado por Ana Campagnolo, oferecem acesso a aulas, encontros e materiais exclusivos, mediante assinaturas mensais. Esse modelo cria uma comunidade fiel, em que o engajamento religioso e político se mistura a laços afetivos e espirituais.
3. Eventos presenciais
Congressos, retiros e encontros presenciais consolidam a experiência comunitária. Um exemplo emblemático foi o 1º Congresso Antifeminista de Santa Catarina, sediado na Assembleia Legislativa em 2024, com palestras de influenciadoras, políticos e líderes religiosos. Também são comuns eventos menores — como cafés e “chás de virtude” — voltados à celebração da maternidade e à reafirmação dos papéis de gênero.

Fonte: Agência AL (Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina)
4. Monetização e produtos
Por trás da retórica espiritual, há uma estrutura profissional de monetização. A venda de livros, cursos, consultorias matrimoniais e objetos religiosos financia o movimento e reforça sua sustentabilidade. A Livraria Campagnolo, por exemplo, funciona como eixo comercial, reunindo publicações sobre feminilidade, casamento e política cristã. Outras criadoras vendem roupas “modestas”, bíblias personalizadas e planners espirituais.
Esse sistema transforma o antifeminismo cristão em um mercado religioso de nicho, no qual a fé é convertida em produto e o engajamento político se disfarça de devoção.
Impactos e críticas
O crescimento do antifeminismo cristão no Brasil tem impactos que ultrapassam o campo religioso. O movimento atua simultaneamente na esfera simbólica, econômica e política, moldando comportamentos e narrativas que influenciam desde o voto até o cotidiano das igrejas.
1. Reforço de desigualdades e retrocessos de direitos
Ao propagar uma visão de gênero baseada na submissão feminina e na liderança masculina, o antifeminismo cristão reproduz desigualdades estruturais e deslegitima pautas históricas do movimento de mulheres — como o combate à violência doméstica, o acesso à educação e a igualdade de oportunidades no trabalho e na política. A pesquisadora Julia dos Anjos aponta que, sob o discurso de “valores familiares”, o movimento contribui para normalizar a exclusão e silenciar mulheres que não se encaixam nesse modelo idealizado de feminilidade.
2. Hibridismo entre fé, política e economia
Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser, ouvida pelo Bereia, o antifeminismo cristão não é apenas uma reação moral ao feminismo, mas um sistema de poder e monetização que se legitima pela linguagem religiosa. A promessa de “propósito” e “virtude” vem acompanhada de cursos, livros e clubes pagos, transformando a devoção em produto e a submissão em estilo de vida. Essa economia simbólica é reforçada por influenciadoras e figuras políticas, como Ana Campagnolo, que utilizam sua autoridade religiosa para construir capital político.
3. Retórica conspiratória e desinformação
A pesquisadora em Comunicação, Política e Religiões e editora-geral do Bereia Magali Cunha, ouvida para esta matéria, observa que o sucesso dessas vozes está na estética emocional e na lógica algorítmica das redes, que privilegia conteúdos que despertam medo e identificação. Ao associar o feminismo a ideologias como “marxismo cultural”, “woke” ou “ideologia de gênero”, essas influenciadoras inserem a fé em uma narrativa de batalha espiritual, criando um senso de urgência e ameaça constante.
Essa retórica, semelhante à das guerras culturais importadas dos EUA, alimenta a polarização e favorece o engajamento por indignação, o que explica seu alto alcance nas plataformas digitais.
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O crescimento do antifeminismo cristão no Brasil parece transcender a mera disputa ideológica ou religiosa, configurando e dinamizando um complexo sistema de poder que opera nas esferas simbólica, econômica e política. Esta segunda parte da matéria mostrou que o impacto desse movimento fica evidente ao reforçar as desigualdades estruturais, minando as conquistas históricas do movimento de mulheres e contribuindo para a normalização da exclusão social.
Referências:
Antifeminismo no Instagram: como conservadores atribuem ao movimento feminista uma corrupção moral, artigo de Fernanda Kemilly Silva Lira e Fabiana Moraes
https://sistemas.intercom.org.br/pdf/submissao/nacional/17/07202024222318669c63060175b.pdf
Artigo. “As garras do feminismo”: discurso de ódio antifeminista no Facebook e o senso de urgência controlada: https://www.scielo.br/j/interc/a/HJWF8BGsZzKZ3TMLcVGQXXC/?format=html&lang=pt
Antifeminismo brasileiro: I Congresso Antifeminista do Brasil, Trabalho de Conclusão de Curso de Alexsandra Ferreira Aquino https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/22054/TCC%20-%20Alexsandra%20-%20Alexsandra%20Ferreira%20Aquino.pdf?sequence=1&isAllowed=y
As quatro ondas do feminismo: lutas e conquistas, artigo de Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida. .https://www.researchgate.net/publication/354044281_AS_QUATRO_ONDAS_DO_FEMINISMO_LUTAS_E_CONQUISTAS
Movimentos antifeministas e desinformação: uma análise dos discursos promovidos no Instagram, artigo de Maiara Silva e Girlaine Gomes https://www.researchgate.net/publication/362674562_Movimentos_antifeministas_e_desinformacao_uma_analise_dos_discursos_promovidos_no_Instagram