A cruzada de Michelle: fé, pânico moral e desinformação na estratégia nacional do PL Mulher

Desde que deixou o Palácio da Alvorada, Michelle Bolsonaro se tornou mais do que a ex-primeira-dama do governo de Jair Bolsonaro (PL, 2019-2022): hoje, ela é o principal rosto feminino da nova direita cristã no Brasil. À frente do PL Mulher, a esposa do ex-presidente comanda o Projeto Alicerça Brasil, uma iniciativa que mistura devoção, nacionalismo e ativismo político sob a linguagem da fé.

A trajetória que levou Michelle Bolsonaro à política 

Nos últimos anos, Michelle Bolsonaro percorreu um caminho singular: de esposa reservada de um deputado do baixo clero a uma das figuras mais influentes da nova direita cristã brasileira. Em 2018, quando Jair Bolsonaro lançou sua candidatura à Presidência, ela se manteve quase invisível. Não existe qualquer menção ao nome de Michelle Bolsonaro nos acervos de grandes jornais antes daquele ano.

Como mostrou reportagem do El País, no contexto da posse do novo presidente em 2019, durante a campanha eleitoral, ela acompanhou o marido de forma discreta, raramente subiu a palanques e chegou a fechar seus perfis em redes sociais para evitar a exposição. Vestida com simplicidade — “calça cinza e camiseta preta”, segundo a matéria —, limitou-se a gestos de apoio e a participar de ações voltadas à comunidade surda, com quem atuava na igreja da qual é membro, a Batista Atitude, no bairro da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Essa imagem de mulher silenciosa, piedosa e devota, de uma primeira-dama evangélica que preferia a discrição aos holofotes, acabou se tornando um poderoso ativo simbólico. Enquanto o marido representava a força e o confronto, Michelle Bolsonaro encarnava a fé e a modéstia, o complemento perfeito para um projeto político que se apresentava como restaurador da “família cristã”. Em agosto de 2020, outra matéria do El País abordava a primeira dama: “às vezes ela participa de algum ato governamental de perfil social ou acompanha seu marido, mas sempre em segundo plano. Raramente fala em público”.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A ameaça de derrota na campanha para a reeleição em 2022, já desenhada em pesquisas de voto no ano anterior, que indicavam maiores baixas de voto entre o eleitorado feminino, levou Bolsonaro e o PL a um investimento com este público, que incluiu uma transformação na figura da esposa Michelle.

O marco desta estratégia foi o café da manhã promovido para mulheres no Palácio da Alvorada, residência presidencial, no Dia Internacional da Mulher daquele ano. Naquele evento a primeira-dama, acompanhada da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, teve voz e protagonismo. Ela apareceu com novo visual: cabelos curtos e vestido rosa de corte recatado, porém moderno.

A derrota no processo eleitoral não pode ser evitada. No entanto, com o tempo, o protagonismo de Michelle Bolsonaro se consolidou: a mulher que nos primeiros anos do mandato do marido falava pouco e orava muito, passou a discursar em palanques, liderar caravanas religiosas e ganhou um cargo no partido: passou a dirigir o PL Mulher. Con isso, ela se consolidou como a principal voz feminina do bolsonarismo e uma face espiritualizada de sua cruzada moral e política.

Imagem: Site PL Mulher

O rosto feminino da direita cristã

Desde que deixou o Palácio da Alvorada, Michelle Bolsonaro tem sido cuidadosamente reposicionada como o rosto feminino da direita cristã. A imagem de primeira-dama de 2018, reservada e doméstica deu lugar à de líder espiritual e política, agora apresentada como “mulher de fé, mãe e serva de Deus que luta pela reconstrução do Brasil”. O PL apostou em transformar essa persona em ativo político e o Projeto Alicerça Brasil, lançado em 2023 sob a marca do PL Mulher, é o eixo central dessa operação.

Nos materiais oficiais, Michelle Bolsonaro aparece cercada por mulheres, orando em círculo, ou conduzindo discursos com a Bíblia em uma das mãos e a bandeira nacional na outra. A simbologia remete à ideia de que Deus e Pátria se unem em torno de uma liderança feminina que se apresenta como pura, doce e inspiradora — em contraste com o feminismo, retratado como agressivo e destrutivo.

Essa feminilidade messiânica é a base de sua força simbólica: a ex-primeira dama não aparece como política, mas como porta-voz de uma missão divina. Nos discursos e materiais do projeto Alicerça, ela afirma que as mulheres têm o dever de “reconstruir espiritualmente o país”, de “proteger suas casas da ideologia” e de “defender a família como instituição sagrada”. 

Em encontros domésticos, chamados de “Grupo Alicerçadas”, mulheres são incentivadas a abrir as portas de suas casas para “orar, estudar e agir pela reconstrução moral e espiritual do país”. O manual oficial do Alicerça, disponível no site do PL Mulher, transforma prece em ação política: ensina a fiscalizar escolas, denunciar conteúdos contrários à “moral cristã” e participar de audiências públicas e conselhos locais. Tudo em nome de um “exército de mulheres de Deus” convocadas a defender “família, fé e pátria”.

O “método Michelle”: do culto doméstico ao comitê político

O Projeto Alicerça Brasil, coordenado por Michelle Bolsonaro dentro do PL Mulher, se estrutura a partir de pequenos grupos de base — as chamadas “Células Alicerçadas”, formadas por até 12 mulheres.

Segundo o manual oficial, essas reuniões devem acontecer quinzenalmente, com duas horas de duração, sempre com uma liturgia que contém oração, leitura bíblica, louvor e reflexão. Após o momento de louvor, as participantes seguem um roteiro padronizado, dividido em etapas: ler, refletir, iluminar e agir.

Primeiro, lê-se um texto sugerido pelo partido; em seguida, ocorre um debate conduzido por uma “líder Alicerçada”, que orienta a interpretação do conteúdo a partir de uma perspectiva moral e ideológica. O encontro termina com a etapa “agir”, em que são definidas tarefas práticas: participar de audiências públicas, pressionar vereadores, elaborar abaixo-assinados, montar dossiês de políticos locais e registrar denúncias contra “ameaças à família e à fé”.

Foto: PL/Divulgação

Este formato reproduz a metodologia de células evangélicas, mas nesse contexto, o foco está na mobilização política explícita, que é a transformação da devoção em militância. O manual estimula que as participantes ocupem espaços institucionais, como conselhos tutelares, associações de pais e câmaras municipais, sob o argumento de que a “restauração moral do país” começa pela ocupação dos territórios públicos.

Além do viés espiritual, o Alicerça incorpora uma pauta moral e econômica combinada: os textos associam alta de preços, insegurança pública e problemas escolares às “ideologias de esquerda” e ao “woke”, reforçando a ideia de que a fé cristã é a solução para a crise nacional.

Nessa conjuntura, questões complexas e estruturais são enquadradas como problemas morais e espirituais, cuja solução depende da mobilização das “mulheres de Deus”, instrumentalizando a religiosidade como arma discursiva e ferramenta eleitoral.

Além disso, o livro  “Edificando a nação: sobre bases e valores”, também disponível no site do PL Mulher, oferece uma síntese de toda a visão político-ideológica do bolsonarismo. A reportagem do Bereia analisou os documentos e identificou que o projeto se insere na mesma lógica das redes antifeministas cristãs, tema já tratado em reportagem do Bereia. As frases pronunciadas e redigidas ecoam o mesmo léxico de influenciadoras como Ana Campagnolo e Pietra Bertolazzi, agora com o selo de um partido político e o prestígio de uma ex-primeira-dama. 

Enquanto as influenciadoras ocupam o papel de evangelizadoras digitais, Michelle Bolsonaro atua como matriarca institucional, uma espécie de “pastora da nação”,   um símbolo unificador, capaz de mobilizar eleitores conservadores e religiosos com uma retórica que mistura fé, nacionalismo e ressentimento moral, como trata a análise produzida pelos autores desta reportagem, publicada em artigo para o Bereia.

Referências: 

https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/45608 Signos religiosos e sua influência na arena política: uma análise dos discursos dominionistas de michelle bolsonaro durante o pl mulher Acesso em 20 OUT 2025

De Primeira Dama a Líder Silenciosa do Bolsonarismo: Análise a Partir das Postagens de Michelle Bolsonaro no Instagram

https://www.researchgate.net/profile/Isabella-Gaet/publication/386106823_De_Primeira_Dama_a_Lider_Silenciosa_do_Bolsonarismo_Analise_a_Partir_das_Postagens_de_Michelle_Bolsonaro_no_Instagram_1/links/6744ce6c83ad2758b2a04e09/De-Primeira-Dama-a-Lider-Silenciosa-do-Bolsonarismo-Analise-a-Partir-das-Postagens-de-Michelle-Bolsonaro-no-Instagram-1.pdf Acesso em 20 OUT 2025

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/28/politica/1540760471_920767.html Acesso em 20 OUT 2025

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/01/politica/1546361496_407537.html Acesso em 20 OUT 2025

https://coletivobereia.com.br/o-movimento-antifeminista-cristao-no-brasil-o-que-e-quem-integra-e-como-opera-parte-1/ Acesso em 20 OUT 2025

https://coletivobereia.com.br/o-que-e-woke-e-por-que-o-termo-virou-alvo-de-disputas-politicas-e-religiosas/ Acesso em 20 OUT 2025

https://plmulher.org.br/downloads/ Acesso em 20 OUT 2025https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/03/08/bolsonaro-faz-evento-com-mulheres-para-tentar-reduzir-desaprovacao-de-eleitoras.htm Acesso em 20 OUT 2025

Foto: Reprodução

Entrevista com Tabata Tesser – Movimento antifeminista cristão no Brasil: um mercado de reações

A arena sociopolítica está diante de um fenômeno, que tem por nome “antifeminismo”. Ainda que os rastros desse movimento sejam conhecidos há décadas, atualmente ele se manifesta de maneira mais estruturada e sofisticada. Seu objetivo é claro: alcançar mulheres identificadas com as pautas de cunho conservador, utilizando variadas estratégias. E para alcançar seu objetivo usam meios, como a tentativa de desmonte e desqualificação (ridicularização) do(s) movimento(s) feminista(s). 

Visando a consolidação do movimento, é oferecido um acervo de leituras e cursos de cunho tradicionalista e conservador sobre como não ser uma mulher feminista e tais ações ganham um caráter cristão.  O movimento antifeminista cristão é propagado por personagens conhecidas do universo da política e da religião, com número significativo de seguidores nas mídias digitais e convictas de que têm missão a cumprir.

Nesta entrevista, Bereia ouviu pesquisadora  do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser.  A socióloga da Religião analisa e problematiza os elementos que compõem o movimento antifeminista cristão e mostra como ele tem atuado e os impactos práticos que pode gerar para a sociedade. 

Confira a entrevista

Coletivo Bereia – Como você define “antifeminismo cristão” no Brasil e quais são as suas correntes internas? 

No Brasil, o antifeminismo cristão é um fenômeno que combina identidade religiosa, moralidade de gênero e engajamento “feminino” político. Ele se expressa publicamente, sobretudo, em uma autoidentificação recorrente entre mulheres “mães, cristãs, esposas e conservadoras”. Trata-se de uma forma de subjetivação política e religiosa comum entre mulheres que buscam ser reconhecidas publicamente a partir dessa combinação de valores. Nem todas se assumem explicitamente como antifeministas, mas, mesmo entre aquelas que não usam esse rótulo, há um padrão de autoapresentação visível sobre maternidade, religião, conjugalidade e ideologia conservadora.

O que as une é, antes de tudo, um rechaço ao feminismo, compreendido de forma homogênea, como se “o feminismo” fosse um movimento único, coeso e centralizado ou um clube fechado de códigos específicos. Esse rechaço vem acompanhado de uma adesão ativa à feminilidade bíblica tradicional e à hierarquia dos papéis de gênero. Em conjunto, o rechaço ao feminismo e a exaltação do ideal “feminino” operam como marcadores identitários que as consolidam como um coletivo de mulheres de extrema direita, ainda que com diferenças internas importantes.

Entre as principais correntes do antifeminismo cristão, é possível destacar duas vertentes: a católica e a evangélica, a espírita ainda a se mapear.

O antifeminismo católico tem forte lastro institucional. Os discursos antigênero e antifeministas foram forjados dentro da própria Igreja Católica, especialmente a partir dos pontificados que antecedem e culminam em João Paulo II, vocalizados por Joseph Ratzinger e cristalizados na Teologia do Corpo e na Doutrina da Complementaridade. O termo “ideologia de gênero”, que se tornaria central para mulheres antifeministas, surge pela primeira vez na Conferência Episcopal Peruana em 1996 e passa a funcionar como uma “cola simbólica” para unir atores católicos e evangélicos em torno de um inimigo comum (Birolli, 2019). O Vaticano sistematizou o discurso antigênero e o difundiu com as cinco características típicas de pânico moral: a preocupação dogmática de que o feminismo ameaçaria a família; a demonização das feministas; o consenso episcopal na formulação doutrinária de documentos e encíclicas; a narrativa desproporcional de que o feminismo destruiria a religião; e a volatilidade de um discurso que extrapolou os muros eclesiais, alcançando campanhas eleitorais, estratégias de marketing e até produções cinematográficas da extrema direita (Machado, 2018).

Já o antifeminismo evangélico se manifesta de modo mais diretamente vinculado ao ativismo político e digital de mulheres. Ele se estrutura como parte do conservadorismo moral e do “ativismo vulgar” da extrema direita. No caso de figuras como a deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), por exemplo, o antifeminismo não se limita à retórica, mas se traduz em prática. Inspirada em Olavo de Carvalho, Campagnolo descreve sua atuação como um “trabalho cultural de conscientização antifeminista”. Essa “missão divina” se materializa em cursos virtuais, como o Clube Antifeminista, composto por nove módulos sobre feminilidade, ideologia de gênero, aborto, família e feminismo, além de livros e testemunhos pessoais. Seu mandato parlamentar opera como vitrine desse antifeminismo partidário, transformando eleitoras em consumidoras de produtos e cursos digitais. Trata-se, portanto, de um antifeminismo monetizado, que combina militância religiosa, discurso moral e técnicas contemporâneas de e-commerce (o  livro “Não Existe Feminista Cristã”, foi o mais vendido na categoria “Igreja e Estado”, na plataforma Amazon).

Em síntese, o antifeminismo cristão no Brasil articula religião, gênero e mercado, funcionando tanto como reação teológica e moral ao feminismo quanto como projeto político e econômico em expansão.

Coletivo Bereia – Quais referências teológicas mais aparecem (Gênesis, complementarismo, “batalha espiritual”)? 

Trabalhando com a professora Brenda Carranza (Unicamp), temos usado a noção de uma teologia antifeminista que adapta o discurso conspiracionista religioso a partir de um vocabulário próprio da teologia das batalhas espirituais (conforme a pesquisa de Cecília Mariz, 1999). Essa teologia antifeminista se ancora em uma interpretação hermenêutica literal de Gênesis, “homem nasceu homem, mulher nasceu mulher”, mas não se limita a isso: incorpora também referências ao feminacionalismo, ou seja, de mulheres “como defensoras da nação cristã de Deus”.

O vocabulário teológico antagônico constrói inimigos nítidos do “nós contra elas”: feministas, negras/os, LGBTQIAPN+, quilombolas e povos indígenas. Os discursos de batalha espiritual enfatizam a figura do diabo e da ameaça moral, classificando feministas como “feminazis” ou “feministas diabólicas”. Ao mesmo tempo, mobilizam um imaginário de reencantamento e magia, responsável por um tipo de alienação política (conforme o estudo de Cecília Mariz, 1999).

Coletivo Bereia – Como se dá a monetização (clubes, cursos, congressos, doações)? Algum padrão de funil? 

Sim. O antifeminismo cristão se tornou também um modelo de negócio. No caso da deputada Campagnolo (PL-SC), autora do primeiro clube antifeminista (2019), por exemplo, há um antifeminismo partidário que transforma eleitoras em leitoras e, depois, em consumidoras de cursos virtuais. Essa estratégia se apoia em uma técnica de e-commerce chamada fórmula de lançamento, criada por Jeff Walker e popularizada no Brasil por Érico Rocha. Empresas conservadoras como a Brasil Paralelo reconhecem publicamente terem aprendido essa metodologia para impulsionar seu alcance religioso.

A fórmula de lançamento tem seis passos: (1) construção de audiência; (2) criação de expectativa e pré-lançamento; (3) lançamento com uso de gatilhos mentais, como escassez e autoridade; (4) pós-lançamento; (5) entrega e encantamento; e (6) relançamento. Campagnolo é pioneira no uso desse modelo no campo antifeminista, transformando sua base política e religiosa em um mercado digital de infoprodutos.

Coletivo Bereia – Há diferenças católicas x evangélicas? E recortes de classe/raça (ex.: “antifeminismo racializado”)?

Sim, há diferenças marcantes. As antifeministas católicas costumam ocupar espaços de liderança mais restritos às suas comunidades paroquiais e à esfera eclesial. Já as antifeministas evangélicas operam em um campo mais secularizado, com forte presença nas redes sociais e no debate público. São elas que, em geral, organizam e divulgam livros, cursos e eventos, inclusive convidando católicas para participar. Em certo sentido, o antifeminismo evangélico “democratiza” mais o conhecimento antifeminista, circulando entre diferentes denominações e camadas sociais. No Brasil, destacam-se nomes como Ana Campagnolo, principal sistematizadora evangélica, e as católicas deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) e jurista Angela Gandra, que articulam o antifeminismo em instâncias políticas e jurídicas.

Quanto a recortes de classe e raça, observa-se o predomínio de um antifeminismo branco, de classe média e média alta, ainda que com penetração crescente entre mulheres periféricas que encontram nesses espaços narrativas de pertencimento, acolhimento e espiritualidade conservadora “feminilidade bíblica”.

Coletivo Bereia – Que efeitos práticos você observa sobre políticas públicas e direitos das mulheres?

O antifeminismo cristão produz efeitos concretos em duas frentes. Por um lado, há um revisionismo histórico dos feminismos, uma tentativa de reescrever o passado e deslegitimar as lutas das mulheres, substituindo-as por narrativas de “feminilidade autêntica” e “missão divina feminina”. Por outro, esses movimentos constroem redes de sociabilidade antifeminista, com clubes e espaços de apoio emocional e espiritual, funcionando como comunidades de autoajuda no antigo modelo de “clube de mães”. Essas práticas criam um duplo motor: político e afetivo. De um lado, organizam resistência a políticas públicas de gênero e direitos reprodutivos; de outro, oferecem acolhimento e sentido de pertencimento, tornando o antifeminismo cristão não apenas um discurso, mas uma experiência social e emocional compartilhada, ou seja, o antifeminismo é também um marcador de identidade que constitui um tipo de vínculo comunitário entre mulheres cristãs.

O movimento antifeminista cristão no Brasil: O que é, quem integra e como opera – parte 2

O discurso das antifeministas cristãs é sustentado por um repertório híbrido de referências religiosas, filosóficas e políticas, que combina santas católicas, pensadoras conservadoras e líderes políticas que alcançaram destaque sem se identificarem com o feminismo. Essas figuras são frequentemente apresentadas como “exemplos de mulher forte, mas submissa à vontade divina”.

Entre as inspirações religiosas mais citadas estão Hildegard von Bingen e Edith Stein, ambas canonizadas pela Igreja Católica. A primeira, monja beneditina do século 12, é lembrada por sua sabedoria e obras místicas, mas nas redes antifeministas aparece como símbolo de obediência e pureza. Já Edith Stein, filósofa judia convertida ao Catolicismo, morta pelo Nazismo no Campo de Concentração de Auschwitz, é evocada como exemplo de intelectual piedosa e defensora de uma “identidade feminina essencial”.

Essas referências espirituais convivem com figuras políticas como a ex-primeira ministra britânica conservadora Margaret Thatcher, conhecida como Dama de Ferro,  e a ex-primeira ministra de Israel Golda Meir, apresentadas como modelos de mulheres que teriam conquistado poder “sem precisar do feminismo”. Antifeministas brasileiras frequentemente utilizam frases ou imagens dessas líderes para reforçar a ideia de que “força e submissão não são opostos”.

No plano teórico, a principal inspiração estrangeira é a ativista estadunidense  Phyllis Schlafly que, nas décadas de 1970 e 1980, liderou o movimento contra a Emenda de Igualdade de Direitos (ERA) nos Estados Unidos. Schlafly ficou conhecida por afirmar que o feminismo “roubou a felicidade das mulheres”, ao incentivá-las a competir com os homens em vez de se orgulhar do papel doméstico. O pensamento desta mulher se tornou uma das bases do antifeminismo cristão moderno e é frequentemente citado por influenciadoras e autoras brasileiras que compartilham desta noção.

Imagem: National Women’s History Museum

No Brasil, essas ideias foram sistematizadas e adaptadas pela deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), que organizou o livro Não existe cristã feminista, publicado em editora própria. A obra reúne textos de autoras evangélicas e católicas que defendem a incompatibilidade entre Cristianismo e feminismo, argumentando que a igualdade de gênero seria uma distorção ideológica moderna.

Essas referências religiosas, políticas e literárias formam uma espécie de “biblioteca moral” do antifeminismo cristão: um conjunto de símbolos usados para legitimar a rejeição ao feminismo contemporâneo e propor uma “feminilidade virtuosa” baseada na submissão, na maternidade e na obediência à vontade divina.

Como o discurso antifeminista é apresentado

O antifeminismo cristão combina linguagem religiosa, moral e conspiratória em um mesmo pacote narrativo. De acordo com os estudos de Fernanda Lira e Fabiana Moraes, nas redes sociais digitais, as participantes deste movimento falam sobre fé, relacionamentos e maternidade, mas com um pano de fundo ideológico que associa o feminismo à corrupção espiritual e ao declínio moral da sociedade. As pesquisadoras indicam as características a seguir. 

Imagem: Cursology (Clube Antifeminista)

1. A leitura literal da Bíblia

Grande parte das influenciadoras antifeministas baseia-se em uma interpretação literal do livro de Gênesis, que descreve Eva como auxiliadora de Adão. A partir daí, defendem o chamado complementarismo, doutrina segundo a qual homens e mulheres têm papéis distintos e divinamente ordenados – o homem como líder e provedor; a mulher como submissa e cuidadora. Essa leitura serve de base teológica para rejeitar o feminismo e tratá-lo como “rebelião contra Deus”.

2. A batalha espiritual

Outro elemento central é a ideia de que existe uma guerra espiritual entre o bem e o mal, na qual o feminismo, a ideologia de gênero e o “marxismo cultural” seriam armas do inimigo da fé (Satanás e seu séquito). Essa narrativa ressignifica debates políticos e sociais em termos religiosos, apresentando o feminismo não como um movimento histórico, mas como uma força demoníaca que ameaça destruir a família e a fé cristã.

3. O enquadramento conspiratório

Imagem: Monark Talks/YouTube

As antifeministas frequentemente utilizam rótulos como ideologia de gênero, marxismo cultural e agenda woke para simplificar fenômenos complexos e enquadrá-los como parte de uma suposta conspiração global contra os valores cristãos. Esses termos funcionam como atalhos discursivos, facilmente reconhecíveis por públicos conservadores, e permitem que o discurso religioso dialogue com o vocabulário político da nova direita.

4. A promessa de sentido e pertencimento

Apesar do tom combativo, o antifeminismo cristão também se apresenta como proposta de conforto emocional e espiritual. Ele oferece às mulheres uma identidade clara de esposa, mãe e cuidadora em um mundo percebido como confuso e moralmente instável. Essa “promessa de propósito” é um dos fatores que explicam sua forte adesão entre jovens cristãs que buscam segurança e pertencimento.

Imagem: Amanda e Marcelo Família Virtuosa/Youtube

Em síntese, de acordo com os estudos de Lira e Moraes, o discurso antifeminista cristão combina fé, medo e marketing: defende uma visão tradicional da mulher, denuncia inimigos invisíveis e oferece produtos, cursos e comunidades que reforçam a mesma mensagem. Trata-se de uma retórica de salvação espiritual que também opera como estratégia de influência e monetização.

Onde e como opera o movimento antifeminista cristão

O antifeminismo cristão no Brasil funciona como um ecossistema digital e presencial bem articulado, que combina redes sociais, comunidades fechadas, eventos religiosos e produtos comerciais. 

1. Plataformas e formatos

Instagram, YouTube, TikTok e podcasts são as principais ferramentas de propagação. O conteúdo é cuidadosamente produzido — fotos com estética “clean”, vídeos com fundo branco e legendas em tons suaves, trilhas sonoras devocionais e mensagens curtas. A forma leve e acolhedora contrasta com o conteúdo ideológico, que muitas vezes associa feminismo a pecado, desobediência e destruição da família.

Os reels e vídeos curtos são os formatos mais utilizados: frases de impacto (“a mulher moderna perdeu o encanto”), leituras de versículos, e pequenas “aulas” sobre submissão e propósito. Muitas influenciadoras também mantêm podcasts semanais sobre temas como namoro, casamento e maternidade, sempre em tom pastoral e confessional.

2. Comunidades fechadas e clubes

Além das redes abertas, essas influenciadoras cultivam um sistema de pertencimento fechado, com grupos pagos no Telegram, aplicativos próprios ou plataformas de cursos. Os clubes como o Clube Antifeminista, criado por Ana Campagnolo, oferecem acesso a aulas, encontros e materiais exclusivos, mediante assinaturas mensais. Esse modelo cria uma comunidade fiel, em que o engajamento religioso e político se mistura a laços afetivos e espirituais.

3. Eventos presenciais

Congressos, retiros e encontros presenciais consolidam a experiência comunitária. Um exemplo emblemático foi o 1º Congresso Antifeminista de Santa Catarina, sediado na Assembleia Legislativa em 2024, com palestras de influenciadoras, políticos e líderes religiosos. Também são comuns eventos menores — como cafés e “chás de virtude” — voltados à celebração da maternidade e à reafirmação dos papéis de gênero.

Fonte: Agência AL (Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina)

4. Monetização e produtos

Por trás da retórica espiritual, há uma estrutura profissional de monetização. A venda de livros, cursos, consultorias matrimoniais e objetos religiosos financia o movimento e reforça sua sustentabilidade. A Livraria Campagnolo, por exemplo, funciona como eixo comercial, reunindo publicações sobre feminilidade, casamento e política cristã. Outras criadoras vendem roupas “modestas”, bíblias personalizadas e planners espirituais.

Esse sistema transforma o antifeminismo cristão em um mercado religioso de nicho, no qual a fé é convertida em produto e o engajamento político se disfarça de devoção.

Impactos e críticas

O crescimento do antifeminismo cristão no Brasil tem impactos que ultrapassam o campo religioso. O movimento atua simultaneamente na esfera simbólica, econômica e política, moldando comportamentos e narrativas que influenciam desde o voto até o cotidiano das igrejas.

1. Reforço de desigualdades e retrocessos de direitos

Ao propagar uma visão de gênero baseada na submissão feminina e na liderança masculina, o antifeminismo cristão reproduz desigualdades estruturais e deslegitima pautas históricas do movimento de mulheres — como o combate à violência doméstica, o acesso à educação e a igualdade de oportunidades no trabalho e na política. A pesquisadora Julia dos Anjos aponta que, sob o discurso de “valores familiares”, o movimento contribui para normalizar a exclusão e silenciar mulheres que não se encaixam nesse modelo idealizado de feminilidade.

2. Hibridismo entre fé, política e economia

Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser, ouvida pelo Bereia, o antifeminismo cristão não é apenas uma reação moral ao feminismo, mas um sistema de poder e monetização que se legitima pela linguagem religiosa. A promessa de “propósito” e “virtude” vem acompanhada de cursos, livros e clubes pagos, transformando a devoção em produto e a submissão em estilo de vida. Essa economia simbólica é reforçada por influenciadoras e figuras políticas, como Ana Campagnolo, que utilizam sua autoridade religiosa para construir capital político.

3. Retórica conspiratória e desinformação

A pesquisadora em Comunicação, Política e Religiões e editora-geral do Bereia Magali Cunha, ouvida para esta matéria, observa que o sucesso dessas vozes está na estética emocional e na lógica algorítmica das redes, que privilegia conteúdos que despertam medo e identificação. Ao associar o feminismo a ideologias como marxismo cultural, woke ou ideologia de gênero, essas influenciadoras inserem a fé em uma narrativa de batalha espiritual, criando um senso de urgência e ameaça constante.
Essa retórica, semelhante à das guerras culturais importadas dos EUA, alimenta a polarização e favorece o engajamento por indignação, o que explica seu alto alcance nas plataformas digitais.

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O crescimento do antifeminismo cristão no Brasil parece transcender a mera disputa ideológica ou religiosa, configurando e dinamizando um complexo sistema de poder que opera nas esferas simbólica, econômica e política. Esta segunda parte da matéria mostrou que o impacto desse movimento fica evidente ao reforçar as desigualdades estruturais, minando as conquistas históricas do movimento de mulheres e contribuindo para a normalização da exclusão social.

Referências:

Antifeminismo no Instagram: como conservadores atribuem ao movimento feminista uma corrupção moral, artigo de Fernanda Kemilly Silva Lira e Fabiana Moraes

https://sistemas.intercom.org.br/pdf/submissao/nacional/17/07202024222318669c63060175b.pdf

Artigo. “As garras do feminismo”: discurso de ódio antifeminista no Facebook e o senso de urgência controlada: https://www.scielo.br/j/interc/a/HJWF8BGsZzKZ3TMLcVGQXXC/?format=html&lang=pt

Antifeminismo brasileiro: I Congresso Antifeminista do Brasil, Trabalho de Conclusão de Curso de Alexsandra Ferreira Aquino https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/22054/TCC%20-%20Alexsandra%20-%20Alexsandra%20Ferreira%20Aquino.pdf?sequence=1&isAllowed=y 

As quatro ondas do feminismo: lutas e conquistas, artigo de Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida. .https://www.researchgate.net/publication/354044281_AS_QUATRO_ONDAS_DO_FEMINISMO_LUTAS_E_CONQUISTAS 

Movimentos antifeministas e desinformação: uma análise dos discursos promovidos no Instagram, artigo de Maiara Silva e Girlaine Gomes https://www.researchgate.net/publication/362674562_Movimentos_antifeministas_e_desinformacao_uma_analise_dos_discursos_promovidos_no_Instagram

O movimento antifeminista cristão no Brasil: O que é, quem integra e como opera – parte 1

*Matéria atualizada 15/10/2025 para correção de redação.

Um novo movimento de mulheres cristãs vem crescendo nas redes sociais digitais brasileiras. Chamado de antifeminismo cristão, ele reúne influenciadoras, autoras e figuras políticas que utilizam a linguagem da fé para oferecer às mulheres um “propósito” de vida centrado na família, na submissão e na virtude, enquanto atacam pautas feministas que denominam ideologia de gênero ou agenda woke.

Essas vozes têm presença marcante em redes sociais, podcasts, cursos on-line e congressos presenciais, e formam uma comunidade numerosa de seguidoras que se identificam com uma estética de pureza, maternidade e devoção. Porém, o movimento também se consolidou como mercado religioso e político: há venda de livros, clubes de assinatura, palestras, doações e eventos que movimentam milhares de reais.

Bereia buscou informações sobre esta nova dinâmica sociorreligiosa, uma vez que as mulheres são a grande maioria das participantes de igrejas e grupos cristãos no Brasil. 

O que é o feminismo, alvo de antifeministas?

O feminismo é um movimento social e político, iniciado a partir do século 18, na Europa, com as pautas da Revolução Francesa e os ideais do Iluminismo, que busca a igualdade de direitos entre homens e mulheres e a garantia da inclusão das mulheres nas dinâmicas socioculturais, econômicas e políticas.

As pesquisadoras Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida, explicam que o feminismo se desenvolveu em quatro grandes ondas históricas, que vão das lutas pelo direito ao voto, no século 19 (sufrágio universal), às mobilizações digitais contemporâneas em defesa da igualdade de gênero.

  • Primeira onda (final do séc. 19 – início do 20): concentrada na conquista de direitos civis e políticos, especialmente o direito ao voto.
  • Segunda onda (décadas de 1960–1980): ampliou a pauta para o direito ao corpo, ao prazer, ao trabalho e à autonomia, questionando papéis sociais e desigualdades.
  • Terceira onda (anos 1990): incorporou o debate sobre diversidade e interseccionalidade (raça, classe e sexualidade), incluindo o feminismo negro.
  • Quarta onda (anos 2010 em diante): marcada pela ação digital e coletiva, com movimentos como #MeToo e #EleNão, que denunciam abusos e a cultura da violência.

Cada uma dessas fases teve impacto concreto na vida das mulheres de diferentes partes do mundo, ampliando o acesso à educação, à saúde, ao mercado de trabalho e à política. Também nas religiões o efeito do movimento feminista abriu caminhos, como o reconhecimento de lideranças femininas, a ordenação de pastoras nas igrejas evangélicas e o desenvolvimento de teologias inclusivas, como a Teologia Feminista. 

O que o antifeminismo combate?

Nos discursos de influenciadoras cristãs conservadoras, este percurso histórico e político aqui descrito é apagado. Como objeto de divergência, o feminismo é reduzido a uma caricatura e, de forma distorcida, é apresentado como uma doutrina de ódio aos homens ou de destruição da família.
Essa distorção transforma um movimento por igualdade em uma ameaça moral e espiritual, e é a partir dessa inversão que o discurso antifeminista se consolida nas redes e nos púlpitos.

Como as pesquisadoras Mayara Paula Atanásio Soares da Silva e Girlaine Pergentino Gomes mostram, essa estratégia discursiva é recorrente nas redes sociais. Influenciadoras e grupos antifeministas utilizam o Instagram, por exemplo, para “refutar e satirizar os ideais do movimento feminista, propagando a ideia de que o feminismo seria uma das maiores ameaças à civilização contemporânea”.

Fonte: Pietra Bertolazzi (Perfil do Instagram)

O antifeminismo cristão

Esta postura em ambientes cristãos define um conjunto de discursos e práticas que se opõem ao feminismo a partir de uma moldura teológica e moral. As antifeministas cristãs afirmam que o movimento feminista teria afastado as mulheres de seu papel “natural”, que seria cuidar do lar e submeter-se ao marido. Propagam ainda que a verdadeira liberdade feminina estaria em aceitar o modelo bíblico de complementaridade entre os gêneros.

Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser, ouvida pelo Bereia, o fenômeno combina três dimensões principais:

  1. Interpretação bíblica literalista – toma o Gênesis como fundamento da diferença hierárquica entre homem e mulher.
  2. Retórica conspiracionista – marcada pela ideia de “batalha espiritual” contra o feminismo, o marxismo cultural e a ideologia woke.
  3. Nacionalismo moral – mistura fé cristã e identidade nacional para defender uma sociedade pautada em “valores familiares”, algo próximo do que estudiosas chamam de feminacionalismo.

O antifeminismo cristão, portanto, não é apenas um debate teológico, mas uma estratégia de comunicação e mobilização política. Ele atua em múltiplos campos – religioso, digital e legislativo – e se estrutura como rede de influência e monetização, pois as controvérsias que o tema oferece gera muito engajamento financiado nas plataformas digitais.

Pietra Bertolazzi: uma voz destacada do movimento antifeminista cristão

Em 2019, Pietra Bertolazzi ganhou notoriedade ao publicar críticas ao feminismo, enquanto ocupava um cargo no Fundo Social de São Paulo. As declarações resultaram em sua exoneração, mas também lhe deram visibilidade – a partir dali, Pietra passou a atuar como influenciadora conservadora católica.

Como ocorre com outras figuras da nova direita digital, Bertolazzi transformou a controvérsia em plataforma.  Utilizando a linguagem das redes – frases de impacto, estética devocional e hashtags –, ela apostou em pânico moral e desinformação para conquistar e engajar seguidores. Os conteúdos que a influenciadora publica tratam de temas como antifeminismo, aborto, “ideologia de gênero” e masculinidade, frequentemente com uso de dados distorcidos ou comparações enganosas.

Fonte: Pietra Bertolazzi (Perfil do Instagram)

O discurso de Pietra Bertolazzi  se apoia em três pilares principais: pânico moral, inversão de papéis e linguagem emocional. Estes elementos transformam debates de temas complexos em mensagens curtas, virais e moralmente impactantes.

1. O pânico moral como motor de engajamento
Bertolazzi recorre à ideia de que o feminismo seria uma ameaça à família e à fé cristã. Frases como “o feminismo é hipócrita” ou “se cada um tem o seu feminismo, então ele não existe” simplificam debates e criam o que estudiosos chamam de pânico moral – o medo coletivo de uma degeneração social.

2. A inversão de papéis: de opressores a oprimidos
Outra tática recorrente é a inversão discursiva: a influenciadora afirma que os homens seriam as verdadeiras vítimas da sociedade moderna. Ao compartilhar postagens como a que sugere que “quase o dobro de homens são mortos por violência doméstica”, sem oferecer dados científicos (desinformação), ela inverte a lógica da desigualdade de gênero, transformando o agressor em vítima e o feminismo em vilão.

3. A linguagem emocional e a estética da virtude
Com vídeos bem iluminados, tom confessional e hashtags como #antifeminismo e #propósito, Pietra Bertolazzi  se apresenta como uma mulher “autêntica” e piedosa. A mensagem central é simples: ser submissa é uma forma de poder, e o verdadeiro empoderamento feminino está em “retomar o propósito divino da mulher”.

4. Um produto de fé e controvérsia
Pietra Bertolazzi transformou a polêmica em capital simbólico. Suas falas circulam em podcasts, eventos religiosos e colunas de opinião, sempre mobilizando a mesma fórmula: medo, moralidade e marketing. A retórica antifeminista, travestida de espiritualidade, se tornou um produto lucrativo, uma vez que promete respostas simples para dilemas complexos e reforça identidades religiosas em tempos de incerteza.

O caso de Pietra Bertolazzi ajuda a compreender como o antifeminismo cristão se tornou uma força discursiva nas redes.  Ela representa o ponto de partida de uma geração de influenciadoras e políticas que transformaram fé e polêmica em modelo de engajamento e negócio.

A partir de exemplos como o dela, é possível identificar uma rede de mulheres conservadoras que atua em múltiplas frentes, da devoção doméstica à política institucional, todas unidas pela rejeição ao feminismo e pela defesa de um ideal de mulher “virtuosa” e “submissa”.

Outras vozes do movimento

Mariana Brito Garschagen: a estética católica da virtude
Entre as mais conhecidas vozes católicas do movimento, Mariana Brito combina linguagem litúrgica e estética de lifestyle. Em seus vídeos, fala sobre vestimenta, namoro e papel da mulher “segundo Deus”, contrapondo a “modéstia cristã” à “libertinagem feminista”.

Amanda Buttchevits: o antifeminismo devocional
Também surgida do meio católico, a influenciadora mistura espiritualidade, moda e casamento cristão em um formato híbrido de influência religiosa e marketing de estilo de vida. Seu discurso reforça o complementarismo e propõe uma “feminilidade restaurada” como resposta às “dores da mulher moderna”.

Ana Campagnolo: da influência à política
Na vertente evangélica e institucional, Ana Campagnolo é o elo mais articulado da rede.  Deputada estadual em Santa Catarina pelo Partido Liberal (PL), autora de livros e criadora do Clube Antifeminista, Campagnolo, membro da igreja Presbiteriana, funciona como intelectual orgânica do movimento, traduzindo a pauta moral em projeto político.

Uma frente digital e moral unificada

Juntas, estas mulheres constroem uma rede antifeminista cristã que articula seguidoras e seguidores entre a internet, o púlpito e a política. Elas compartilham conteúdos, citam umas às outras e se apresentam como porta-vozes da “verdadeira mulher cristã”, usando o feminismo como inimigo central.  O que as une é o mesmo tripé retórico que tornou Pietra Bertolazzi viral: pânico moral, apelo religioso e marketing da virtude.

📍 Na segunda parte desta matéria, Bereia mostra como essa rede opera: as bases teológicas, os modelos de monetização e os impactos sobre direitos e políticas públicas para as mulheres.


Referências:

Antifeminismo no Instagram: como conservadores atribuem ao movimento feminista uma corrupção moral, artigo de Fernanda Kemilly Silva Lira e Fabiana Moraes

https://sistemas.intercom.org.br/pdf/submissao/nacional/17/07202024222318669c63060175b.pdf

Artigo. “As garras do feminismo”: discurso de ódio antifeminista no Facebook e o senso de urgência controlada: https://www.scielo.br/j/interc/a/HJWF8BGsZzKZ3TMLcVGQXXC/?format=html&lang=pt

Antifeminismo brasileiro: I Congresso Antifeminista do Brasil, Trabalho de Conclusão de Curso de Alexsandra Ferreira Aquino https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/22054/TCC%20-%20Alexsandra%20-%20Alexsandra%20Ferreira%20Aquino.pdf?sequence=1&isAllowed=y 

As quatro ondas do feminismo: lutas e conquistas, artigo de Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida. .https://www.researchgate.net/publication/354044281_AS_QUATRO_ONDAS_DO_FEMINISMO_LUTAS_E_CONQUISTAS 

Movimentos antifeministas e desinformação: uma análise dos discursos promovidos no Instagram, artigo de Maiara Silva e Girlaine Gomes https://www.researchgate.net/publication/362674562_Movimentos_antifeministas_e_desinformacao_uma_analise_dos_discursos_promovidos_no_Instagram 

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/o-que-e-woke-e-por-que-o-termo-virou-alvo-de-disputas-politicas-e-religiosas/

https://coletivobereia.com.br/o-que-e-panico-moral-bereia-explica/

https://coletivobereia.com.br/panico-moral-sobre-ideologia-de-genero-aborto-erotizacao-de-criancas-e-defesa-da-familia-e-usado-para-disputa-eleitoral-com-base-em-desinformacao/

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-uma-estrategia-discursiva/

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