Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina: uma questão de ascensão ou de tolerância?

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Manuela Ribeiro Cirigliano

Para iniciar esta crônica, é preciso destacar que todas as participações do seminário foram norteadas por três perguntas previamente informadas pela organização do evento: 1.Que fatores, em geral, considera relevantes que expliquem a ascensão das direitas religiosas e cristãs na América Latina?; 2.Como se articulam e/ou são desarticuladas essas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social? 3.Qual é o lugar da ideologia de gênero no cenário (neo) conservador?

Um seminário como este, orientado por questões-chave, tem o poder de recalibrar a bússola que utilizamos na busca por compreender o contexto analisado. Geralmente, perguntas de pesquisa não se satisfazem com as respostas que recebem. Atravessadas pelas ponderações de cada participante, as perguntas respondidas se reformulam e mostram novos caminhos. Em outras palavras, em um seminário como este, recebemos algumas respostas que, em pouco tempo, ganham a forma de novas perguntas. 

Minha proposta nesta crônica é apresentar algumas das perguntas que levei comigo após o primeiro dia do seminário. Mais especificamente, aquelas que foram mediadas pelo pensamento da feminista espanhola Maria-Milagros Garretas sobre democracia e tolerância. Suas palavras me acompanharam até o final do evento a partir do momento em que uma fala de Juan Marco Vaggione me levou ao seu resgate. 

A fala de Juan Marco que me levou de volta às palavras de María-Milagros Rivera Garretas foi sobre a ideia de que a direita religiosa estaria em ascensão. Esta afirmação foi questionada ao longo do seminário, não no sentido de negar a ocupação de importantes espaços de poder por esse ecumenismo neoconservador no momento atual, mas de destacar como “la derecha política siempre ha tenido impacto, sacando la palabra ascenso, sobre las formas del Estado y la forma de gobierno”, como afirmou Vaggione em relação ao contexto argentino.

Essa reflexão de Vaggione me remeteu à seguinte formulação de Garretas: 

La tolerancia es una idea que se asocia con justicia, con progreso y, paradójicamente, con democracia. Asociar tolerancia con democracia es una paradoja porque, si se forma parte de la mayoría, es superflua la tolerancia; y, si se forma parte de las minorías, tambíen, ya que las dos son imprescindibles para que exista ese sistema político. Pero es que, en realidad, la tolerancia se aplica a quienes no deberían participar nunca en el juego democrático de fuerzas; se aplica a quienes, por marcar los límites de esse juego, resultan uma excrecencia que inquieta y estorba: uma prueba a superar con dignidade, como se suele decir (GARRETAS, 2002, p. 99). 

Pois bem, a ascensão é colocada em xeque pela constatação de que a ocupação desses espaços de poder pelas direitas é mais regra que exceção. Vaggione nos recorda que os movimentos feminista e LGBTQI+ tiveram um grande impacto na sociedade, alçando sua influência o âmbito da formulação das políticas públicas. Sob esse prisma, observa-se que, se há uma ascensão recente, é a das vozes dissidentes oriundas desses movimentos sociais. Uma ascensão geradora de transformações, uma ascensão que aparentemente ultrapassou os limites do que era tolerável e que agora precisa ser contida, relembrada de que “no deberían participar nunca en el juego democrático de forzas” (GARRETAS, 2002, p. 99).

Sendo este o caso, pode-se dizer que alguns grupos da sociedade conseguiram atuar em um espaço público pouco aberto à sua participação e obtiverem importantes avanços para suas pautas. A tolerância, inclusive por parte dessa direita religiosa (que não ascendeu porque sempre esteve ligada ao poder), pode ter sido decisiva para que esses grupos tenham tido a possibilidade de movimentar-se nesta arena? 

 Parto do princípio que sim e por isso, inverto o eixo da primeira pergunta norteadora do seminário (Que fatores, em geral, considera relevantes que expliquem a ascensão das direitas religiosas e cristãs na América Latina?). Se houve uma ascensão, mas ela é de movimentos sociais como o feminista e o LGBTQI+, questiono qual o papel de quem “marca os limites do jogo” (como define Garretas) nessa ascensão.  Em outras palavras, a ascensão das pautas dos movimentos feminista e LGBTQI+ faz parte do jogo de força e aconteceu até onde quem marca os limites do jogo pretendia permitir? Suplantou a capacidade de controle e extrapolou os limites previamente pretendidos? Ou reposicionou os limites que definiam o que era a “excrecência, que inquieta e estorba” (GARRETAS, 2002, p. 99)?

Os questionamentos acima apresentados, no entanto, têm limitações explicitadas pela segunda pergunta norteadora do seminário e pelas reflexões trazidas por cada participante em relação a ela (Como se articulam e/ou são desarticuladas essas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social?). Afinal, as fronteiras da tolerância não são uma unanimidade e tampouco aqueles que marcam os limites do jogo possuem esse título de forma oficial. O denominado campo conservador religioso é heterogêneo – como apontado por Sandra Mazo durante sua fala no evento – e é apenas uma parte de seus atores que se alinha em torno do combate à “ideologia de gênero”. Além disso, cada qual o faz com propósitos próprios que guardam tensões entre si.

Essas tensões foram recorrentemente trazidas ao longo do seminário como um importante elemento de análise e revelam que não há homogeneidade no campo alinhado pelo combate à “ideologia de gênero”. Tampouco esse conjunto representa plenamente as comunidades religiosas ou a direita política, por exemplo, pois como nos lembra Garretas, deter o poder de decidir o que é tolerável é particularmente relevante na disputa de forças:

La tolerancia indica quién puede más, es propia de uma ideologia, de uma manera de ver y estar en el mundo, fundada en la fuerza, fundadas en las correlaciones de fuerzas que se vigilan entre sí (GARRETAS, 2002, p. 99). 

Assim, é possível presumir que este grupo – que assume a “ideologia de gênero” como um inimigo comum – vem travando algumas lutas concomitantes: 1. contra a “ideologia de gênero” em si; 2. para estar em uma posição dominante em relação a seus atuais aliados quando o inimigo comum for derrotado; 3. pela liderança dos seus setores de origem, contra aqueles que não aderem à ideia de que a “ideologia de gênero” é um inimigo comum.

Cabe observar, ainda, que importantes atores podem estar localizados no campo religioso, mas não se restringem a ele. A natureza conflitante das relações desse segmento organizado em torno da luta contra a “ideologia de gênero” com o capitalismo e o neoliberalismo, por exemplo, foi recorrentemente apontada ao longo do seminário. Essa contradição não é de todo surpreendente se notarmos que o ambiente de medo promovido pelas campanhas anti-gênero alimenta o neoliberalismo, como destacado por Sandra Mazo durante o seminário. 

Por outro lado, a apropriação das pautas feministas pela lógica de mercado também não é um fenômeno recente. Para Nancy Fraser (2019), por exemplo, as pautas  articuladas pelo movimento feminista durante a segunda onda em torno da crítica ao capitalismo sofreram uma forte desarticulação que culminou na transformação das demandas e anseios das mulheres em fomentadores do próprio capitalismo: 

[…] o entrelaçamento, na crítica ao capitalismo  androcêntrico  organizado  pelo  Estado,  de  três  dimensões  analiticamente distintas  de  injustiça  de  gênero:  a  econômica,  a  cultural  e  a  política.  […] Separadas umas das outras, assim como da crítica social que as tinha  integrado, as  expectativas da  segunda  foram recrutadas a serviço de um projeto que estava profundamente em conflito com  a  nossa  ampla  visão holística de uma sociedade justa. Em um bom exemplo da astúcia da história, desejos utópicos encontraram segunda vida como correntes de sentimento que legitimaram a transição para uma nova forma de capitalismo: pós-fordista, transnacional e neoliberal (FRASER, 2019, p. 27-28).

O neoliberalismo, portanto, parece obter vantagens tanto das pautas feministas e LGBTQI+ como de seu combate pelos grupos anti-gênero. As respostas à segunda questão do seminário (Como se articulam e/ou são desarticuladas essas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social?) demonstraram ser relevante questionar: como diferentes atores envolvidos nessas batalhas concomitantes influenciam a articulação/desarticulação dessas direitas religiosas e cristãs no campo religioso, político, midiático e social?  Existem segmentos que têm interesse na permanência das pautas dos movimentos feministas e LGBTQI+ dentro dos limites do tolerável, apesar de não terem particular interesse nas pautas em si? Se sim, há particular ganho desses segmentos com as pautas dos movimentos feministas e LGBTQI+ ou seu real ganho advém da disputa e do engajamento em torno delas?

Nessa mesma linha de raciocínio, também a terceira pergunta produz novos questionamentos, pois, se a disputa entre as campanhas anti-gênero e os movimentos feminista e LGBTQI+ traz benefícios a alguns segmentos da sociedade, a conservação da existência de ambos os lados se revela necessária. Em outras palavras, pouco importa as pautas defendidas por quaisquer dos lados, elas precisam ser toleradas, o que nos leva de volta ao significado de poder tolerar. Nesse sentido, Garretas nos lembra que a tolerância tem relação estreita com a sociedade moderna capitalista:

Historicamente, em Europa, la tolerancia como medida última de convivência es propia de un modelo de relaciones sociales próprio de la edad moderna y, por tanto, de las formaciones capitalistas. […] El pensamento europeo, el pensamento racionalista de la Ilustración, fraguó entonces, passo a passo, um derecho pensado precisamente para enfrentarse com grandes diferencias. Este derecho fue perfilando em su centro um sujeto supuestamente neutro al que se le atribuyeron derechos individuales de todo tipo, derechos com los que poder defenderse de uma sociedade imaginada como peligrosa y hostil. Este sujeto necessitará tolerar a quien no sea igual que él, él que daba la medida de lo que habia que ser (GARRETAS, 2002, p. 102-103).

Se há interesse na conservação dessas pautas dentro dos limites do jogo por alguns de seus jogadores, o que está em disputa é o próprio poder de definir quem é o sujeito neutro e quem é o tolerado. Nesse caso, a terceira pergunta norteadora do seminário – Qual é o lugar da ideologia de gênero no cenário (neo) conservador?- ganha nova redação: qual o lugar da “ideologia de gênero” na disputa pelo poder de definir os limites do jogo democrático?

No breve relato acima, procurei demonstrar como as respostas oferecidas por cada participante do seminário Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina produziram, para mim, novos questionamentos ao serem relacionados ao pensamento da feminista María-Milagros Rivera Garretas. O poder simbólico atribuído pela tolerância pode estar desempenhando um importante papel nas disputas em torno das pautas feministas e LGBTQI+ na sociedade. Mais ainda, a legitimação das causas desses movimentos sociais pode estar no centro de uma queda de braço por esse poder simbólico da tolerância entre forças distintas, sem que haja um comprometimento direto de seus atores com o lado que tomam nessa causa.

Contra quem realmente lutam aqueles que combatem a ideologia de gênero? Penso ser indubitável que, para muitos, a luta contra a “ideologia de gênero” tem fins em si mesma, uma cruzada anti-gênero motivada pela percepção de que a expressão de diferentes subjetividades e sexualidades constitui, de fato, uma ameaça. Por outro lado, sua construção como um inimigo comum serve como uma estratégia de fomento de adesão à causa e também como uma ferramenta de mobilização de forças para outras disputas, inclusive pelo próprio poder de definir quem detém alguma força para ditar regras no jogo. 

Para além das tantas perguntas reformuladas, terminei o primeiro dia do seminário “Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina”, com uma pergunta que parece resumir as reflexões que realizei neste primeiro dia de seminário: é possível analisar as cruzadas anti-gênero na América Latina como um fenômeno único?

Referências

FRASER, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. IN: Hollanda, Heloísa B (org). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. 

GARRETAS, María-Milagros Rivera. El fraude de la igualdad. 2 ed. Buenos Aires: Librería de Mujeres, 2002. 

GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m0fG3Wbh1Dk&t=2670s >.

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Manuela Ribeiro Cirigliano é mestra em Ciência da Religião pela PUC-SP e integrante do GREPO.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a quinta de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de capa: Vaidape.com.br

Mentes e corações: estratégias das narrativas neoconservadoras no Brasil

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Eliane Brito

Quando observamos a construção das narrativas neoconservadoras – aquelas que respondem ao fenômeno atual, observado em democracias de vários países, caracterizado por uma ideologia conservadora, por alianças entre atores diversos (religiosos ou não), pela juridificação da moralidade e pela defesa do capitalismo mediante sua relação com o neoliberalismo – na América Latina, especialmente no Brasil, algumas características se destacam, tais como a utilização de emoções como ativo político, a atribuição de todas as mazelas sociais à desordem moral e a rápida assimilação das novas tecnologias de informação, assim como das novas formas de mensagem.

A utilização das emoções para determinado fim não é algo inédito, principalmente no meio político, e tem sido matéria de estudo desde a Grécia Antiga. Embora tenham sido objeto das reflexões de Platão, é o livro II da Retórica de Aristóteles, que ficou conhecido como A Retórica das Paixões, aquele que sistematizaria de modo mais completo as paixões (páthe), elencando as mais comuns e os pré-requisitos necessários para que um retor obtivesse sucesso. Segundo o filósofo grego, paixões são “todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos” (Aristóteles, 2000). Se consideramos que o objetivo final da Retórica é a persuasão, um bom retor será aquele capaz de encontrar ou suscitar em seu público as paixões disponíveis. Esse pré-requisito da disponibilidade é muito importante, pois “um auditório só irá sentir determinada paixão (afeição) se estiver aberto, de acordo com sua predisposição cognitiva, a sentir aquela emoção” (Figueiredo, 2019).

Pensando no contexto brasileiro, principalmente a partir de 2013, é possível afirmar que houve uma conjuntura favorável para que as ideias neoconservadoras fossem disseminadas e absorvidas. A crise pela qual passávamos não era apenas social, provocada pelo capitalismo neoliberal, mas também institucional. Com a espetacularização, pela mídia convencional, por meio da extensa cobertura da operação Lava Jato, a descrença com a política, com os “políticos profissionais” e com a própria democracia atingia o ápice. Além disso, a conquista de direitos por parte das minorias culminaria em uma reação por parte das classes altas, médias e também de milhões de desempregados que não se viam beneficiados por ações afirmativas e políticas voltadas aos direitos dos grupos minorizados. Por fim, mas não menos importante, a presença cada vez maior de atores religiosos na arena política representava um aumento das pautas morais, o que seria responsável pelo recrudescimento dos valores conservadores no espaço público.

É justamente como uma reação que o neoconservadorismo religioso se apresenta. Uma resposta a tudo aquilo que culpa pela desordem social.

Protesto pró-impeachment de DIlma Rousseff. Foto: Bruno Peres/Esp CB

Durante o Seminário (GREPO, 2021), duas falas evidenciaram quais atores políticos melhor perceberam as paixões disponíveis e como se utilizar delas. O sociólogo Juan Marco Vaggione destacou, como um dos fatores importantes para o crescimento do neoconservadorismo na América Latina, “a crescente e forte insatisfação com a política que, mesmo em alguns países, é insatisfação com a democracia” e que essa “construção de uma cidadania antipolítica foi facilmente cooptada pelos setores da direita, religiosa ou não”. A cientista política Flávia Biroli, por sua vez, ao tomar como parâmetro o Brasil, considerou “muito efetiva politicamente a mobilização de narrativas sobre uma certa correspondência entre ordem social e ordem moral desejável (…) em que se conectam temas que seriam muito apartados, não fosse o modo como a direita religiosa (…), situada numa relação com a extrema-direita no poder, conecta esses temas”. De sua fala também é possível recuperar a noção de “moralização das inseguranças”. Tal conceito, para ela, é “uma chave para o neoliberalismo como política”, pois

O apelo a inseguranças reais se faz no interior de um enquadramento no qual o suporte possível é o da família nuclear, heterossexual, responsável pelos seus (…) O problema, nas narrativas neoconservadoras, seria de ordem moral. Melhor dizendo, o desvio e a captura do tradicionalismo levariam à insegurança, à falta de referências, ao caos. (…) A família cristã seria o contraponto à corrupção moral – o que incluiria a moral sexual e a captura de bens públicos por políticos e empresários (Biroli; Machado; Vaggione, 2020).

Se a natureza do problema é moral, então, em nome de Deus, da Pátria e da Família, tudo é permitido para restaurar a ordem. A plataforma deixa de ser exclusivamente política e mais se assemelha a uma agenda de costumes. Portanto, a guerra é ideológica. Propõe-se, então, uma verdadeira cruzada contra fantasmas do passado (comunismo/marxismo cultural), contra ameaças vagas (ideologia de gênero), contra os direitos sociais e os direitos humanos; enfim, contra todos os inimigos que devem ser aniquilados. O discurso do bem contra o mal é expresso pela separação “nós” versus “eles”. Não à toa, temos o frequente uso da categoria “cidadão de bem” na retórica do neoconservadorismo. A não pertença a esse grupo define o “outro”, o adversário. A polarização é estimulada e não se governa para todos, e sim para aqueles que lhe são iguais, pois “(…) o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos” (Empoli, 2019).

Recorrendo novamente a Aristóteles, podemos dizer que, à disponibilidade do auditório, une-se à identificação com o orador. Antes mesmo de se eleger, em 2018, o candidato à presidência da extrema direita, Jair Messias Bolsonaro, construiu uma figura anti-establishment, antissistema. Ainda que Bolsonaro fosse um político profissional, associou sua imagem à patente do exército, acionando no imaginário popular o saudosismo de um período próspero – que na verdade nunca existiu –, quando os militares estiveram no poder (1964-1980). Também rechaçou a velha política e se colocou “acima de qualquer suspeita”, por nunca ter se envolvido em nenhum episódio de corrupção. Quando se declarou contrário à “ditadura do politicamente correto”, desfilando inúmeras falas repletas de misoginia, homofobia, racismo e xenofobia, foi elogiado como alguém que “não tinha medo de dizer a verdade”. Quando levantou a bandeira contra a “ideologia de gênero”, apresentando-se como alguém a favor da família tradicional, acenou para os valores tradicionais cristãos. Assumiu, assim, a postura de “salvador da pátria”, de única pessoa capaz de livrar o Brasil da ameaça comunista. O “mito” foi construído sob os signos da austeridade, da honestidade e da moralidade. Seu maior feito, no entanto, foi passar a imagem de homem comum com o qual a maioria de seus eleitores se identificaram.

É preciso pontuar, também, que as redes sociais contribuíram de forma decisiva para a ascensão da extrema direita no Brasil. Se o que ficou conhecido por Jornadas de Junho, em 2013, foi a primeira demonstração do poder da internet, ao contribuir para a realização de manifestações apartidárias, não é erro afirmar que foram os atores neoconservadores que melhor souberam observar este fenômeno e posteriormente se aproveitar não apenas do alcance desta tecnologia, como também das novas formas de comunicação, tais como mensagens curtas, imagens e hashtags. O maior entendimento sobre as formas de mobilizar opiniões e criar engajamento também reforçou a imagem anteriormente criada de seu candidato à presidência – a de homem comum e mais acessível – ao parecer “mais próximo” de seus eleitores. O mais importante, porém, foi a rápida disseminação das mensagens com conteúdos falsos, errados ou duvidosos, que além de desinformar, conseguiram aumentar o clima de insegurança e acirrar ainda mais a polarização, por meio dos discursos de ódio; algo que o sociólogo Roberto Romano definiu como “a tecnologia a serviço da boçalidade” (Facchin; Machado, 2018). O uso de robôs e o disparo de mensagens em massa, seguindo o modelo norte-americano, tiveram um impacto inédito nas eleições de 2018.

A vitória do neoconservadorismo religioso no Brasil foi a da narrativa mais bem aceita, pois, a maioria das estratégias cumpriu as regras do jogo democrático. Uma política que flerta com o autoritarismo e com a violência angariou milhões de votos travestida de revolução, de mudança, quando, na verdade, representava uma série de retrocessos, a busca de refazer os abalos provocados à hierarquia tradicional.

Apelar às emoções perceptíveis na sociedade não é proibido, tampouco uma novidade. Se anteriormente o chamamento da esquerda foi à esperança, a extrema direita apostou nos ressentimentos e nas inseguranças, potencializando-os ao máximo e suscitando outras paixões igualmente poderosas como ativos políticos, tais como o medo e o ódio. Afinal, como já nos alertava o sociólogo espanhol Manuel Castells, “torturar corpos é menos eficaz do que moldar mentalidades” (Castells, 2013) e, como foi percebido pelo cientista político Henrique Costa, durante as primeiras análises da eleição de 2018, “[a] extrema direita, antes de ganhar o parlamento, ganhou corações e mentes e espalhou sua mensagem para todos os cantos do país” (Facchin; Machado, 2018).

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Eliane Brito é bacharel e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o Grupo de Pesquisa Gênero, Religião e Política – GREPO, sediado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Protesto pró-impeachment de DIlma Rousseff. Por: Bruno Peres/Esp CB

Retorno ao Conselho de Segurança da ONU não significa reconhecimento positivo da política externa brasileira

Na sexta-feira,11 de junho, o Brasil voltou a participar como membro não-permanente do Conselho de Segurança das Organizações das Nações Unidas (ONU).  A ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, do atual governo, Damares Alves, se pronunciou no Twitter comentando matéria do jornal O Globo sobre o tema:

Imagem: reprodução de Twitter

A ministra escreveu de forma positiva, dando a entender que a eleição do Brasil para o Conselho foi um reconhecimento de uma atuação do governo atual, em vista dos outros países e da ONU. É a 11ª vez que o Brasil participa do Conselho de Segurança, e a segunda que conquista uma vaga de forma rotativa. A última foi entre 2004 e 2005, durante o governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. 

O embaixador do Brasil na ONU Ronaldo Costa Filho  se pronunciou pelo perfil da ONU News Português no Twitter sobre a vitória do país com 181 votos na eleição. “Será o seu 11° mandato representando demonstração inequívoca no Brasil da confiança que a comunidade internacional deposita no Brasil para contribuir de maneira ativa e construtiva ao objetivo da paz e da segurança internacional”, diz Costa Filho.

O que é o Conselho de Segurança da ONU?

Conforme consta no site oficial da ONU, “O Conselho de Segurança é o principal responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais. Tem 15 membros, e cada membro tem um voto. De acordo com a Carta das Nações Unidas, todos os Estados Membros são obrigados a cumprir as decisões do Conselho.”

Quanto às suas funções, “o Conselho de Segurança assume a liderança na determinação da existência de uma ameaça à paz ou ato de agressão. Convida as partes em uma controvérsia a resolvê-la por meios pacíficos e recomenda métodos de ajuste ou termos de solução. Em alguns casos, o Conselho de Segurança pode recorrer à imposição de sanções ou mesmo autorizar o uso da força para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais”.

Os cinco países com assentos permanentes são: EUA, Rússia, França, Grã-Bretanha e China. Os dez membros restantes são classificados como não-permanentes (ou rotativos), e sua composição atende os seguintes critérios: cinco vagas para África e Ásia; uma para o Leste Europeu; duas para a América Latina e Caribe; e duas para Europa Ocidental e outros Estados. Ou seja, os membros não-permanentes são alterados permitindo a participação, em algum momento, de todos os países-membros da ONU no Conselho.

O que significa o Brasil fazer parte do Conselho?

Bereia entrou em contato com a Dra. em Ciência Política e professora no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro   (IESP-UERJ) Maria Regina Soares de Lima,  que explicou que “estas votações se baseiam em negociações prévias entre países, grupo latino-americano ou grupo africano, etc, que votam em países e não em governos”. Na avaliação da Dra. Maria Regina Lima, “o governo brasileiro está se aproveitando destes resultados  que não refletem de modo algum, uma avaliação da ONU sobre ele”.

Postura dúbia do governo com a ONU e instituições como a OMS

Apesar da ministra Damares Alves e do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) saudarem de forma positiva a eleição para o Conselho de Segurança, o governo atual do Brasil tem uma relação dúbia com a ONU e suas instituições temáticas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O presidente já acusou a ONU de ter interesses na internacionalização da Amazônia desde a sua fundação. Também insinuou que a OMS teria viés ideológico e cogitou a saída do Brasil do órgão, além de contestar diversas orientações no combate à pandemia. A mais recente quanto ao uso de máscaras, reafirmada pela OMS em seguida

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que acompanhava missões do Itamaraty e foi presidente da Comissão de Relações Externas da Câmara, já comparou de forma pejorativa a ONU à Ordem dos Advogados do Brasil, afirmando que ambas defendem terroristas. O deputado também afirmou que a instituição tem sido usada por grupos minoritários para forçar legislações contrariando a soberania dos países.

Não fica claro por que lideranças do governo apresentam a participação no Conselho de Segurança da ONU como positiva se em diversos momentos o mesmo governo desqualifica a instituição.

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Bereia, portanto, classifica o tuíte da ministra Damares Alves como enganoso. A declaração oferece conteúdos de substância verdadeira, mas a apresentação deles é desenvolvida para confundir, de forma descontextualizada, sem o detalhamento do protocolo que envolve a escolha, fazendo parecer que houve movimento preferencial pelo Brasil, em concorrência com outros países, por conta de avaliação positiva de seu governo. A propaganda se reforça enganosa quando se avalia a postura dúbia do governo brasileiro em relação à ONU. Representa desinformação e necessita de correções, substância e contextualização.

Referências de checagem:

Jovem Pan,

https://jovempan.com.br/noticias/mundo/brasil-volta-a-fazer-parte-do-conselho-de-seguranca-da-onu-apos-10-anos.html – Acesso em: 14 jun 2021.

Twitter ONU News Português,

https://twitter.com/ONUNews/status/1403396820827611143?s=20 – Acesso em: 14 jun 2021.

O Globo,

https://oglobo.globo.com/mundo/brasil-volta-ao-conselho-de-seguranca-da-onu-apos-10-anos-1-25056948 – Acesso em: 14 jun 2021. 

Organização das Nações Unidas,

https://unric.org/pt/quais-sao-os-membros-do-conselho-de-seguranca-da-onu-e-como-sao-eleitos/– Acesso em 16 jun 2021.

Organização das Nações Unidas (em Inglês),  

https://www.un.org/securitycouncil/– Acesso em: 16 jun 2021.

Terra,

https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/bolsonaro-comemora-vaga-em-conselho-de-seguranca-da-onu,af43cfaa73aabbcd07d8911d8e9a57d60e73cug5.html – Acesso em: 16 jun 2021

Twitter Jair Bolsonaro,

https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1178295663030886400 – Acesso em: 16 jun 2021.

Agência Brasil,

https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-06/bolsonaro-diz-que-brasil-pode-sair-da-oms – Acesso em: 16 jun 2021

Reuters,

https://www.reuters.com/article/politica-bolsonaro-mascaras-liberar-idLTAKCN2DM2OS – Acesso em: 16 jun 2021

UOL,

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/06/11/contradizendo-bolsonaro-oms-pede-que-vacinados-continuem-a-usar-mascara.htm – Acesso em: 16 jun 2021

Twitter Eduardo Bolsonaro,

https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1215176415059988480?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1215176415059988480%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_c10&ref_url=https%3A%2F%2Fnoticias.r7.com%2Fprisma%2Fr7-planalto%2Fno-twitter-eduardo-bolsonaro-compara-onu-a-oab-09012020 – Acesso em: 16 jun 2021

Estado de Minas,

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/10/11/interna_politica,1092181/com-presenca-de-eduardo-bolsonaro-evento-conservador-tem-criticas-a-o.shtml – Acesso em: 16 jun 2021

Câmara dos Deputados,

https://www.camara.leg.br/noticias/553393-EDUARDO-BOLSONARO-E-ELEITO-PRESIDENTE-DA-COMISSAO-DE-RELACOES-EXTERIORES – Acesso em: 16 jun 2021

Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/em-israel-ernesto-araujo-e-eduardo-bolsonaro-condenam-comparacao-entre-brasil-e-camara-de-gas.shtml – Acesso em: 16 jun 2021

“Ideologia de gênero”: estratégia discursiva e arma política

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Teresinha Ferreira Leite Matos

A “ideologia de gênero” é um inimigo criado pelo Vaticano? A “ideologia de gênero” é uma invenção? Ela deve ser objeto de análise mais aprofundada? A partir da pergunta “Qual o lugar da “ideologia de gênero” no cenário (neo) conservador?” foram suscitadas, durante o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina, essas e outras perguntas. O objetivo deste texto é localizar onde e quando o termo surgiu e que trajetórias foram traçadas em seu processo de disseminação.

“Ideologia de gênero” é uma “invenção” da Igreja Católica e faz parte da estratégia de negar os avanços dos movimentos feministas e LGBTQ+, explicitados no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e casamento igualitário. Parece que a “ideologia de gênero” se tornou um fenômeno em si e carece ser estudada mais profundamente. O constructo se traduz em estratégia discursiva considerada precária epistemologicamente, mas eficaz na formação da opinião pública (Lionço, 2020), e também com eficácia política, vide o presidente Jair Bolsonaro que foi eleito em 2018 usando, dentre outras bandeiras ultraconservadoras, o combate à “ideologia de gênero”.

A “ideologia de gênero” é vista como categoria conservadora produzida nos muros do Vaticano, durante os papados de João Paulo II e Bento XVI. Inventaram um “inimigo” com o propósito de restaurar a ordem moral calcada nos valores tradicionais, que imaginam ameaçada. Embora os conceitos por trás da ideia de “ideologia de gênero” sigam importantes no papado de Francisco, a maneira como suas falas reverberam na opinião pública traz complexidades para a análise.

Reprodução, Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp

O Padre Paulo Ricardo, considerado, segundo as pesquisas do GREPO, um mediador cultural para o tema que ajuda a disseminar o termo no Brasil, quando analisa a questão nunca cita o Papa Francisco, reforçando a personalidade ambígua do papa atual que se nega a abençoar os casais homossexuais, mas é reconhecido como progressista por boa parte da sociedade brasileira.

Os documentos da Igreja Católica do papado de Francisco não utilizam o termo “ideologia de gênero” em português, como aponta levantamento feito na pesquisa “Feminismo e religião: uma análise do pensamento do Papa Francisco sobre a “ideologia de gênero”, objeto do seminário. Curiosamente são referenciados apenas no inglês termos gender ou gender theory. Mas nas redes sociais e blogs, católicos conservadores e padres – além dos políticos e a mídia em geral – falam amplamente dessa “ideologia de gênero”. Nos 25 vídeos produzidos pelo canal do YouTube do Padre Paulo Ricardo (Christo Nihil Praeponere), analisados na pesquisa, entre 2012 e 2020, 15 registram o descritor “ideologia de gênero”.

Desde a década de 1990, a Igreja Católica começou a atuar fortemente por meio das suas lideranças leigas conservadoras em conferências internacionais para que o termo gênero fosse retirado dos documentos oficiais da ONU. Dale O´Leary, ativista católica norte-americana, iniciou essa “guerra” semântica com sua obra “Gender Agenda”, lida e reproduzida por ativistas antigênero no mundo todo. Essa atuação antigênero, também abraçada pelos evangélicos neopentecostais, foi tomando corpo nos países do Norte e nas primeiras décadas do século XXI em países do Sul Global, especialmente na América Latina. Ela chega ao grande público por meio das redes sociais pelas palavras e vozes de padres, pastores e políticos ultraconservadores. Os pastores a “emprestaram” dos católicos e hoje estão entre os principais articuladores do termo na arena pública.

No Brasil, a campanha antigênero ganhou relevância em 2014 e foi impulsionada pelas discussões do Plano Nacional de Educação. Ele foi debatido na Câmara Federal e, depois, em estados e municípios brasileiros. Essa “cruzada santa” continua hoje nos legislativos municipais. Vereadores eleitos em 2020 com a bandeira das campanhas antigênero ameaçam fechar escolas que usem o pronome neutro com pessoas não-binárias. Onze dos 63 vereadores apoiados por Bolsonaro fizeram propostas contra a linguagem inclusiva (0 Globo, março de 2021).

Dessa forma, podemos começar a responder a algumas das perguntas colocadas no início do texto. Sim, a “ideologia de gênero” é uma invenção do Vaticano, um conceito elaborado para taxar de “ideológico” as teorias de gênero e a defesa de direitos. É um conceito também eficaz, que passou a fazer parte do vocabulário e das estratégias de diferentes setores conservadores, como padres e leigos católicos, evangélicos e políticos. O aprofundamento da análise do termo, assim, pode ajudar a entender as estratégias do campo conservador nos países da América Latina.

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Referências

Caetano, Guilherme. “Vereadores eleitos alinhados ao presidente priorizam ‘ideologia de gênero’ nas câmaras municipais. Com foco no combate à pandemia, projetos não avançam”. O Globo, 28/03/2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/vereadores-eleitos-alinhados-ao-presidente-priorizamideologia-de-genero-nas-camaras-municipais-24944513

Lionço, Tatiana (2020). “’Ideologia de Gênero’ como elemento da retórica conspiratória do ‘globalismo’”. Em: Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp, pp. 373-392.

Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristas e “ideologia de gênero”, março/abril de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m0fG3Wbh1Dk&t=2831shttps://www.youtube.com/watch?v=FSz17pFHgik&t=2495s

 Vaggione, Juan Marco; Machado, Maria das Dores. “Religious Patterns of Neoconservatism in Latin America”. POLITICS & GENDER 16(1) 2020.

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Teresinha Ferreira Leite Matos, jornalista, mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP e integrante do Grepo.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp (Reprodução)

Neoconservadorismo, o filho pródigo que retorna com novas roupas

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Gisele Cristina Pereira

O neoconservadorismo, que podemos desde já assumir como uma terminologia que guarda extensa pluralidade, se tornou elemento central para a compreensão da política no Brasil, assim como em muitos países da América Latina, nas últimas décadas. Não é possível entender a política, os processos democráticos, assim como o que vem sendo chamado de desdemocratização – processo de enfraquecimento da democracia “[…]não como rupturas drásticas (golpe), mas instituições que são minadas interiormente ora com a retirada de dispositivos jurídicos ora com práticas caluniosas travestidas de argumento” (Teixeira e Carranza, 2021) – sem considerar o papel desempenhado pelos conservadorismos na arena política. Dentro desse espectro multifacetado jogam especial papel as direitas cristãs, objeto de análise do seminário do qual partem as reflexões desta crônica.

Diferentes ciências sociais e humanas têm se debruçado na investigação deste fenômeno compreendido por alguns como neoconservadorismo, assumindo-se pelo prefixo neo a existência de uma certa particularidade em seu conteúdo e forma, ainda que se reconheça que não se trate de uma novidade completa. Se, por um lado, há muitas características e estruturas de movimentos conservadores precedentes, há, por outro, características e formas novas que permitem falar de um conservadorismo de tipo novo (Biroli, Machado, Vaggione, 2020).

Durante o Seminário, um dos principais pontos levantados pelas/os interlocutoras/es foi o questionamento sobre o termo ascensão ao se referir às direitas religiosas e cristãs, suscitado pela primeira pergunta-guia: 1. Que fatores, em geral, considera relevantes para explicar a ascensão das direitas religiosas e cristãs na América Latina?

Questionado no primeiro dia por Juan Marco Vaggione e recuperado por Flávia Biroli no segundo, o termo ascensão suscitou interrogações sobre sua pertinência para se referir aos contextos da América Latina, marcados por ditaduras civis-militares que tiveram, dentre os segmentos da sociedade civil, o apoio das direitas cristãs. No Brasil, a Marcha com Deus pela Família é prova contundente disso.

Mulheres com um rosário nas mãos na Marcha da Família com Deus pela Liberdade no Rio de Janeiro, em 1964. Fonte: Memorial da Democracia

As falas conduzem a um entendimento comum de que o conservadorismo não seria um estranho que bate à porta de repente surpreendendo os “moradores” que ali vivem. Antes, se apresenta como integrante familiar, um elemento atávico que, ainda que cause desconforto em alguns, é recepcionado com regozijo pelo pai. Como um filho que retorna ao seu lar, o conservadorismo não deixou de existir, sempre preservado como viva memória no cotidiano social e político.

Biroli afirma justamente que esses atores conservadores não são estranhos, mas parte do sistema político. Eles se movem por diferentes plataformas, numa relação que caracteriza como de incentivos e constrangimentos. Na mesma direção, Maria Eugênia Patiño pontua que também não visualiza no México uma ascensão no sentido estrito. Identifica no combate, promovido desde a teologia e a doutrina católicas, entre a “cultura da vida” e a “cultura da morte”, raízes do que mais adiante se denominará como “ideologia de gênero”.

Há, portanto, uma coincidência na compreensão de que não há propriamente uma ascensão de algo absolutamente novo, mas uma nova “aparição” que guarda semelhanças e por vezes recupera os “fantasmas” criados e alimentados anteriormente, como o do perigo comunista que assombrava a ordem social e moral e cuja ameaça justificava a necessidade de uma ditadura para contê-lo.

Mas, como já afirmava Heráclito, não é possível se banhar duas vezes no mesmo rio, isso porque tanto o rio quanto quem nele se banha está em constante transformação. A metáfora de Heráclito pode ser relacionada com a parábola do filho pródigo e sua alusão ao fenômeno analisado aqui. Mesmo podendo reconhecer o filho em seu retorno, este não é inteiramente o mesmo, tampouco a casa que o recebe permaneceu incólume. O mesmo podemos dizer do conservadorismo que retoma sua proximidade ao poder em muitos países hoje e que mantém estruturalmente muitas expressões anteriores, mas vem trajado com uma nova “roupagem” caracterizada por novas formas de se apresentar e se relacionar no espaço público, novas estratégias em um contexto também distinto do anterior.

Mas o que exatamente de novo traz este neoconservadorismo? Ainda, o que há de semelhante e de particular nos diferentes contextos em que ele se desenvolve?

Flávia Biroli identifica, sobretudo no caso brasileiro, mudanças nos padrões de atuação e de composição das alianças. Uma das características deste neoconservadorismo seria sua atuação em contextos democráticos, nos quais são estabelecidas alianças improváveis dentro e fora do espectro religioso e em campos divergentes. Caso das coalizões que conformaram os governos petistas e da qual fizeram parte atores que hoje se assumem como conservadores e de direita. A Bancada religiosa do Congresso brasileiro se desenvolveu justamente durante a vigência do Projeto Democrático Popular petista, contribuindo posteriormente para sua ruína.

Outra particularidade da atual manifestação do conservadorismo – apresentada por Olívia Bandeira a partir das reflexões acumuladas pela pesquisa do GREPO – é o papel desempenhado pelas mídias como estratégia e como arena das disputas políticas. Um elemento importante a ser considerado a esse respeito são as mudanças nas últimas décadas no sistema de mídias a partir da disseminação da internet e extensão das grandes plataformas digitais. No atual modelo, lembra Olívia, a economia é movimentada a partir dos dados pessoais pelos algoritmos das plataformas digitais, favorecendo a circulação de discursos de ódio e grandes performances sensacionalistas.

Também no caso mexicano, as marchas da família fazem uso dessas grandes plataformas digitais possibilitando um alcance que a incidência no espaço público físico, e mesmo sua divulgação pelos meios de comunicação tradicionais, não permitiria.

Outra convergência entre as análises é a compreensão do neoconservadorismo enquanto forma de reação de atores coletivos políticos e religiosos frente as conquistas de direitos sexuais e reprodutivos nas últimas décadas. A reflexão também converge em torno da não exclusividade enquanto dispositivo das direitas, menos ainda das direitas religiosas.

Maria Eugênia frisa o quanto nossas realidades na América Latina se cruzam nesse sentido, provando o evidente caráter transnacional do neoconservadorismo. A partir da investigação dos movimentos da sociedade civil do México que se articulam contra o matrimônio igualitário, observa uma coincidência temporal no surgimento de movimentos conservadores na região. Apesar de razões diferentes que os motivaram, alguns elementos os vinculam.

A Frente Nacional pela Família do México surge como uma reação à proposta de matrimônio igualitário apresentada pelo presidente Enrique Peña Nieto, em 2016. Neste mesmo ano ganha força a articulação Con mis hijos no te metas iniciada no Peru e cujo cerne é a oposição à chamada “ideologia de gênero” nos conteúdos das escolas de educação básica. Também neste ano se deu a Ola celeste na Argentina, grupos que se articulavam em reação à Ola verde, como é caracterizada a mobilização da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto. Podemos acrescentar ainda o caso da Colômbia, também em 2016, onde o tema da ideologia de gênero foi mobilizado por grupos que se opunham ao acordo de paz com as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), caso tratado no primeiro dia por Sandra Mazo.

Manifestantes contra a legalização do aborto protestam na Argentina em 2020. Foto: Reuters

Naquele momento o Brasil vivia o impeachment de Dilma Rousseff, para o qual foi mobilizado o capital moral acumulado anteriormente com as discussões em torno da meta de igualdade de gênero no PNE (Plano Nacional de Educação) em 2014. Lembremos que a “família” foi um dos termos mais evocados nas justificativas daqueles que votaram pelo impedimento da então presidenta. Assim como teve forte presença nas eleições de 2018 que levaram Bolsonaro e sua agenda moral ao cargo de presidente da República.

Patiño interroga por que esses grupos opositores aos avanços dos movimentos feministas e LGBTI+ aparecem no espaço público de forma tão rápida? Essa rapidez teria a ver, segundo ela, justamente com essas estruturas preexistentes e que são acionadas prontamente em reação a direitos percebidos como ameaças. A categoria família, por exemplo, tem sido um núcleo fundamental de mobilização desses atores.

Se, como se demonstrou e tenho acordo, se trata antes de uma retomada do que a ascensão de algo absolutamente novo, de todo modo a pergunta inicial segue sendo vigente, ainda que reformulada: quais fatores são relevantes para explicar este ressurgimento do conservadorismo enquanto expressão política hegemônica quase simultaneamente em diferentes países da América Latina e no qual as direitas cristãs têm papel central?

Sem dúvida encontraremos na história compartilhada de colonização, na qual a Igreja católica, atrelada às respectivas coroas ibéricas, foi corresponsável pelo ordenamento jurídico, político e social, elementos que ajudam nessa compreensão. Também os contextos particulares apresentados nos fornecem valiosas pistas sobre a atuação e formas singulares ou similares que assumem em cada um dos países latino-americanos. Mas, parece que apenas os processos políticos olhados em si mesmos em sua articulação com o religioso não explicam essas coincidências que extrapolam a América Latina e se fazem perceber também no caso dos Estados Unidos e de alguns países europeus.

Se, como aparenta, os neoconservadorismos, em suas diferentes nuances, é ao mesmo tempo causa e efeito de processos de desdemocratização na região, o que explica essa dialética se manifestar de tal maneira em diferentes países, contextos sociais e políticos? O que os unifica para além da forma aparente com a qual se apresentam, mas das causas mesmas que os favorecem ou produzem? Retomando a analogia do título, podemos perguntar a este neoconservadorismo quais foram as razões que o trouxeram de volta ao centro, neste exato momento e com esta roupagem particular.

À guisa de respostas, novas interrogações são fomentadas para a compreensão deste fenômeno, seus antecedentes, causas estruturais, estratégias, modos de operar e relações que estabelece entre as diferentes esferas da arena pública.

Referências:

BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo. Boitempo, 2020.

CARRANZA, Brenda; Teixeira, Ana Claudia Ultraconservadores e a Campanha da Fraternidade: lógica de confronto. In: Le Monde Diplomatique Brasil, 04 de março, 2021. https://diplomatique.org.br/ultraconservadores-e-campanha-da-fraternidade-logica-do-confronto/ Consultado 31.05. 2021.

GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. 2º dia. Youtube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FSz17pFHgik&t=5602s. Acesso em 11 maio de 2021.

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Gisele Cristina Pereira é mestranda em Ciência da Religião pela PUC-SP, onde também integra o grupo de pesquisa GREPO – Gênero Religião e Política; possui especialização em Ciência da Religião pela mesma universidade. É bacharel e licenciada em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir e professora de História da Educação Básica.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03/21 e 01/04/21, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a primeira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Memorial da Democracia

Quando comunicar é servir

* Publicado originalmente no jornal argentino Página 12. Traduzido por Magali Cunha.

Embora pudéssemos dizer que tudo é um ato comunicacional no ser humano – mesmo quando o silêncio de seus ditos e ações é a única coisa que aparentemente se nota – é o fato básico de poder fazer que nos define em toda a nossa própria história.

Isso junto com tudo que deriva do ato de se comunicar e que pode ser rapidamente inferido; perguntas como: quem comunica? Para quem você comunica o quê? Andam de mãos dadas com outras nem sempre tão óbvias: quem pode ou não comunicar? Quando podemos ou não podemos comunicar quais elementos de nossa cultura? E assim… sempre complicando o arco de análise cotidiana das questões, bem como a desconfiança metodológica necessária para poder distinguir que há além da superfície que se torna visível, audível, tangível.

Da WACC na América Latina (Associação Mundial para a Comunicação Cristã, World Association for Christian Communication, na sigla em Inglês), mais uma vez observamos com expectativa e esperança como um plano de governo em nossa região, em face do novo cenário de crise derivado de covid-19, levanta medidas que fazem da comunicação um paradigma de participação, para além das grandes multimídias que nos envolvem todos os dias.

O fato de o governo do atual presidente na Argentina Alberto Fernández, promover a partir de 2 de janeiro de 2021, o chamado Benefício Básico Universal Obrigatório para serviços móveis, fixos, Internet e televisão a cabo, tornando-os mais acessíveis às pessoas mais vulneráveis ​​em sociedade – beneficiárias do Bolsa-Família, Bolsa-Gravidez, bem como das suas filhas e filhos com idades compreendidas entre os 16 e os 18 anos e membros do seu grupo familiar, beneficiários e beneficiários de Pensões Não-Contributivas que recebam rendimentos mensais brutos não superiores a dois salários mínimos vitais e móveis, bem como seus filhos e filhas; clubes de bairros e cidades registrados na lei 27.098, associações de bombeiros voluntários definidas na lei 25.054 entre outras e outras – coincide com uma importante linha de ação e pensamento que a WACC Global (com mais de 50 anos de trajetória pelo mundo), defende e apoia nas diferentes regiões do mundo e em particular a América Latina, um dos continentes mais violentos segundo a ONU em seus estudos de 2018, bem como entre os social e economicamente desiguais.

Continuamos a apoiar a partir da WACC na América Latina, os princípios que movem a comunicação de um espírito cristão, aberto e plural onde entendemos que:

  • A comunicação é um exercício espiritual na medida em que é um exercício transcendente de todo ser humano que cria significados “sagrados” entre os seres humanos em suas múltiplas formas de compreender e viver sua espiritualidade.
  • A comunicação aumenta a participação. O incentivo à comunicação é um ato com vontade política própria. Aqueles de nós que pretendem sociedades participantes e atuantes nas dinâmicas de mudança que têm de viver diariamente, devem possibilitar a comunicação em todos os seus espaços possíveis.
  • A comunicação promove liberdade e exige responsabilidade. Em tempos de tecnologia digital onde o “Cancelamento” de outras pessoas é utilizado como meio de controle e também de censura, é fundamental promover a liberdade de nos comunicarmos com base na premissa de não explorar essa liberdade para coibir a extensão de direitos aos setores mais vulneráveis.
  • A comunicação afirma a justiça e desafia a injustiça. Por fim, comunicar é deixar claro que para ser eficaz, deve-se considerar chegar onde a grande multimídia não chega (por opção política, por interesses próprios ou apenas por preguiça) e ser uma voz audível que gera incidência e define uma agenda comprometida com a vida dos outros.

Por tudo o que foi dito, afirmamos no início deste texto que comunicar é servir. Apesar do atípico 2021 que temos que atravessar, temos expectativas e esperanças de que este gesto feito lei aproxime a comunicação (em todo o seu sentido amplo) dos nossos povos latino-americanos.

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Foto de capa: Pixabay/Reprodução