O fogo que queima reputações nas Assembleias de Deus

O sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, escrevendo sobre os “Discursos evangélicos de uma Nova Direita Cristã à brasileira” (1), identificou na narrativa dos evangélicos que apoiam o atual presidente da República as características do que ele chama de discurso da integridade. O que seja isso? É um conjunto de fatores e práticas que fornece sustentação teórica (discurso) para tomadas de posições à direita, como também a defesa de uma pureza doutrinária (integridade) que se propõe a agredir o outro que esteja em atitude discordante do grupo quando o assunto é política, igreja, família. O texto de Alexandre Brasil é o capítulo “Discursos evangélicos de uma nova direita cristã à brasileira”, na obra: GALLEGO, Esther Solano (Org.). Brasil em colapso. São Paulo: UNIFESP, 2019, p. 105-120. 

A reação dessa nova direita cristã à brasileira se dá, principalmente, nas redes sociais. Geralmente é uma interlocução truculenta com pessoas ou grupos que discordam ou, em algum momento, expressou algo que indicasse não concordar com a política em curso no país. Alexandre Brasil ressalta que o principal componente que dá sustentação para esse discurso da integridade é a briga com o comunismo, ou marxismo. A “ameaça vermelha” é o grande inimigo que está atormentando as igrejas e os portadores dessa ameaça são, notadamente, os partidos de esquerda no Brasil. É dentro dessa narrativa fantasmagórica em torno de um tema que nunca foi possível a sua viabilidade no país, que o discurso da integridade se baseia. Com isso, a senha está dada: caçar todos que, minimamente, seja um infiltrado na igreja e que tenha qualquer relação com o marxismo. Até porque, pensam, se for marxista é adepto do ecumenismo, da teologia da libertação (ou missão integral) e a favor de homossexuais, logo é contra a Bíblia, a família, a igreja e o próprio Deus!

Neste maio de 2021, o discurso da integridade escolheu mais uma pessoa para demonstrar que não está para brincadeira. Trata-se do pastor auxiliar da Assembleia de Deus de Joinville/SC Dr. Claiton Ivan Pommerening. O pastor foi o comentarista da Revista de Escola Bíblica Dominical da Editora CPAD do terceiro trimestre de 2021 com o tema: “O plano de Deus para Israel em meio à infidelidade da nação”. Tema que suscitou expectativas por conta dos últimos acontecimentos envolvendo o Estado de Israel e a causa palestina. Como reação ao autor, a Assembleia de Deus na cidade de Abreu e Lima/PE, liderada pelo pastor Roberto José dos Santos, “proibiu” a revista nas igrejas que estão sob seu comando. O motivo, segundo o pastor, o comentarista seria um marxista. Para o pastor de Abreu e Lima, Claiton teria “posições ideológicas marxistas”; defendia a “teologia da libertação”; promovia o “ecumenismo em ambientes confessionais assembleianos”. Bastou isso para acender a fogueira contra o pastor de Joinville. O fogo que queima reputações foi aceso com postagens em redes sociais. 

Interessando nessa história, este articulista procurou algumas fontes para conversar sobre isso. A fonte consultada, ressaltou que, num primeiro momento, não se tratava apenas de colocar fogo na reputação de alguém rotulando como “marxista”. O caso, assegurou a fonte, é que as duas maiores igrejas em Pernambuco, Abreu e Lima e Recife, colecionam diferenças históricas. Ambas participam da CGADB, mas seus templos e posicionamentos são bem conhecidos entre os membros dessas duas igrejas. Essas igrejas passaram a disputar também qual delas era mais conservadora em termos de doutrina e comportamento. Por essa razão, a decisão do pastor Roberto José em “proibir” a circulação da revista da CPAD, se deu por entender que agindo assim estava “protegendo a igreja de heresias de um marxista”. 

A partir do momento que um pastor faz essa acusação para uma publicação da CPAD, a situação fica mais complicada. Segundo apurou esse articulista com uma fonte, as revistas da EBD “é a galinha de ‘ovos de ouro’ da CPAD”. Esse episódio, portanto, não é apenas “teológico”, mas muito mais comercial. É por essa razão que o Conselho de Doutrina e Comissão de Apologética se manifestou favorável ao autor e à revista. A Nota esclarece que a fritura do pastor nas redes sociais está causando “prejuízos enormes ao processo de distribuição das Revistas de Escola Dominical das Assembleias de Deus no Brasil”. Até porque, segundo apuramos, os comentários do pastor Claiton para a revista, alvo da fúria de Abreu e Lima, já estava na fila de produção há dois anos atrás. Assim, não seria viável o Conselho de Doutrina recuar agora, por uma questão de reputação do próprio Conselho, afinal de contas deixaram um “marxista” ser o autor de uma revista da CPAD; mas também por razões estritamente comerciais. 

Com esse episódio, a CGADB emitiu uma Nota; a Casa Publicadora das Assembleias de Deus emitiu uma Nota Explicativa; a Igreja Assembleia de Deus em Joinville emitiu uma Declaração. Com exceção da Declaração da AD em Joinville que é mais pessoal em relação ao pastor comentarista da revista; as demais são todas corporativas. 

Com esse ocorrido, tiramos algumas conclusões: (i) Fica evidente a disputa de duas igrejas em Pernambuco em torno do “discurso da integridade”; (ii) Uma vez atacando o comentarista de uma revista da CPAD com o rótulo de “marxista” o caso ganha dimensão nacional; (iii) Com essa atitude regional, o pastor Roberto José consegue mexer com as estruturas do Santo Ofício assembleiano que reage de maneira contundente, porque a produção capitalista de uma revista de EBD, que faz a máquina assembleiana caminhar, não pode parar. 

E sobre o pastor Claiton e as acusações? Infundadas. Não há nada de marxista no pastor; nada que ele tenha escrito sobre teologia da libertação; não há registro sobre qualquer posicionamento ecumênico quanto ao referido pastor. E por que então escolheram ele para colocar na fogueira que queima reputações? Porque o comentarista de uma das revistas mais consumidas no universo assembleiano não faz parte do “clã de intelectuais orgânicos da denominação”, conforme me assegurou uma fonte. Um outro fator, é porque publicar em uma revista da CPAD dá capital simbólico e visibilidade denominacional, e aí a inveja continua sendo um dos sete pecados capitais, até para quem diz que ouve a voz do Espírito Santo.

A era da pós-verdade

O texto bíblico de João 8:32 foi usado pelo candidato do PSL de forma exaustiva nas eleições de 2018. O fim era capturar o voto do eleitorado evangélico para a “verdade” que, supostamente, o candidato estava encabeçando. O mesmo candidato que usou as fake news como principal arma de campanha e que até o momento o TSE ainda não julgou o mérito da ação, mesmo a CPI das “Fake News”, ainda em curso, está concluindo que o principal elemento que tornou possível a eleição do então candidato do PSL foram os conteúdos falsos disseminados nas redes sociais e principalmente em grupos de WhatsApp patrocinado por empresas para fazer os disparos diários.

Voltando ao texto bíblico usado de forma indevida pelo então candidato como um chavão diz que “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. É claro que o chavão em que se tornou o texto não tem nenhuma relação com a verdade do Evangelho de João, que tem como fundo exegético a percepção de que Jesus é a verdade, em virtude de nele residir a realidade divina do amor. Assim, com sua atividade em favor do outro, ele (Jesus) manifesta o amor de Deus. Portanto, para conhecer a verdade é preciso entrar em contato com ela, a verdade, que é Jesus. Assim, a discípula e o discípulo de Jesus experimenta os efeitos desse amor que é o encontro da realidade divina com a humana. Uma vez conhecendo a verdade (a mensagem de amor proclamada por Jesus), ela liberta da mentira na teologia joanina; mentira essa que tem um “pai” e trabalha para diminuir a vida do ser humano, tornando-o escravo da mentira (1). Essa percepção de verdade que está no Evangelho de João, não é compartilhada por uma parcela significativa de evangélicos no Brasil que preferiram o “pai da mentira”, aquele “chefe” que escraviza mentes e corações a partir da disseminação do falso.

Filosoficamente, a verdade é a adequação que o indivíduo faz entre o intelecto e a realidade, portanto a verdade é uma propriedade do juízo e este, o juízo, é capaz de diferenciar o falso do verdadeiro. Aprofundando um pouco mais essa noção de verdade no Ocidente, está se dá quando há um consenso ou acordo em sociedade quanto ao aceitável enquanto normas de conduta, algo estabelecido culturalmente para um determinado grupo social (2). No caso do Brasil, cultural e religiosamente cristão, a verdade se dá a partir de uma ordem vigente que tem na tradição judaico-cristã (cristandade) o seu consenso entre verdade e mentira. A verdade (real), nesse sentido, é contrária à mentira (falso), mas para dizer a verdade é preciso o juramento, pelo menos nos tribunais. Sendo o juramento algo tipicamente teológico.

Seguindo o raciocínio de Christian Dunker (3), o que ocorre hoje é o que está se chamando de “pós-verdade”. Para o autor, “a pós-verdade inaugura uma reflexão prática e política sobre o que devemos entender por verdade e sobre a autoridade que lhe é suposta”. A partir disso, a verdade enquanto pressuposição transcendental calcada na tradição judaico-cristã, não importa mais. A verdade passa por uma espécie de metamorfose quando diante de uma necessidade coletiva e/ou subjetiva que atenda os ideais de um segmento social com o intuito de obter poder. Nessa era de “pós-verdade”, o que conta mesmo é a “aptidão para a inversão”. É nesse espaço público que a aptidão para as inversões conceituais com a transmutação da realidade que as fake news inaugura uma prática de produzir, disseminar e assassinar reputações a partir de conteúdos que promovem um espectro do quadro político à direita (extrema), que julga ter autoridade para estabelecer a mentira como “verdade”, em nome de uma suposta moralidade que julga está decadente na civilização ocidental por conta, exatamente, de governos populares de esquerda. Dentro desse quadro maior que a ala evangélica, seja por ingenuidade, falta de pudor ou senso crítico, não apenas embarcou nas fake news como também divulgou por meios das redes sociais conteúdos falsos quando esse material estava condizente com a mentalidade político-moral do que se entende estar expurgando o “mal” e quem o representa.

Um caso que exemplifica o que estamos aqui tratando.

O padre Fábio de Melo foi vítima de fake news quando da tragédia que aconteceu na escola em Suzano/SP neste ano. O texto intitulado “Melhor texto que já li sobre o acontecimento de ontem” ganhou enorme proporção na internet. O texto foi atribuído ao padre e por isso viralizou nas redes e grupos de WhatsApp. Segue o texto:

Melhor texto que já li sobre o acontecimento de ontem

Autor: Padre Fábio de Melo

“Cansado e perplexo com tantas baboseiras e falsas justificativas para as atrocidades que ainda nos surpreendem todos os dias…

Os meninos não mataram porque o porte de arma é um projeto do atual governo. Os meninos não mataram porque jogavam jogos violentos. Os meninos não mataram porque a escola foi omissa. Os meninos não mataram porque sofreram Bullying…

Eles mataram porque as famílias estão desestruturadas e fracassadas, porque não se educa mais em casa, não se acompanha mais de perto, a tecnologia substitui o diálogo, presentes compram limites, direitos e deveres e não há o conhecimento e respeito a Deus.

Precisamos parar de nos omitir, de transferir culpas. A culpa é minha, é sua, de todos nós!

Quando Fábio de Melo soube da repercussão do texto atribuído, falsamente, à ele, foi ao Twitter e desmentiu o texto dizendo: “O texto que está viralizado sobre o atentado em Suzano, cujo título é ‘O melhor texto que já li sobre o acontecimento de ontem’, não foi escrito por mim” (4). Mesmo o padre desmentindo o texto e se posicionando contra o decreto das armas do governo, muitos evangélicos não pararam de divulgar o texto. As pessoas, mesmo depois de saberem que o texto não foi escrito e divulgado por Fábio de Melo, insistiram na mentira com a seguinte argumentação: “Não interessa quem escreveu, é uma verdade e pronto” (5). Os robôs da milícia digital do atual governo impulsionou essa fake news e a palavra do padre desmentindo ser o autor do falso texto já não tinha qualquer importância (6). Essa fake news é um típico caso de inversão da qual Dunker pontuou, ou seja, o texto só viralizou porque foi, supostamente, escrito por um padre conhecido, defendendo a política de armas do governo a partir de uma tragédia; quando o suposto autor desmente, ou seja, a verdade vem à tona, esta não tem mais validade porque o objetivo já foi alcançado, tornar o que é falso em verdadeiro.

Uma parcela significa de evangélicos participam imensamente desse processo de produção de fake news. Quando foram coniventes diante do uso político e descontextualizado do texto bíblico de João 8,32, mostraram que não conhecem a verdade de Jesus. Não obstante esse pecado, essa parcela de evangélicos no país vem demonstrando que não tem qualquer compromisso em pautar a realidade político-social com a verdade.

Notas:

* Alonso Gonçalves é graduado em Teologia e Filosofia. Mestre e doutorando em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo). Pastor na Igreja Batista Central em Pariquera-Açu (São Paulo).

(1) MATEOS, Juan; BARRETO. Vocabulário teológico do evangelho de São João. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 277-283.

(2) JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 269.

(3) DUNKER, Christian. “Subjetividade em tempos de pós-verdade”. In: LITERCULTURA (Org.). Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017, p. 13.

(4) Disponível: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2019/03/15/e-fake-que-padre-fabio-de-melo-fez-texto-sobre-massacre-em-suzano-dizendo-que-armas-nao-matam.ghtml>.

(5) Li isso de uma internauta quando a questionei sobre a fake news que ela estava disseminando com o falso texto atribuído ao Pe. Fábio de Melo.

(6) Disponível: <https://revistaforum.com.br/politica/robos-de-bolsonaro-viralizam-texto-fake-de-padre-fabio-de-melo-sobre-massacre-em-suzano/>.