Página gospel manipula imagem para associar falsamente Aline Barros a desfile de escola de samba

Bereia recebeu de leitores o pedido de checagem de uma imagem que mostra a cantora gospel Aline Barros caracterizada para um desfile de escola de samba. A publicação circula nas mídias sociais com o título de uma matéria do portal de notícias G1 sobre a participação da cantora no carnaval de Palmas (TO). Bereia checou informações sobre a participação de Aline Barros no carnaval e a veracidade das imagens divulgadas.
Imagem manipulada de Aline Barros em desfile de carnaval
A página Gospel Brasil, no TikTok, descrita como página de notícias da música gospel, publicou em 3 de março último, uma imagem que mostra a cantora evangélica Aline Barros fantasiada, em um desfile carnavalesco. Na foto, Barros aparece com as coxas e a barriga à mostra, em uma fantasia com detalhes em preto e dourado.
A publicação inclui o título de uma matéria atribuída ao Portal G1, em que se lê: “Aline Barros abre programação de carnaval na Praça dos Girassóis nesta sexta-feira, em Palmas”. A postagem também exibe um recorte do rosto da cantora e a legenda: “Cantora gospel Aline Barros abre Carnaval em Tocantins e choca a internet”, com trecho de uma das canções gravadas pela cantora gospel.
Entre os 3.698 comentários – até o momento da publicação desta matéria – algumas pessoas criticam a cantora e outras afirmam se tratar de uma montagem. A publicação também registrou mais de 12,5 mil curtidas.
Imagem: reprodução TikTok
A partir de ferramentas de busca de imagens, Bereia identificou que houve manipulação do conteúdo. A fotografia original retrata a atriz Paolla Oliveira, rainha de bateria da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, durante desfile no carnaval de 2024, no sambódromo Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.
Imagem: reprodução Instagram
Cantores gospel em programação de carnaval em Palmas
Conforme foi, de fato, noticiado pelo Portal G1, o show de Aline Barros foi a atração principal do primeiro dia da programação do Carnaval 2025, em Palmas, Tocantins – 28 de fevereiro.
No mesmo dia, outros cantores evangélicos como Moyses Di Carvalho e Sandro Nazireu também se apresentaram. Já no sábado, 1º de março, a programação incluiu shows dos cantores católicos Padre Fábio de Melo, Adriana Arydes e Turma do Padre Dudu.
Imagem: reprodução G1
A programação, organizada excepcionalmente pelo Governo do Estado do Tocantins, depois do prefeito do município Eduardo Siqueira Campos (Podemos) ter anunciado a suspensão de qualquer programação de Carnaval para 2025, seguiu até terça-feira, 4 de março último, com apresentações de cantores de outros gêneros musicais.
A Prefeitura de Palmas realiza, tradicionalmente, desde 2015, o evento gospel Capital da Fé, durante os dias do feriado de carnaval. No entanto, em 2025, conforme divulgado pelo portal de notícias regional Gazeta do Cerrado, a Prefeitura cancelou a realização das festividades, em decorrência de uma dívida estimada em R$ 300 milhões.
Desinformação de gênero em um contexto religioso
Apesar de algumas páginas de apoio à Aline Barros terem publicado notas sobre a divulgação de falsas informações e uso indevido de sua imagem, a cantora não se pronunciou oficialmente sobre a peça desinformativa envolvendo seu nome.
Barros fez uma publicação em sua página oficial no Instagram, em 6 de março, sobre a participação no evento. Nos comentários, algumas pessoas levantaram temas como mentira no meio religioso, desinformação e processo judicial em razão da difamação, enquanto outras publicaram mensagens de apoio.
Imagem: reprodução Instagram
No entanto, além de julgamentos acerca da conduta cristã e do comportamento moral da cantora, surgiram também discussões sobre sua participação, enquanto cantora gospel – em um evento no período de carnaval. Também há registros de acusações de realizar shows por interesse financeiro, em detrimento do propósito religioso, que renderam comentários como “pastora de satanás”.
Para a doutoranda em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero (NUDERG) e integrante da equipe Bereia Rafaely Camilo, a adulteração na imagem teve o objetivo de expor a cantora gospel pelo viés da sensualidade, um tema valioso para o público evangélico por se tratar de uma pauta que trata da moral e de costumes.
“A imagem parece ter como objetivo causar escândalo no meio cristão evangélico, ao colocar uma figura conhecida do meio, numa posição de constrangimento, ridicularizando sua trajetória”, aponta Camilo.
Segundo a pesquisadora, nesse caso, a desinformação de gênero está assentada na exposição do corpo, algo que não é esperado para uma mulher na posição de Aline Barros, o que provavelmente a cantora não faria.
“Por muitos anos, Aline Barros foi uma artista que caminhou entre os mundos secular e gospel e recebeu críticas por isso. O uso dessa imagem atende, para o efeito da viralização (caça-cliques), como afirmação de que ela estaria participando da festa ‘do mundo’, caracterizada como tal”, explica a doutoranda em Ciências Sociais.
Carnaval e manifestações religiosas
A atriz Paolla Oliveira é rainha de bateria da Grande Rio desde 2009. Após um hiato de dez anos, voltou a desfilar para a escola em 2020. Em 2022, Paolla Oliveira esteve na Marquês de Sapucaí fantasiada de Pombagira, e em 2023, sua fantasia representou as armas de Ogum. Pombagira e Ogum são entidades espirituais presentes nas religiões de matriz africana umbanda e candomblé.
Em 2022, a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio também foi a campeã do carnaval do Rio de Janeiro, com o samba-enredo que homenageou Exu, outra divindade das religiões de matriz africana.
O jornalista, escritor e pesquisador do carnaval carioca Aydano André Motta, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), afirmou que a visão de que o carnaval é uma festa pagã está equivocada.
“O carnaval é uma festa completamente religiosa. Na fundação de todas as escolas de samba sempre houve presente um pai de santo ou uma mãe de santo. Várias escolas de samba estão assentadas, nas suas quadras e sedes, em antigos terreiros de candomblé e umbanda, então é uma festa que se move a partir da religião, não existiria sem os preceitos religiosos”, declara o pesquisador.
Motta esclarece que o carnaval é uma festa extremamente religiosa e que no Brasil tem manifestações do sincretismo religioso. “As baterias das escolas e suas formas de execução estão ligadas a orixás, são batidas escolhidas para reverenciar orixás. A umbanda conecta santos católicos a orixás, então no Rio de Janeiro, Oxóssi é São Sebastião, Oxum se junta a Nossa Senhora da Conceição, São Jorge a Ogum, por exemplo”.
Entretanto, o Carnaval tem origem no Catolicismo ibérico que veio para o Brasil com os colonizadores. No artigo A fé como expressão da vida que pulsa no Carnaval, a pesquisadora da Religião e editora-geral do Bereia Magali Cunha indica a origem cristã da festa na Idade Média. “O Carnaval, criado na Europa medieval pela Igreja Católica, foi uma forma de controlar antigas festas populares, condenadas por ela por representarem uma entrega aos prazeres mundanos”.
Segundo a pesquisadora, a ideia do Carnaval (carnis levale, ou, “retirar a carne”), como um período para cometer todos os “excessos da carne”, surge da tentativa de dar um sentido cristão às festividades. “Com isto foi criado, também, o período da Quaresma, um tempo de 40 dias antes da Páscoa, logo depois do Carnaval, caracterizado pelo arrependimento dos excessos cometidos e pelo jejum (purificação)”.
Outros grupos religiosos, como os evangélicos – tradicionalmente opostos às festividades do Carnaval e habituados ao afastamento dos retiros – intensificaram nos últimos anos, marcados pela polarização política no Brasil, a desqualificação da cultura “secular ou mundana” e, ao mesmo tempo, a disputa pela noção de cultura, conforme apresenta a antropóloga, pesquisadora e coordenadora de religião e política no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Lívia Reis, em artigo intitulado Religião como forma de “proteção da cultura”: manifestações culturais e artísticas como campo de disputa.
“Não se trata de um paradoxo, estes segmentos religiosos passaram, também, a disputar a noção de cultura, tentando definir o que seria ou não legítimo de ser considerado como parte dela. Parte desse movimento consiste em promover arte e cultura. Para além da consolidação do segmento gospel, houve um vasto investimento em outras formas de se experimentar a religião através da arte, tais como filmes, teatros, novelas, plataformas de streaming, programas de rádio e mega eventos em espaços públicos”, destaca Reis.
Carnaval, diversidade e tolerância religiosa
A organização do evento Capital da Fé, realizado pelo Estado do Tocantins, reflete estes elementos. O governo destacou as atividades como “uma experiência inclusiva e democrática aos foliões” e que “celebrou a diversidade musical e reforçou o compromisso com uma programação acessível a todos os públicos”.
Apesar de cancelado em 2025, o evento gospel Capital da Fé, descrito no portal da Prefeitura de Palmas como “o maior evento Gospel do Brasil realizado no período de Carnaval”, ocorre há nove anos e já reuniu em torno de 200 mil pessoas, segundo a organização.
A programação de cinco noites com apresentações de nomes do segmento no cenário nacional é voltada para católicos, evangélicos e apreciadores do estilo musical. O portal afirma que o gospel detém o segundo lugar na preferência musical nacional, atrás apenas do sertanejo.
Imagem: Prefeitura de Sobral
Além de Palmas, outras cidades pelo Brasil também realizam eventos gospel durante o período de carnaval, como Sobral (CE) e Arraial do Cabo (RJ). As iniciativas apontam para uma mudança na participação deste grupo religioso nas comemorações do carnaval.
A tendência em consolidação é parte do que já ocorre em outras esferas da sociedade. Aline Barros, por exemplo, é considerada a precursora da participação de cantores gospel em canais televisivos não segmentados para este público, por sua participação em atrações como a de Xuxa Meneghel, a partir da década de 90, e que trouxeram maior diversidade à televisão brasileira.
O artigo de Lívia Reis também mostra que a disputa dos evangélicos pelo espaço público avança até a ocupação da festa de caráter profano e a apropriação de elementos de outras culturas demonizadas por eles. “Apesar de criminalizar o carnaval como uma prática demoníaca, alguns grupos passaram a mobilizar instrumentos musicais, danças e corporeidades de matriz africana, em suas tentativas de disputar a festa”.
A antropóloga assinala que um movimento semelhante aconteceu com a capoeira, com a festa de Cosme e Damião e com bolinhos de acarajé, que se tornaram “capoeira de jesus”, “saquinhos de jesus” e “acarajé de jesus”, respectivamente. “Em comum a todos esses casos é o fato de que segmentos evangélicos apagam o que seria percebido como o sinal negativo dessas práticas tradicionais e populares, isto é, a ligação com tradições africanas”.
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Após checar informações sobre o conteúdo que circulou nas redes digitais, Bereia classifica o conteúdo como falso. A imagem que mostra a cantora Aline Barros em uma fantasia de carnaval foi adulterada a partir da imagem original da atriz Paolla Oliveira, rainha de bateria da escola de samba Grande Rio, no carnaval carioca.
Apesar de conter elementos factuais e verdadeiros, como a participação de Aline Barros no carnaval de Palmas, foi feito uso de imagem que não corresponde ao que foi noticiado. É clara a intenção de distorcer a informação para instigar julgamentos negativos sobre a cantora – o que poderia ser considerado enganoso – a fim de se alcançar cliques, portanto audiência. A imagem foi fabricada e é, portanto, falsa.
O sensacionalismo também foi utilizado como estratégia para captar audiência, por meio da sensação de escândalo, provocada pela falsa associação da mulher evangélica ao corpo sensual e à mostra, como forma de difamação e desvio de conduta esperada pelo meio religioso, o que se classifica como desinformação de gênero.
Outro elemento falso presente na estratégia desinformativa, e que contribui para o sensacionalismo, é a caracterização de festividade carnavalesca que se relaciona com culturas e religiões de matriz africana – como os desfiles de escolas de samba no Rio de Janeiro, associado à imagem da cantora e que nada se assemelha ao evento do qual Aline Barros participou.
A disseminação de falsidades relacionadas a situações que envolvem temas referentes a gênero são frequentemente observadas nas redes digitais. Bereia alerta para publicações que se valham do sensacionalismo, do pânico moral e da intolerância religiosa como arma de violência contra mulher no contexto digital. No caso em questão, as imagens de duas mulheres foram utilizadas – e manipuladas – para provocar uma reação de indignação que não se sustenta na realidade.
Referências da checagem
G1
https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2025/02/28/aline-barros-abre-programacao-de-carnaval-na-praca-dos-girassois-nesta-sexta-feira-em-palmas.ghtml Acesso em: 09 mar 2025
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2024/noticia/2024/02/16/paolla-oliveira-renova-com-a-grande-rio.ghtml Acesso em: 09 mar 2025
https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2023/02/17/festival-de-musica-gospel-esta-entre-as-atracoes-do-carnaval-de-arraial-do-cabo-no-rj.ghtml Acesso em: 11 mar 2025
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2022/noticia/2022/04/26/grande-rio-e-a-campea-do-carnaval-2022-do-rio.ghtml Acesso em: 11 mar 2025
Gshow
https://gshow.globo.com/carnaval/2024/noticia/paolla-oliveira-vira-onca-na-sapucai-em-desfile-da-grande-rio.ghtml Acesso em: 11 mar 2025
https://gshow.globo.com/carnaval/2024/noticia/de-cleopatra-a-pombagira-relembre-as-fantasias-de-paolla-oliveira-como-rainha-de-bateria.ghtml Acesso em: 11 mar 2025
https://www.instagram.com/p/DGyc1m4yOYs/?igsh=Nm55dWo3YTN1Y3Ri Acesso em: 09 mar 2025
https://www.instagram.com/paollaoliveirareal/ Acesso em: 09 mar 2025
Instituto Humanitas Unisinos
https://www.facebook.com/PalmasShowsGospel/photos/est%C3%A1-chegando-a-hora-o-maior-evento-crist%C3%A3o-do-pa%C3%ADs-faltam-apenas-07-dias-para-o/362152127242859/?_rdr Acesso em: 10 mar 2025
Gazeta do Cerrado
https://gazetadocerrado.com.br/tocantins/palmas/dividas-herdadas-podem-chegar-a-r-300-milhoes-em-palmas-e-eduardo-decide-cancelar-capital-da-fe-e-carnaval-este-ano/ Acesso em: 10 mar 2025
https://gazetadocerrado.com.br/tocantins/palmas/palmas-capital-da-fe-tera-este-ano-varias-atracoes-nacionais-e-novidades-veja-quem-ja-esta-confirmado/ Acesso em: 10 mar 2025
Jornal Opção
https://www.jornalopcao.com.br/tocantins/capital-da-fe-chega-a-quinta-edicao-com-atracoes-religiosas-durante-o-carnaval-167826/ Acesso em: 10 mar 2025
YouTube
https://www.youtube.com/watch?v=DQz_reGSOCI Acesso em: 10 mar 2025
https://www.youtube.com/watch?v=Jtr6g_ohJcg Acesso em: 10 mar 2025
Governo do Tocantins
Prefeitura de Palmas
https://portal2013.palmas.to.gov.br/conheca_palmas/grandes-eventos/capital-da-fe/ Acesso em: 09 mar 2025
Prefeitura de Sobral
https://www.sobral.ce.gov.br/informes/principais/sobral-de-fe-prefeitura-de-sobral-promove-evento-cristao-no-periodo-de-carnaval Acesso em: 11 mar 2025
Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-fe-como-expressao-da-vida-que-pulsa-no-carnaval/ Acesso em: 12 mar 2025
Religião e Poder
https://religiaoepoder.org.br/artigo/religiao-como-forma-de-protecao-da-cultura-manifestacoes-culturais-e-artisticas-como-campo-de-disputa Acesso em: 12 mar 2025