Panfleto político-religioso promove desinformação entre igrejas

Bereia recebeu pedido de checagem de um panfleto com conteúdo político que circulou na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) no município de Francisco Morato (SP). O texto, intitulado “Propostas que afrontam os valores cristãos”, foi distribuído aos fiéis e não traz menção à denominação religiosa ou assinatura.

O texto se propõe a enumerar “apenas alguns projetos” em tramitação no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais ou no Poder Judiciário, e que vão de encontro aos “valores cristãos”, tendo como alvos principais a família, a escola e a igreja. Na lista de projetos estão: 

  • “Ideologia de gênero”
  • Mudança de sexo em crianças e adolescentes
  • Lei anti-homofobia
  • Liberação da maconha
  • Famílias do século XXI
  • Programas religiosos na televisão
  • Limite sonoro nas igrejas

Bereia checou, ponto a ponto, os temas mencionados e o que se sabe sobre cada um.

Imagem: foto do panfleto distribuído, enviado por leitora

“Por exemplo, no Supremo Tribunal Federal, a ideologia de gênero nas escolas é tratada pela recente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5568. Ela modificou o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005/2014, com o intuito de obrigar escolas públicas e particulares a tratarem crianças de acordo com o gênero ao qual se identificam.

Mas esse não é o único projeto absurdo. Imagine você que, após todo esse ensino que eles promovem na escola, a criança comece a achar que ela nasceu com o sexo errado e queira mudar, você como pai vai se colocar contra isso porque sabe que aquilo não é uma ideia do seu filho, mas algo que foi implantado nele”.

“Ideologia de gênero”

O panfleto menciona  “ideologia de gênero” e apresenta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.568, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), para argumentar que escolas serão obrigadas a respeitar o gênero com o qual cada criança se identifica. 

Ao contrário do que o texto afirma, não se trata de um “projeto” de ensino a ser promovido nas escolas. A ADI nº 5.568 foi ajuizada em 2017, na busca de que o STF reconhecesse o dever constitucional das escolas de coibir o bullying homofóbico e de respeitar a identidade de pessoas LGBT no ambiente escolar.

A justificativa para a ação está na Lei 13.005/2014 – Plano Nacional da Educação – que em seu art. 2º traz como diretriz a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação.

O panfleto omite que, ao final de novembro de 2020, após articulação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) com a Frente Parlamentar Evangélica, o STF retirou a ação da pauta. Desde então, não houve movimentação desta ADI.

Conforme Bereia já publicou, a  noção de “ideologia de gênero” tem sido utilizada como estratégia discursiva e arma política e foi um dos temas mais explorados nas eleições gerais de 2022. A ADI nº 5.568, em particular, já foi alvo de desinformação checada por Bereia, em que se verificou a presença de narrativas enganosas em mídias sociais e portais religiosos. 

Mudança de sexo em crianças e adolescentes

O texto que circulou na Iurd afirma que o Projeto de Lei (PL) nº 5.002/2013 busca autorizar crianças e adolescentes a realizarem mudança de sexo, mesmo sem autorização dos pais. Porém,o que o PL busca, na verdade, é reafirmar o direito ao reconhecimento da identidade de gênero de acordo com a vivência individual de cada pessoa. 

A Lei 6.015/1973, sobre registros públicos, já prevê que o nome das pessoas é definitivo, “admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”. O que o PL 5.002/2013 propõe é que também se admita a substituição do nome em casos de discordância com a identidade de gênero autopercebida.

Quanto às intervenções cirúrgicas de transsexualização, o PL as prevê para pessoas maiores de 18 anos e requer o consentimento informado da pessoa adulta, informação que o panfleto religioso omite. Para menores de 18 anos, a solicitação de intervenção cirúrgica deve ser efetuada através de seus representantes legais e com expressa anuência da criança ou adolescente. 

O panfleto diz que crianças e adolescentes podem realizar mudança de sexo mesmo sem a aprovação dos pais, o que é uma leitura distorcida do projeto de lei. De acordo com o texto do projeto, quando não for possível obter o consentimento dos representantes legais, os menores de idade poderão contar com a assistência da Defensoria Pública. Ou seja, nesse caso há a intervenção, obrigatória, de um órgão do Estado para conduzir o caso, o que não significa, necessariamente, que haverá autorização para a intervenção.

Consta no portal da Câmara dos Deputados que o projeto foi arquivado pela Mesa Diretora em janeiro de 2019, informação que o panfleto religioso também oculta.

Lei anti-homofobia

Segundo o texto que circulou em Franciso Morato, o Projeto de Lei nº 122/2006 busca cercear o direito de expressão, impedindo até mesmo que pais e mães se manifestem em sentido contrário à mudança de sexo em crianças e adolescentes. A informação divulgada é falsa.

Apresentado em 2006, o projeto buscou criminalizar a homofobia, ou seja, a discriminação motivada exclusivamente na orientação sexual ou na identidade de gênero. A ideia era acrescentar à Lei 7.716 – que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor – os crimes contra gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. 

Trata-se de um projeto que tramitou durante 14 anos no Congresso Nacional, mas que, sem ter alcançado consenso para evoluir, foi  arquivado em 2015 – informação que não consta  no panfleto.

Em 2019, o STF criminalizou a homofobia como forma de racismo, em decisão que não guarda relação com o projeto de lei. Conforme matéria no portal do STF, os ministros da Corte fizeram ressalvas sobre a liberdade de expressão em templos religiosos. Assim, a mera opinião contrária a relações homossexuais não tipifica crime, sendo criminalizada a incitação ou indução da discriminação.

A desinformação sobre a criminalização da homofobia já foi alvo de checagem por Bereia, em que se constatou narrativa enganosa sobre a tipificação do crime e sobre as ressalvas à liberdade de expressão em templos religiosos.

Liberação da maconha

O panfleto religioso diz que o Projeto de Lei 7.270/2014 “abre portas não apenas para a maconha, mas para todos os outros tipos de drogas e males que destroem famílias”. Porém,o que o projeto de lei busca, de fato, é regular a industrialização e comercialização de cannabis (planta que pode produzir substâncias psicoativas, popularmente associada ao termo “maconha”, como exposto pela Fundação Oswaldo Cruz), dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e criar o Conselho Nacional de Assessoria, Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas.

Entre outras disposições, o PL obriga o registro, a padronização, a classificação, a inspeção e a fiscalização da produção e do comércio de cannabis. Apenas o plantio, o cultivo e a colheita destinados a consumo individual ou domiciliar ficam isentos dessas obrigações, somente até seis plantas maduras e seis plantas imaturas por indivíduo. 

O projeto esclarece que não há intenção de “liberar” o comércio da maconha, mas regulá-lo, ressaltando que há, atualmente, um cenário em que o comércio dessa e de outras substâncias proibidas por lei está, na prática, liberado. O documento também aponta que milhares de pessoas morrem graças ao cenário atual da política de drogas, com pessoas armadas exercendo a violência ou, quando presas, submetidas a condições desumanas, enquanto o circuito das drogas continua funcionando.

Famílias do século XXI

Em outro trecho, o panfleto que circulou da Iurd de Francisco Morato menciona o PL nº 3.369/2015, conhecido como “Estatuto das Famílias do Século XXI”, e sustenta que tal projeto permitiria o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo e até entre pessoas da mesma família. Trata-se de informação falsa.

O projeto apresentado em 2015, pelo atual deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) não trata de relações sexuais, mas da definição de família para fins legais. Segundo o texto do PL nº 3.369, família seria toda forma de união entre duas ou mais pessoas que se constitua com o intuito de ser uma família e que se baseie no amor e na socioafetividade.

O projeto ressalta que a família assim constituída independe de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo, raça e inclui filhos e pessoas que sejam consideradas como tal.

O panfleto, sob análise, induz seus leitores a acreditar que há uma permissão a relações incestuosas no projeto de lei, o que não condiz com a realidade. A tramitação do PL pode ser acompanhada neste link.

Programas religiosos na televisão

Outra afirmação presente no panfleto com conteúdo político-religioso é a de que o Projeto de Lei nº 299/1999 limita o tempo de programas religiosos na televisão a, no máximo, uma hora de duração. Porém,o mencionado projeto não guarda qualquer relação com o tema apresentado pelo folheto.

Trata-se, na verdade, de uma proposta de alteração do Código Penal (CP) que propõe que as penas de pessoas condenadas em regime aberto sejam cumpridas em casa de albergado ou prisão domiciliar, entre outras providências também ligadas ao CP.

Em 2022, a Justiça determinou que a Rádio e Televisão Record S/A e a Rádio e Televisão Bandeirantes diminuíssem o tempo televisivo de programas religiosos, conforme noticiado pelo portal UOL. A decisão, no entanto, se justificou pelo limite legal para comercialização de espaço televisivo para programas de qualquer natureza, estipulado em 25%, o que vinha sendo descumprido por essas emissoras.

Limite sonoro nas igrejas

Por fim, o panfleto religioso menciona um projeto de lei que seria benéfico aos “valores cristãos” e que ajudaria na “propagação do evangelho”. O PL 524/2015 estabelece limites para emissão sonora nas atividades em templos religiosos.

O projeto estipula um limite diurno de 85 decibéis em zonas industriais, 80 decibéis em zonas comerciais e 75 decibéis em zonas residenciais, com limite de 10 decibéis a menos para o período noturno (entre 22h e 6h).

Segundo o texto que circulou na Iurd, trata-se de um bom exemplo de projeto de lei, pois permitiria tranquilidade nas atividades religiosas, “sem correr o risco de tomar multas desnecessárias”.

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Bereia considera enganoso o conteúdo checado, com alguns fragmentos de substância verdadeira, mas apresentados para confundir. Em sua maior parte, o panfleto apresenta projetos de lei existentes e que tratam dos temas referidos, porém faltam detalhes importantes que permitam a total compreensão dos fatos. A omissão de informações, como no trecho que menciona a ADI nº 5.568, já retirada de pauta pelo Supremo Tribunal Federal, contribui para a construção de uma narrativa enganosa persistente no mundo religioso.

Além das omissões, em alguns trechos, há informações que não condizem com as fontes oficiais. Em outros, utiliza-se o exagero como estratégia discursiva para sustentar a tese de que há um projeto em curso contra valores cristãos. O fato de o panfleto não conter fonte ou autoria, uma das características comuns a materiais desinformativos como estratégia de propagação, permite a circulação entre diferentes grupos cristãos que se apropriam do conteúdo. A forma como o texto é apresentado instiga julgamentos negativos contra um ente não revelado, mantendo os interlocutores em constante estado de medo e mobilização política.

Referências de checagem:

Portal STF. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=338927&ori=1 Acesso em: 4 abr 2023

Lei 13.005/2014. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm Acesso em: 4 abr 2023

Anajure. https://anajure.org.br/processos-sobre-teorias-de-genero-e-bullying-homofobico-sao-adiados-julgamentos-sobre-dia-de-guarda-religiosa-sao-reagendados-para-18-11/ Acesso em: 4 abr 2023

Portal STF. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5148159 Acesso em: 4 abr 2023

Planalto.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm Acesso em: 4 abr 2023

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm Acesso em: 4 abr 2023

Câmara dos Deputados.

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565315 Acesso em: 4 abr 2023

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1059446&filename=PL%205002/2013 Acesso em: 4 abr 2023

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1237297&filename=PL%207270/2014 Acesso em: 4 abr 2023

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1402854&filename=PL%203369/2015 Acesso em: 6 abr 2023

http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD18MAR1999.pdf#page=240 Aceso em: 6 abr 2023

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1304807&filename=PL%20524/2015 Acesso em: 6 abr 2023

Senado Federal.

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3584077&ts=1630421107838&disposition=inline Acesso em: 4 abr 2023

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/01/07/projeto-que-criminaliza-homofobia-sera-arquivado Acesso em: 4 abr 2023

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-06/supremo-decide-criminalizar-homofobia-como-forma-de-racismo Acesso em: 4 abr 2023

G1. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/13/stf-permite-criminalizacao-da-homofobia-e-da-transfobia.ghtml Acesso em: 4 abr 2023

Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/justica/justica-determina-que-record-e-band-diminuam-tempo-televisivo-para-igrejas/ Acesso em: 6 abr 2023

UOL.

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2023/02/15/maconha-medicinal-x-recreativa-quais-as-diferencas.htm Acesso em: 10 abr 2023

https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/05/24/justica-condena-band-rio-e-record.htm Acesso em: 10 abr 2023

Bereia.

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-estrategia-discursiva-e-arma-politica/ Acesso em: 4 abr 2023

https://coletivobereia.com.br/ideologia-de-genero-e-um-dos-temas-explorados-por-quem-produz-desinformacao-em-espacos-religiosos-nestas-eleicoes/ Acesso em: 4 abr 2023

https://coletivobereia.com.br/acao-proposta-pelo-psol-nao-exige-que-ideologia-de-genero-seja-obrigatoria-nas-escolas/ Acesso em: 4 abr 2023

https://coletivobereia.com.br/site-gospel-desinforma-sobre-indiciado-de-pastor-por-homofobia/ Acesso em: 4 abr 2023

https://coletivobereia.com.br/universidades-publicas-nao-produzem-drogas-em-suas-dependencias/ Acesso em: 4 abr 2023

Vídeo de Colégio Batista em resposta ao Burger King repercute em Belo Horizonte

Desde o sábado 03 de junho de 2021, circula um vídeo nas mídias sociais do ex-vereador Fernando Borja, no qual o político defende que os direitos LGBTQIA+ não podem ditar o que é “pregado” e que “devemos colocar limites na militância gay”. Nele, o político também acusa os “comunistas” de quererem acabar com a liberdade religiosa e se opõe à ideia de trabalhar assuntos como educação sexual nas escolas, alega ser absurdo falar sobre bissexualidade, homossexualidade e poliamor, assim como declara que as conquistas alcançadas pela população LGBTQIA+ até hoje, se resumem a reprimir a fé das crianças. 

A criação do vídeo foi motivada pela publicação de uma reportagem da TV Globo, no telejornal MGTV, na qual informam que a Comissão de Diversidade Sexual da OAB/MG (Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais) passou a investigar um vídeo produzido pelo Colégio Batista Getsemâni, como um possível caso de LGBTfobia. 

No vídeo divulgado pelo colégio, alunos e alunas se posicionam contra a “ideologia de gênero”, afirmando “Meu Deus não errou”. O vídeo foi uma resposta a um comercial da rede Burguer King, veiculado pelo Dia do Orgulho LGBTQIA+ (28 de junho), em que crianças falam, com naturalidade, quanto ao que pensam sobre esta causa. O Colégio acusou a rede de sanduíches de fazer “confusão mental nas crianças”.

Até o fechamento desta matéria, a publicação realizada pelo ex-vereador já tinha sido assistida por 48.936 pessoas. 

Reprodução do Instagram

O vídeo em resposta ao comercial do Burger King

O vídeo produzido pelo Colégio Batista Getsêmani em Belo Horizonte e postado em suas redes sociais, causou polêmica entre a comunidade LGBTQIA+. Nele, crianças da escola falam que a sua resposta à ideologia de gênero é: “O nosso Deus nunca erra! Ele me fez menina; Ele me fez menino.”

A reportagem da Rede Globo Minas Gerais entrevistou o presidente da Comissão de Diversidades da OAB-MG Alexandre Bahia, que afirmou estar avaliando a possibilidade de uma ação civil pública contra a escola.

Segundo o diretor-geral do Colégio Batista Getsemani, pastor Jorge Linhares, a OAB não fez nenhum contato com a instituição. “Estamos aguardando com o nosso departamento jurídico preparado. Os comportamentos e as leis mudam de país para país”, disse o diretor.

Segundo o pastor, o vídeo feito pelo colégio quis “marcar a posição de que Deus não erra e dar uma resposta à empresa Burger King – local onde a escola leva seus alunos para festas de conclusão de cursos e outras – e não ser conivente com a propaganda que utiliza crianças para apoiar práticas homossexuais”. 

Ele explicou que o Colégio Batista Getsemani é uma escola com princípios cristãos fundada há 30 anos em Belo Horizonte. “Nós prezamos pela fé e prática da Bíblia, na qual aprendemos com Jesus ‘Deixai vir a mim as crianças e não as embaraceis’.”

Apesar disso, Jorge Linhares afirma que o ex-vereador Fernando Borja não fala em nome do colégio. 

O que dizem os documentos curriculares

O vídeo de Fernando Borja faz críticas à discussão sobre sexualidade no contexto escolar. Entre elas, o político afirma que “ao se falar de sexualidade nas escolas, também queiram incentivar a homosexualidade, bissexualidade e o poliamor.” Sobre isso, a professora de educação infantil e mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Paula Myrrha, argumenta que “todos os documentos curriculares se voltam ao combate à homofobia e à transfobia. Não há nenhum documento curricular em âmbito nacional, estadual ou municipal que diga que as crianças devem se tornar homossexuais”.

Myrrha informa ainda que já existem muitas pesquisas mostrando que há benefícios em se trabalhar com crianças a diversidade de configurações familiares e o combate à LGBTfobia. 

“Não se trata de incentivar as crianças a se tornarem homossexuais. Até mesmo porque orientação sexual não é uma escolha. Nenhum documento curricular incentiva as crianças a se tornarem homossexuais, mas falam de respeito às comunidades LGBTQIA+”, explica a mestre em Educação. 

Myrrha, que também é cristã, declara que todos os documentos curriculares falam sobre liberdade religiosa, mas que essa liberdade não se abre ao direito de atacar grupos específicos.

Falta de entendimento

O advogado e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, professor convidado da Fundação Dom Cabral, Daniel Lança, diz que a Igreja não entendeu até agora o que significa respeitar os diferentes tipos de sexualidade. 

Contudo, Lança afirma que não sabe se uma ação civil pública, ou até criminal, contra a escola seria bem sucedida, apesar de ser possível encontrar uma base jurídica. “O que observamos é que nem o Poder Judiciário nem a comunidade LGBTQIA+ se manifestaram, neste caso específico, dizendo que a igreja não pode falar”, diz o advogado.

Com base nesta verificação, Bereia classifica o conteúdo do vídeo produzido pelo político mineiro Fernando Borja como enganoso e falso. O vídeo é opinativo e o ex-vereador tem o direito de expor publicamente sua opinião sobre quaisquer temas, no entanto, o Bereia alerta leitores e leitoras a se manterem atentos quanto a conteúdos embalados como informação, mas que estão recheados de opiniões falsas e enganosas, promovendo a intolerância a qual Fernando Borja acusa a emissora de TV de praticar. 

1 – É enganoso que a Rede Globo promova intolerância religiosa com a reportagem veiculada, pois as afirmações do vereador configuram uma distorção da mensagem, uma vez que não apresenta a reportagem na íntegra, desvirtua o sentido e desinforma sobre direitos fundamentais. 

2 – É falso que as escolas ensinem sobre sexualidade a fim de promover a homosexualidade, a bissexualidade e o poliamor, assim como é falsa a acusação de Borja à Prefeitura de Belo Horizonte, por ter “criado diretrizes para questionar a sexualidade de crianças de três anos na escola pública”. Nos documentos públicos das proposições curriculares municipais de Belo Horizonte, não há questionamento quanto à sexualidade de crianças ou quanto ao tipo de relacionamento que deveriam seguir quando adultas. 

4 – É falso que a única conquista da comunidade LGBTQIA+ até hoje foi reprimir a fé das crianças. Esta afirmação não corresponde à verdade, pois o movimento pelos direitos de gênero não tem por objetivo atingir a liberdade religiosa e a fé de quaisquer pessoas (o que seria crime de intolerância, segundo as leis do país). As conquistas LGBTQIA+, nos últimos 50 anos se localizam no campo de direitos como: realizar cirurgias de redesignação sexual pelo SUS (2008); a Lei Maria da Penha passou a incluir mulheres LGBTQIA+ (2006), a fim de coibir a violência doméstica contra lésbicas, trans e travestis; casais homossexuais agora podem adotar crianças (2010); foi aprovada a realização do casamento homoafetivo em cartórios (2013); uso do nome social e reconhecimento da identidade de gênero (2016); a alteração do nome e gênero no registro civil em cartórios (2018); a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ passa a ser crime (2019); e cai a suspensão da restrição para a doação de sangue por homosexuais (2020). 

5 – É falso que “comunistas queiram acabar com a liberdade religiosa”. Não há qualquer ação concreta neste sentido e se houvesse seria denunciada e condenada por lei. A Constituição Federal, inspirada no artigo 18º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, garante a liberdade de crença e de culto religioso, conforme o inciso 6º do art. 5º da Constituição Federal. Importa registrar que foi um deputado do Partido Comunista pelo estado de São Paulo, o escritor brasileiro Jorge Amado, quem escreveu a emenda constitucional 3218, que inseriu a liberdade de culto religioso pela primeira vez na Constituição Brasileira de 1946. 
Sobre a desinformação denominada “ideologia de gênero” Bereia já publicou diferentes matérias, leia uma delas aqui.

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Médica nomeada para alto cargo na ONU não é defensora da prostituição adolescente

O serviço de notícias em língua portuguesa da Agência Católica de Informação (ACI) Digital, publicou matéria intitulada “Defensora de aborto e prostituição de adolescentes assume alto cargo na ONU, denuncia C-Fam”. O conteúdo foi originalmente publicado em espanhol pela ACI Prensa. Gazeta do Povo, Terça Livre e Aleteia replicaram a notícia.

De acordo com informações publicadas no site das Nações Unidas, “Tlaleng Mofokeng, médica sul-africana e ativista dos direitos das mulheres e dos direitos de saúde sexual e reprodutiva, foi nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas como nova relatora especial sobre o direito de todas as pessoas de usufruto do mais alto padrão possível de saúde física e mental”.

A médica tem a função de monitorar o direito à saúde em todo o mundo. Ela deve estudar práticas e experiências nacionais relacionadas ao direito à saúde, identifica tendências e desafios no processo e faz recomendações sobre como garantir a proteção do direito à saúde. A relatora especial também recebe denúncias individuais de supostas violações do direito à saúde.

Entretanto, na matéria publicada pela ACI Prensa, e reproduzida no Brasil por ACI Digital, Mofokeng é apresentada como “ativista pró-aborto e defensora da prostituição adolescente”. A fonte citada para corroborar as informações é um artigo publicado pelo Centro para a Família e os Direitos Humanos (C-Fam) e que toma como base um artigo da própria doutora Tlaleng Mofokeng de 2009.

Bereia checou as informações e verificou que, no artigo publicado por Tlaleng Mofokeng, ela critica a criminalização das profissionais do sexo e defende que a opinião dessas mulheres deve ser levada em conta. Em nenhuma passagem do texto, existe a defesa da prostituição adolescente. A médica Mofokeng relata a importância desse tipo de atividade e comenta que seu reconhecimento jurídico como relação de trabalho é importante para proteger e dar mais dignidade a essas pessoas.

O trecho citado por ACI Prensa, como “algumas pessoas podem satisfazer certas fantasias e preferências sexuais escabrosas graças aos serviços das profissionais do sexo” não existe consta no artigo publicado por Tlaleng Mofokeng. Da mesma forma, não há no referido trabalho da médica conteúdo que confirme a afirmação da ACI Prensa: “Tlaleng encorajava as jovens adolescentes a considerarem o trabalho sexual como mais uma opção de trabalho”, . Comprova-se que são deturpações da publicação católica em relação ao conteúdo original de autoria da Dra. Mofokeng.

Outro artigo de Tlaleng Mofokeng, datado de 2018, também é citado na matéria da ACI Prensa para caracterizar um suposto ativismo em defesa do aborto. Entretanto, quando se tem acesso ao texto, é possível verificar que Tlaleng trata da questão do aborto na África do Sul como um tema de saúde pública, pois em sua visão muitas mulheres realizam abortos caseiros ou clandestinos naquele país, colocando em risco suas vidas. Este tema tem sido abordado desta forma por diferentes profissionais e pesquisadores de área da saúde em todo o mundo. Além disso, Mofokeng relata a situação de mulheres soropositivas e vítimas de abuso sexual e destaca a importância da educação sexual. Portanto, uma simples leitura do artigo a que a ACI Prensa se refere confirma que a reflexão proposta pela médica diz respeito ao tema da saúde pública e ao bem-estar das mulheres na África do Sul, e não de uma defesa aberta do aborto.

Rede global conservadora

De acordo com o site do Centro para a Família e os Direitos Humanos (C-Fam), citado na matéria da ACI Prensa como autor da denúncia, sua função é “monitorar o debate sobre política social nas Nações Unidas e de outras instituições internacionais”. Tem como missão “defender a vida e a família nas instituições internacionais e divulgar o debate”, e como visão “a preservação do direito internacional ao desacreditar as políticas socialmente radicais nas Nações Unidas e outras instituições internacionais”. Os valores fundamentais do C-Fam incluem a fidelidade aos ensinamentos da Igreja [Católica].

A Agência Católica de Informação (ACI Prensa), segundo informações do seu próprio site,faz parte das agências de notícias do Grupo ACI, um dos maiores geradores de notícias católicas em cinco línguas, e que, desde junho de 2014 pertence à família EWTN Global Catholic Network.

Segundo levantamento da Agência Pública, a “Eternal Word Television Network é a maior emissora católica do mundo e principal representante do conservadorismo cristão. Sua programação é transmitida para mais de 6 mil afiliadas em 145 países e inclui jornais, rádios e sites”. Fundada no Alabama em 1981, a EWTN é considerada nos EUA a “Fox News” do mundo católico. Defensora de bandeiras “pró-vida”, a rede apoia Trump desde a campanha presidencial de 2016 e tem produzido conteúdos com ataques ao Papa Francisco.

Além de receber doações do clero estadunidense, a EWTN é a principal fonte de informação para mais de 60% de seus bispos, segundo pesquisa feita pelo episcopado local. A maior parte das doações recebidas pelo grupo vem de milionários e de grupos que apoiam pautas conservadoras, conforme mostrou neste ano uma série de reportagens do site National Catholic Reporter, publicação americana de viés progressista.

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Bereia classifica a notícia publicada por ACI Prensa como enganosa, pois, com a intenção de criticar e se opor à nomeação da ONU, cita trechos inexistentes em um dos artigos de autoria de Tlaleng Mofokeng para destruir a reputação da médica , apresentando-a como defensora da prostituição adolescente. Além disso, a publicação católica faz uso de um trecho deoutro artigo de Mofokeng, eliminando o sentido do que foi publicado originalmente.

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Foto de capa: Tlaleng Mofokeng / Crédito: Flickr de International Women’s Health Coalition (CC BY-NC-ND 2.0)

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Referências de checagem

Nações Unidas Brasil, https://brasil.un.org/pt-br/node/87523 Acesso em: 04 out 2020.

ACI Digital, https://www.acidigital.com/noticias/defensora-de-aborto-e-prostituicao-de-adolescentes-assume-alto-cargo-na-onu-denuncia-c-fam-35316 Acesso em: 04 out 2020.

ACI Prensa, https://www.aciprensa.com/noticias/defensora-del-aborto-y-prostitucion-adolescente-asume-alto-cargo-en-onu-denuncia-c-fam-78251 Acesso em: 04 out 2020.

ACI Prensa, https://www.aciprensa.com/quienes.htm Acesso em: 04 out 2020.

EWTN Global Catholic Network, https://c-fam.org/about-us/ Acesso em: 04 out 2020.

Centro para a Família e os Direitos Humanos (C-Fam), https://c-fam.org/about-us/ Acesso em: 04 out 2020.

Aleteia, https://pt.aleteia.org/2020/09/11/onu-nomeia-medica-defensora-da-prostituicao-adolescente-para-alto-cargo/ Acesso em: 04 out 2020.

Gazeta do Povo, https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/onu-indica-defensora-do-aborto-para-cargo-relacionado-a-direitos-da-saude/ Acesso em: 05 out 2020.

Terça Livre, https://www.tercalivre.com.br/onu-nomeia-medica-defensora-da-prostituicao-adolescente-e-do-aborto-para-alto-cargo/ Acesso em: 05 out 2020.

Agência Pública, https://apublica.org/2020/01/fake-news-e-escandalos-a-midia-catolica-de-direita-ataca-francisco/?mc_cid=2b6be209cc&mc_eid=97864c06e1 Acesso em: 05 out 2020.

Artigo Tlaleng Mofokeng, https://www.teenvogue.com/story/why-sex-work-is-real-work Acesso em: 07 out 2020.

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Project-syndicate.org, https://www.project-syndicate.org/commentary/trump-global-gag-rule-damage-south-africa-by-tlaleng-mofokeng-2018-07 Acesso em: 08 out 2020.