Estudiosos da Bíblia formalizam crítica a PL em tramitação no Senado que proíbe alteração ou edição de textos bíblicos

Está em tramitação no Senado Federal, Projeto de Lei 4606/2019, que “Veda qualquer alteração, edição, supressão, adição ou adaptação aos textos dos livros da Bíblia Sagrada”. A matéria, de autoria do deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), foi aprovada na Câmara em caráter de urgência, em 23 de novembro de 2022, e foi encaminhada para o Senado onde segue a tramitação ordinária.  A última movimentação do PL ocorreu em 6 de dezembro de 2023, quando a proposição foi retirada de pauta da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) para o reexame da matéria

A proposta é criticada por estudiosos dos textos sagrados e colocada como problemática por confrontar princípios constitucionais como o Estado laico, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. 

Pesquisadores da Bíblia questionam o PL

A Diretoria e o Conselho Científico da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib) enviaram, em 28 de novembro passado, carta ao presidente do Senado Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, e ao relator do projeto senador Otto Alencar (PSD-BA), relator do Projeto,, na qual pedem que a matéria não seja aprovada. 

(…)estamos convencidos de que o referido PL não apenas não evitará a ‘intolerância religiosa’, mas, ao contrário, a acirrará, além de não colaborar em nada para o desenvolvimento da sociedade brasileira no que tange à esfera religiosa e seu estudo acadêmico. Solicitamos, portanto, fortemente, que o Senado Federal do Brasil, um país laico e plural, não aprove esta lei”, declara a Abib na carta.

Bereia ouviu o doutor em Ciências Bíblicas, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que é presidente da entidade, Cássio Murilo Dias da Silva. Ele explica que a Abib resolveu reformular nota enviada ao Senado pela primeira vez em 2022 – na ocasião da aprovação do PL na Câmara e início da tramitação do mesmo na casa legislativa revisora do projeto – porque tomou conhecimento que a matéria seria votada em breve. “Há um temor de que este PL venha a prejudicar todo o campo acadêmico que pesquisa a Bíblia, que discute as várias possibilidades da tradução para um único texto. É impossível definir qual é o verdadeiro texto da Bíblia, porque ele não existe”, critica Silva. 

O presidente da Abib ressalta ainda que ao se tentar criar uma lei que proíbe a alteração do texto bíblico, será necessário apontar qual texto é o legal. “Estarei proscrevendo todos os demais. Além de ser algo totalmente inútil e impraticável. Este PL demonstra, antes de mais nada, uma total falta de conhecimento do que é a Bíblia, de como ela se formou, e o deputado que fez o projeto tem um viés extremamente estreito e fundamentalista”.

De acordo com Cássio Silva, a Abib é uma associação que congrega professores e estudiosos da Bíblia, agentes de pastoral, cristãos  de várias denominações e até mesmo alguns que não têm vínculo com denominações, mas que se interessam pela Bíblia. 

“(Esse PL) vai na contramão de todo um diálogo ecumênico entre as igrejas, que têm investido muito na discussão acadêmica, que têm investido na escuta, no respeito à diversidade confessional. Não estou falando aqui de diversidade de gênero, é uma diversidade confessional. Prejudica todo um trabalho de diálogo em vários setores da sociedade em favor de uma ideia muito fechada sobre o que é o texto bíblico”, avalia o presidente da Abib.  “É um PL impossível de executar. Como já falamos na carta, quem vai legislar sobre isso? Quem vai arbitrar se uma tradução da Bíblia é ou não autêntica?”, questiona.

“Nós temos pessoas extremamente capacitadas no campo da tradução e da interpretação da Bíblia. Essas pessoas não foram ouvidas para saber se um projeto como este é viável, se é possível colocar em prática, Não é competência do Congresso arbitrar sobre isso. O texto bíblico original não existe, é um processo de formação longo que durou mais de mil anos”, explica o pesquisador que ressalta a inutilidade da matéria. “Não vai ajudar em nada a sociedade, o diálogo religioso, a caminhada de fé das comunidades. Será que não tem mais nada de útil para se propor no país? O Congresso não tem nada mais útil para discutir?”, indigna-se o estudioso. 

Outros estudiosos críticos já escreveram artigos que afirmam que a iniciativa pode estabelecer precedentes perigosos para censura e controle de produções literárias e artísticas, além de impactar a autonomia acadêmica e teológica. Ao proibir interpretações ou adaptações, a medida limita a pluralidade religiosa e o desenvolvimento de pesquisas e abordagens sobre os textos bíblicos. 

Este cenário é agravado por uma justificativa interpretada como homofóbica, considerando que a proposta do deputado Pastor Isidório foi justificada em meio a temores de adaptações inclusivas da Bíblia por movimentos sociais, como o LGBTQIA+.

O projeto também gera preocupações quanto à liberdade de crença e à própria laicidade do Estado, que passaria a atuar como guardião de um texto sagrado específico. Essa posição pode ser vista como uma afronta à diversidade cultural e religiosa do Brasil, onde várias tradições coexistem. 

O Fórum de Associações Científicas de Ciências da Religião, Teologia e Ensino Religioso (Facreter) e o Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA), que juntos reúnem 19 entidades científicas, também manifestaram preocupação quanto ao Projeto de Lei 4606/2019, na época da aprovação em regime de urgência na Câmara dos Deputados.

“As expressões ‘alteração’, ‘edição’ e ‘adição’ dos textos da Bíblia Sagrada, vedadas no projeto de lei, apontam para evidente confronto com a Constituição Federal, uma vez que a diversidade dos textos bíblicos em todo o mundo e no correr dos tempos, fruto de estudos e pesquisas religiosas e científicas, por si só, já traz em si a contínua possibilidade de sua edição ou adição”, apontam as entidades em Nota Pública enviada ao Senado, em 11 de dezembro de 2022. 

O documento também afirma que “O teor do PL 4606/2019 é inadequado e fere o princípio hermenêutico próprio das ciências teológicas e das religiões. Caso aprovada, dará causa a enormes dificuldades de interpretação, com conflitos sem fim, tanto pela diversidade de versões, línguas e interpretações, quanto pela ausência de uma instância que poderia decidir com propriedade e legitimidade sobre tais questões. Pelas razões acima explicitadas, solicitamos, fortemente, que o Senado não aprove esta lei”.

Contexto histórico e formação da Bíblia

A Bíblia, o livro sagrado do Cristianismo, é fruto de um longo processo histórico que envolveu a seleção e compilação de textos entre os séculos 2 e 4 d.C. Esse desenvolvimento resultou em múltiplos cânones, como o hebraico, o grego, o protestante, o católico e o ortodoxo, cada um com diferenças significativas em sua composição. Ao que se somam as inúmeras traduções para diferentes línguas e versões literárias. 

Muitos estudiosos afirmam que não existe uma versão única e definitiva da Bíblia, já que divergências nos manuscritos originais e escolhas teológicas moldaram diferentes tradições ao longo dos séculos. Como o  teólogo e doutor em Exegese Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) Ricardo Lengruber, disse ao Bereia em matéria já publicada: “Os manuscritos saídos da mão de seus autores(as) (os autógrafos) não existem mais. Perderam-se no tempo. Os manuscritos antigos a que temos acesso são cópias – que, em geral, são cópias de cópias mais antigas. Por isso, o que ocorre é que há diversas cópias de um mesmo texto. E como são cópias muitas vezes ditadas, há razoáveis variações entre elas. Por isso, nas Bíblias de estudo, há notas de rodapé com a indicação dessas variações. O mesmo ocorre com alguns versículos (inteiros ou parciais) que não constam nos manuscritos considerados mais antigos”.

O processo de transmissão textual da Bíblia foi marcado por alterações, tanto acidentais quanto intencionais, realizadas durante a cópia dos manuscritos ao longo dos séculos. Tradutores modernos, como os responsáveis pela Bíblia de Jerusalém (2016), adotam critérios rigorosos para lidar com essas variações, indicando omissões ou inserções com notas explicativas ou colchetes. Como a carta da Abib ao Senado aponta,  essa abordagem não é uma tentativa de “silenciar” o texto sagrado, mas um esforço acadêmico para preservar a autenticidade histórica e respeitar a diversidade de tradições religiosas.

O  doutor em  Ciências da Religião, professor da Universidade Metodista de São Paulo Marcelo Carneiro também é crítico do Projeto de Lei 4606/201. Para ele o texto coloca sob a tutela do Estado a definição do uso da Bíblia dentro do Brasil. “Só por isso o PL já se apresenta com problemas, pois coloca o Estado laico como tutor do uso de uma obra literária considerada sagrada pela grande parte da população. É verdade, que, entretanto, não pode ficar sob tutela de qualquer poder. A Bíblia não precisa de um guardião do livro: está mais que consagrada no imaginário do povo”, salienta o professor em artigo publicado em março de 2022, na Plataforma Religião e Poder do ISER. 

“Na Idade Média, atitudes que ofendessem a honra da Igreja eram respondidas com tortura e fogueira. Em nosso tempo, não se podendo impor fogueiras reais, erigem-se as simbólicas. O PL do deputado Pastor Sargento Isidório vai um pouco além: penaliza na forma da lei quem, de acordo com sua proposta, falar de modo diferente daquele consagrado por confissões religiosas”, analisa Carneiro.

Bereia tentou contato com o deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) e não obteve resposta. Falou também com a assessoria de Imprensa do senador Otto Alencar (PSD-BA) que, apesar de solícita, não deu retorno para as perguntas enviadas até o fechamento desta matéria.

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Referências

Bereia.

https://coletivobereia.com.br/influenciadora-crista-desinforma-ao-falar-de-textos-supostamente-suprimidos-da-biblia/. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

Câmara Legislativa.

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190408&fichaAmigavel=nao. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2216376. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

https://www.camara.leg.br/entenda-o-processo-legislativo/#:~:text=Se%20tiver%20vindo%20do%20Senado,ou%20recuperar%20o%20texto%20original. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

https://www.camara.leg.br/entenda-o-processo-legislativo/#:~:text=Se%20tiver%20vindo%20do%20Senado,ou%20recuperar%20o%20texto%20original. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

Religião e Poder.

https://religiaoepoder.org.br/artigo/projeto-de-lei-coloca-a-biblia-no-centro-do-debate-sobre-estado-laico/. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

Carta Capital.

https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/justificativa-de-deputado-para-restringir-uso-da-palavra-biblia-tem-conotacao-homofobica/. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

G1.

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/04/28/quais-sao-as-origens-da-biblia-achado-recente-revela-pistas.ghtml. Acesso em: 11 de dezembro de 2024.

Foto de capa: Pixabay

Carta da Abib ao presidente da Câmara dos Deputados acerca do projeto que “proíbe alterações ou acréscimos no texto bíblico”

São Paulo, 1 de dezembro de 2022

Ilmo. Sr. Presidente da Câmara dos Deputados

Arthur Lira (PP-AL)

Ref. Projeto que “proíbe alterações ou acréscimos no texto bíblico”

Pela presidência da ABIB (Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica), dirigimo-nos a Vossa Excelência para manifestar nossa inquietação sobre o projeto de Lei N° 4.606, de 2019, aprovado por esta respeitosa casa – ainda que em regime de urgência, conforme noticiado nos jornais no último dia 23 – proibindo alterações ou acréscimos na Bíblia.

Criada em 2004, durante um congresso que reuniu pesquisadores(as), professoras(es) e estudantes na área de estudo e pesquisa bíblica, das mais diversas confissões religiosas, a ABIB tornou-se o espaço privilegiado do pensamento crítico das hermenêuticas e exegeses bíblicas. E é mediante esse acervo de estudos que nos credenciamos para manifestar total desacordo com os termos e objetivos do citado projeto. Diante de tal proposta, questionamos:

1) Redigidos, originalmente, em hebraico e grego, e canonizados nos anos de 85 d.C., pelos sábios judeus reunidos na assembleia de Jâmmia, como é possível alterar, séculos depois, as páginas do AT (Antigo Testamento)? A mesma questão aplica-se aos textos do NT (Novo Testamento). A prática de Jesus de Nazaré foi essencial para o surgimento dos primeiros textos paulinos – surgidos entre os anos 54 a 64 d.C. – e, mais tarde acrescidos pelos evangelistas e líderes comunitários preocupados em preservar os ensinamentos expostos por Jesus de Nazaré.

2) O Art. 1° afirma: “Fica vedada qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada…”. Mediante tal propositura, perguntamos: quem será esta pessoa ou entidade capaz de fiscalizar essas possíveis alterações? Seria esta a mais nova atribuição da Câmara dos Deputados?

3) Sobre isso, questionamos igualmente: de qual Bíblia estamos falando? Para o Antigo Testamento há ao menos dois cânones (lista oficial de livros inspirados): o hebraico e o grego, com diferentes versões para os mesmos livros e, mesmo, passagens bíblicas, além de o cânon grego acrescentar livros que não se encontram no cânon hebraico. Devido a isso, as igrejas cristãs adotaram diferentes conjuntos de livros. As igrejas de tradição evangélica adotam o que se considera “cânon breve”; a Igreja Católica adota o “cânon médio”, com sete livros a mais que o cânon evangélico; as Igrejas de tradição ortodoxa adotam “cânon longo”, com outros cinco ou seis livros. Qual destes cânones – hebraico, grego, protestante-evangélico, católico ou ortodoxo – será o padrão para se estabelecer o que é “acrescentado” e o que é “retirado” da Bíblia? O projeto parece não levar em conta este fato ligado ao desenvolvimento histórico do cânon e que não pode ser eliminado por decreto.

4) Também não podem ser eliminadas por decreto as divergências entre os manuscritos que contêm as primeiras cópias dos livros sagrados. Deve-se levar em conta que não existe um único versículo bíblico que esteja com as mesmas palavras em todos os manuscritos. O processo de formação e desenvolvimento da Bíblia supõe, já desde os inícios, acréscimos, supressões e mudanças de palavras.

5) Nesta mesma linha, o fato de os originais terem sido escritos em hebraico e grego (para não falar também de aramaico, siríaco, copta, armeno, boairico e latim), a tradução de um texto bíblico é atividade extremamente complexa, pois a mesma palavra em grego ou hebraico pode (e, por vezes, deve) ser traduzida de mais de uma maneira para o português. Perguntamos: a Câmara de Deputados irá arbitrar também para cada uma das infinitas divergências e possibilidades de tradução e de interpretação de uma mesma palavra ou frase?

6) Nossas igrejas professam que a correta interpretação das Sagradas Escrituras conjuga um esforço pessoal de leitura, análise exegética – muitas vezes um esmerado trabalho de tradução dos textos originais encontrados em aramaico, hebraico, grego e latim, conjugados com a ação do Espírito Santo. Como é possível controlar a produção de um vasto campo hermenêutico?

7) Mais absurdo é pensar combater a “Intolerância Religiosa” – optamos por manter o destaque exposto no projeto –, com o frágil argumento de garantir “uma vez por todas, a inviolabilidade de sua redação e sua explanação pública no Brasil”, quando sabemos que qualquer tipo de intolerância ocorre por ignorância ou livre desejo de cometer tal ato violento e que só será superado por um processo contínuo de aprimoramento do sistema educacional.

8) Permita-nos, ainda, um último aceno. Ao recorrer ao texto de João 8,32 – “Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”, o projeto reedita a única hermenêutica condenada por todas as igrejas cristãs que se debruçam, há séculos, sobre as Escrituras e nelas encontram meios para manifestar, na sociedade brasileira e no mundo, os sinais do Reino de Deus, a saber: a leitura fundamentalista. Leitura essa, que prescinde dos contextos literários, históricos, filológicos e redacionais ao interpretar os textos bíblicos ao pé da letra, como se fossem palavras escritas, hoje, em algum órgão de imprensa!

Certos de estarmos abrindo um espaço de um frutuoso diálogo com esta Casa de Leis, provocado pela aprovação do referido projeto, subscrevemo-nos no desejo de colaborar para que as igrejas, alicerçadas nas páginas das Sagradas Escrituras, sigam colaborando na superação de todo e qualquer tipo de violência.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

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