A atual crise diplomática e comercial entre Brasil e os Estados Unidos (EUA) certamente é a mais grave da história. O Brasil está sendo um verdadeiro desafio para a famosa Doutrina Monroe, uma doutrina que construiu todo o arcabouço pelo qual os EUA pautou sua relação com os vizinhos de continente. Porém, devemos recordar que as dissonâncias entre os EUA e o Brasil sempre existiram, algumas mais sérias, outras administradas por conversas bilaterais pela diplomacia brasileira que sempre foi capaz de negociar.
A crise atual tem contornos mais explícitos que envolvem questões econômicas e questões relativas a soberania nacional, trazendo para o campo uma disputa ideológica que poe a prova a sobrevivência de uma extrema direita no cenário mundial. O Brasil tem sido um laboratório de uma extrema direita que desempenha um papel de represamento das forças de esquerda na América do Sul.
A dissonância, no entanto, tem história. Tomo, para efeito de análise, o período que começa com o Estado Novo, sob o governo de Getúlio Vargas (1937-45), e que segue até o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2023, em curso).
(Leia aqui a Parte 1 deste artigo)
Lula e Dilma: Afagos e mais um Golpe
Os governos Lula 1 e Lula 2 (PT, 2003-2006 e 2007-2010) seguiram uma trajetória de construção do multilateralismo, buscando ampliar a liderança do Brasil no cenário internacional. Após tranquilizar o mercado com aceno de moderação e cumprimento de acordos, foi construindo gradativamente a sua inserção no cenário internacional.
A partir da adesão do Brasil à articulação no grupo de países com Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics), em 2009, o Brasil entrou no radar dos EUA. A defesa do multilateralismo e de uma governança global mais inclusiva se coloca como obstáculo contra a pretensão dos EUA de continuar sendo diapasão da economia internacional. Tornava-se evidente o esforço para o fortalecimento as relações Sul-Sul. A posição crítica à guerra dos EUA contra o Iraque (2003-2011) e a defesa da soberania latino-americana frente à Alca, alimentaram a temperatura da dissonância com Washington.
Os governos de Dilma Rousseff (PT, 2011-2014 e 2015-2016) seguiu a mesma direção e as diferenças foram centradas no campo da autonomia energética. O processo de espionagem dos EUA sobre a presidenta, reclamada pela diplomacia brasileira gerou profundo mal-estar.
A luta do país para se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU nunca recebeu apoio da diplomacia estadunidense! A consequência dessa dissonância, atrelada a um quadro interno de crise econômica e política, levou ao golpe parlamentar e midiático que depôs Dilma Rousseff (2016). O vice-presidente Michel Temer (PMDB) assumiu o governo, em tom marcadamente conservador, sem alteração no quadro das relações.
Bolsonaro: curva fora do ponto
O governo de Jair Bolsonaro (PFL, 2019-2022) foi uma curva fora do ponto. Com alinhamento praticamente subalterno a Washington e de costas para a América Latina, este governo Implementou uma agenda assumidamente de extrema direita, que praticamente reverteu as políticas dos governos anteriores.
O Brasil retrocedeu nas conquistas que havia conseguido nos 12 anos anteriores. Talvez tenha sido o único governo dos últimos 95 anos a não experimentar nenhuma dissonância em termos de agenda, exceto a relutância de reconhecer a vitória de Joe Biden (Democrata), em 2021, frente à derrota do presidente Donald Trump (Republicano), considerado um parceiro de primeira linha.
Lula III
Estamos agora no governo Lula III (PT, 2023-em curso) e as tensões assumem contornos mais fortes. As dissonâncias entre Brasil e EUA configuram-se não apenas como diferenças pontuais, mas como reflexos de projetos nacionais e visões de mundo distintas.
Como ator geopolítico na América Latina, o Brasil, em sua aliança com o Brics, representa um risco real para a hegemonia dos EUA. Talvez aqui caiba lembrar um bordão histórico: “para onde se inclinar o Brasil a América Latina se inclina também”. Esta frase foi dita pelo presidente dos EUA Richard Nixon (Republicano) na presença do ditador general Emílio G. Médici, quando este visitou Washington, em 1971.
O presidente Lula tem o desafio de conviver com um congresso adverso e ainda com uma extrema direita ciosa de voltar ao poder. Apesar de Jair Bolsonaro estar sendo submetido a um processo judicial correto, por conta da tentativa de golpe nas eleições de 2022 que o derrotaram, o caso tem sido usado para que os EUA, mais uma vez com Donald Trump na presidência 2025-em curso), pressionem o Brasil no âmbito comercial.
Neste contexto está a possibilidade de aliados de Bolsonaro buscarem o apoio de Trump para uma revanche na eleição de 2026. A ofensiva tarifária (que impõe uma taxação de 50% nas exportações do Brasil para os EUA) e política (exigência de anistia a Bolsonaro para liberação das tarifas) visa manter o Brasil nas cordas. Resta ver se o discurso nacionalista pela soberania, assumido pelo governo Lula, vai prevalecer. Nesse caso, a extrema direita pode sofrer uma nova derrota memorável! Aguardemos as cenas dos próximos capítulos!
Referência
Le Monde Diplomatique Os 200 anos das Relações Brasil-EUA: do reconhecimento da Independência às articulações da extrema direita Acesso em 28 jul 2025
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Foto de capa: Ricardo Stuckert / PR