*publicado originalmente em Violência de Gênero
Essa nota é fruto da minha relação com algumas informantes do meu campo de pesquisa.
Escrevo como pesquisadora mulher, branca, que pesquisa gênero e religião, especificamente as mulheres evangélicas. Sou nativa – para usar um termo antropológico – e circulo no meio religioso evangélico há pelo menos 20 anos.
Ainda que minha própria noção de sujeito seja permeada pela vivência no campo religioso, e claro, o que exigiu e exige de mim desenvolver a habilidade de “estranhar”, viver no meio evangélico sempre foi uma experiência pessoal – e coletiva – transformadora em muitos aspectos. Ainda que não me defina, faz parte da minha constituição enquanto indivíduo.
As igrejas evangélicas tem em comum a missão (e a obrigação) de seguir os ensinos de Jesus Cristo, que são, em síntese: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo, perdoar as pessoas, servir com humildade, viver com fé, arrependimento e pureza de coração, viver em verdade e praticar a justiça. Ou seja, ter a pessoa de Cristo como exemplo de humanidade para agir com todos. Esses são os princípios que regem ou deveriam reger uma pessoa evangélica.
No entanto, a igreja é um lugar de muito poder. Digo com certeza, que é um espaço de disputa por poder, e que por ter a humanidade do Outro como foco, se permite ver a si mesmo como passível de erros.
As mulheres no meio de tudo isso
O último Censo mostrou que as mulheres são a maior parte dos membros das igrejas. Internamente, dizem até que elas carregam as igrejas nas costas!
Apesar disso, a atuação e a voz das mulheres sempre foram esvaziadas pelo discurso dominante masculino, de que elas são frágeis e que sua importância é de menor valor, já que aos homens foi conferido a semelhança do divino, o que garante a primazia nas funções de destaque, nas oportunidades, e claro, o discurso.
Mesmo que esse cenário ainda seja pessimista, venho acompanhando a abertura dos espaços para as mulheres evangélicas no interior de suas denominações, seja como pastoras, professoras, diferente das funções que tradicionalmente desempenhavam, por exemplo, no ensino infantil, nas cantinas ou no cuidado de idosos.
No meu campo de pesquisa, tenho conversado com várias pastoras sobre o aspecto da violência – e suas variadas manifestações – em suas igrejas, e em como o tema tem sido tratado. A resposta é unânime: “falamos, mas precisamos falar com “jeitinho”, por que o assunto assusta e pode gerar ainda mais problemas no interior da família.”; “eu trato desse assunto, mas é difícil porque só passou a ser tratado na minha gestão. Os pastores anteriores (homens) não falavam sobre isso”; “eu falo sobre esse assunto e mostro que tem que denunciar e ofereço apoio: aluguel social, cesta básica etc”.
Outra pastora relatou que no último mês de agosto, promoveu uma roda de conversa com uma profissional da área de Psicologia, em virtude do mês temático, Agosto Lilás (mês que faz referência à campanha nacional instituída pela Lei nº 14.448/2022 para a conscientização e o combate à violência contra a mulher, celebrada em agosto para marcar o aniversário da Lei Maria da Penha (7 de agosto). No evento proposto, os relatos foram impactantes sobre as diversas violências vividas pelas mulheres daquela igreja que, ou não compreendem seu próprio cenário, identificando a violência propriamente dita, ou compreendem, mas por falta de conhecimento e medo, acabam por escolher o silêncio como estratégia de sobrevivência.
Esses relatos não estão restritos a igrejas da Baixada Fluminense – onde tenho feito campo há anos –, mas uma realidade brasileira.
Mais recentemente, uma equipe formada por pastoras e missionárias esteve em viagem ao estado do Maranhão, nordeste do Brasil. Com o objetivo de levar oficinas, palestras dos mais variados temas, a pastora, líder da equipe, que é assistente social e graduanda em psicologia, tomou a iniciativa de ministrar uma palestra sobre violência doméstica, nessa igreja que é filiada à matriz sediada no Rio de Janeiro. A resposta dada pela líder daquela igreja foi uma negativa. Afirmou que ali não se falaria sobre “esse assunto” porque geraria problemas pra ela posteriormente.
Em resumo, a palestra não foi dada, mas ficou a interrogação sobre como e se, a igreja evangélica hoje está, ou não, tratando da violência e seus diversos modos, contra as fiéis.
É claro que sempre houveram casos de violência de todo tipo nos bastidores das comunidades religiosas. A questão é que nos tempos modernos há maior circulação de informações e meios para denunciar. No entanto, há de se indagar se a própria estrutura tem fomentado meios para tratar de um assunto tão urgente para a sociedade, e que claramente as igrejas tem agido como se estivessem a parte. Ou, simplesmente tem adotado o silenciamento e a omissão como resposta ao sofrimento.
Falar sobre as violências contra as mulheres dentro das igrejas é um assunto de grande relevância, que tem sido negligenciado e ofuscado pelas muitas camadas internas e externas que continuam mantendo a estrutura eclesiástica que é intrinsicamente fundamentada nos moldes patriarcais. Como exemplo, temos a Lei 14.786/2023, chamada de “Não é Não – Mulheres Seguras”.
O projeto foi alterado devido à influência da bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Na versão original, escrita pela Deputada Maria do Rosário, parlamentares do centrão adicionaram um parágrafo que deixa claro que a lei não se aplicaria a cultos e eventos religiosos.

Ou seja, a lei que cria um protocolo para combater e prevenir a violência contra a mulher em diversos locais, seria considerada inválida em igrejas, cultos e templos. O que os líderes religiosos temem? Serem julgados e punidos pelas violências e assédios cometidos contra as mulheres nesses espaços?
Novamente, a Bancada da Bíblia, seus membros e religiosos fundamentalistas mostram-se coniventes com o cenário violento em que as mulheres continuam submetidas no interior das igrejas.
Casos reais: a vida como ela é
A título de visibilidade, solidariedade e uma dose de justiça, cito alguns casos[1]:
Porto Velho, Rondônia – Uma adolescente teve o cabelo raspado em evento religioso evangélico;
Betim, Minas Gerais – Pastor flagrado com menor em ato obsceno;
Ribeirão das Neves, Belo Horizonte (MG) – Uma adolescente foi morta pelo pastor de sua igreja;
Quixeramobim, Ceará – Suposto pastor foi preso, acusado de sequestro e assassinato de uma jovem;
Vila Kennedy, Rio de Janeiro – Obreiro preso por ter abusado sexualmente de duas adolescentes;
Arapiraca, Alagoas – Pastor condenado por estuprar filhas gêmeas;
Distrito Federal – Pastor preso, acusado de abusos sexuais contra mulheres;
Jacarepaguá, Rio de Janeiro – Pastor preso por abusar de uma menina de 7 anos de idade;
São Paulo – Pastor denunciado por oferecer “unção” em regiões íntimas de fiéis;
Santo Antônio de Jesus, Bahia – Pastor preso suspeito de estuprar e engravidar adolescente com deficiência intelectual;
Sergipe – Pastor condenado por assédio sexual contra fiéis menores;
Riachão, Maranhão – Pastor procurado por matar ex-companheira com 31 facadas;
Brasília – Pastor e ex-deputado federal acusado de estuprar uma menina de 14 anos em seu apartamento;
Uberlândia, Minas Gerais – Pastor preso, suspeito de abusar sexualmente de adolescentes. As meninas viviam em situação de vulnerabilidade;
Goiás – Pastor procurado pela Polícia Civil por pedir fotos de calcinha a meninas de 13 anos;
Distrito Federal – Pastor evangélico suspeito de praticar crimes sexuais contra adolescentes entre 13 a 16 anos;
Jardim Vitória, Belo Horizonte – Pastor indiciado por assédio sexual e estupro. Ao menos sete mulheres procuraram a Polícia Civil;
Feira de Santana, Bahia – Pastor evangélico suspeito de cometer dois estupros contra fiéis da igreja.
“Penso que minha conquista, ainda que gradativa, é também uma conquista das mulheres” (Maria Madalena – Livro #MadalenaSemFiltro: Memórias póstumas da apóstola de Jesus).
[1] Todos os casos citados tem como recorte temporal os anos de 2022 a 2025. Os casos descritos fazem parte de um monitoramento que está sendo realizado por mim, como objeto para uma futura pesquisa.



