*Publicado originalmente no Jornal da USP
A Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da (FDRP) da USP me convidou para participar do 6º Seminário de Pesquisa da instituição, que será realizado nos dias 6 e 7 de novembro de 2025, com o propósito de ministrar um minicurso intitulado Mulheres muçulmanas e além: linguagem e metodologias para não reproduzir preconceitos. Essa atividade integra o projeto de pesquisa coordenado pelo professor Márcio Henrique Pereira Ponzilacqua, com apoio da Fapep, intitulado Direito e Religião: análise sociojurídica da liberdade religiosa e sua sistematização legislativa e jurisprudencial, do qual faço parte como docente colaboradora.
Este minicurso chega em um bom momento, pois tenho refletido sobre as inúmeras violências que mulheres muçulmanas que usam hijab (lenço islâmico) vivenciam no cotidiano. O Gracias – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, que coordeno, já produziu dois relatórios sobre islamofobia, em 2022 e 2023, e é evidente que as mulheres são os principais alvos das violências sofridas pelos muçulmanos. Não apenas os nossos relatórios, mas também o monitoramento feito pelo Tell MAMA (UK) e os relatórios produzidos pela Council on American-Islamic Relations (CAIR), indicam a incidência da islamofobia em relação às mulheres.
Por isso, considero fundamental falar sobre o assunto e orientar condutas de respeito, empatia e convivência adequadas com mulheres muçulmanas que utilizam vestimentas religiosas islâmicas, como o hijab, niqab, abaya ou outras formas de traje modesto. É importante ressaltar que essas vestimentas constituem uma expressão legítima de fé, identidade e dignidade pessoal, devendo ser reconhecidas e respeitadas em qualquer ambiente social, educacional ou profissional. O entendimento de mulheres que usam lenço (e demais vestimentas islâmicas) é que se trata de uma obrigação religiosa.
O Brasil é um país laico, e isso significa que devemos respeitar todas as práticas religiosas. Nesse sentido, é fundamental compreender que o uso da vestimenta islâmica decorre da liberdade religiosa e do direito individual de manifestação da crença, garantidos pela Constituição Federal. Nenhuma mulher deve ser questionada, constrangida ou julgada por sua escolha de se vestir de acordo com os princípios de sua fé. Portanto, diante de uma banca de seleção, dentro ou fora da universidade, ou em processos de progressão na carreira, não é o seu lenço ou sua pertença religiosa que devem ser questionados, e sim seus conhecimentos e sua experiência para a função.
A primeira sugestão que trago é evitar comentários ou perguntas que interpretem o uso do véu como sinal de “opressão”, “imposição”, ou os motivos que a levaram a se decidir pelo uso, a menos que a própria mulher decida abordar o tema. Essa precaução é importante porque tais interpretações costumam refletir visões externas e generalizações culturais que podem reduzir experiências diversas e complexas a um único significado. Para muitas mulheres, o véu pode representar fé, identidade, empoderamento, e não necessariamente submissão ou coerção. Essa postura contribui para uma escuta mais ética e sensível, que reconhece o protagonismo das próprias mulheres na definição do sentido de suas práticas e experiências.
A segunda sugestão diz respeito às interações pessoais. Recomenda-se tratar a mulher muçulmana com naturalidade e igualdade, evitando reduzi-la à sua aparência ou ao uso do véu. Cumprimentos devem ser feitos de forma respeitosa, sem contato físico, caso não haja certeza sobre a preferência da pessoa. Um simples “olá” ou um aceno são formas adequadas de saudação. É importante lembrar que a maioria das muçulmanas opta por não apertar as mãos de homens que não são da sua família, e essa decisão deve ser respeitada sem questionamentos, do mesmo modo como homens muçulmanos vão evitar ao máximo ter contato físico ao cumprimentar mulheres que não são do seu núcleo familiar. Quando houver dúvida sobre contato físico, como apertos de mão, deve-se optar por uma saudação verbal ou um leve aceno.
A terceira sugestão: nos ambientes institucionais e de trabalho, deve-se assegurar que regras de uniforme, crachá, segurança ou identificação respeitem exceções religiosas, desde que não comprometam normas essenciais. Em situações que exijam a retirada temporária do véu, como em procedimentos de segurança ou identificação, deve ser garantido um local reservado, com a presença exclusiva de uma profissional mulher. Os vestibulares devem estar preparados para receber estudantes muçulmanas, assim como outros concursos, para que tudo seja feito dentro das normas da instituição e do respeito às mulheres.
A quarta sugestão diz respeito à privacidade e ao espaço pessoal, que devem sempre ser preservados. Nenhuma parte da vestimenta religiosa deve ser tocada, ajustada ou removida sem consentimento. Em atendimentos de saúde, segurança ou outras situações que exijam contato físico, é necessário explicar previamente o procedimento e solicitar autorização de forma respeitosa. Cabe dizer que mulheres muçulmanas podem, sim, ser atendidas por homens em casos de emergência, a única coisa que devemos resguardar é a vestimenta dela, ou se tiver que retirar, explicar a motivação.
Minha quinta sugestão é o uso de linguagem adequada, essencial para um convívio harmonioso. Piadas, estereótipos e perguntas invasivas sobre o véu ou sobre a religião devem ser evitadas; isso é racismo religioso, não cabem mais “brincadeiras”.
Comentários como:
“Fulana é uma mulher bomba!”
“Você dorme com isso?”
“Seu marido obriga você a usar?”
“Você pode tirar o véu aqui?”
“Quanto do seu véu impacta o seu trabalho de campo?”
“Você precisava disso?”
Três dessas frases acima foram ditas a mim ou a meu respeito dentro da Universidade. Reforço, portanto, que o uso do véu não deve ser motivo de piadas, curiosidades invasivas ou estigmatização. Lembre-se: perguntas sobre religião ou vestimenta só devem ser feitas em contextos apropriados e com o consentimento da pessoa. É importante destacar que, no Brasil, o Islam vem crescendo, como demonstra o Censo de 2022, assim como outras religiões. Isso significa que mais brasileiros e brasileiras adotaram essa fé. Portanto, se você não acompanha de perto a vida dessa pessoa, tenha cuidado ao indagar sobre sua conversão/reversão em situações nas quais esse assunto não deveria ser o foco.
Quando não sabemos como agir diante de uma pessoa diferente de nós, basta perguntar: “Há alguma forma para que eu possa tratá-la de maneira mais respeitosa?”.
Caso exista um ambiente de diálogo aberto, perguntas feitas com interesse genuíno e respeito podem ser bem-vindas, desde que a mulher se sinta à vontade para responder.
A sexta sugestão diz respeito à convivência inclusiva, que também envolve sensibilidade cultural. Em eventos sociais ou institucionais, recomenda-se oferecer opções alimentares compatíveis com as normas islâmicas (halal) e garantir que práticas religiosas, como os momentos de oração, possam ser realizadas em ambientes apropriados. Se você for receber uma pessoa muçulmana em um evento acadêmico, festa ou outra situação, cuide para que alimentos com carne de porco estejam devidamente sinalizados e que haja outras opções longe do contato com essa carne e com bebidas alcoólicas, que não são consumidas por muçulmanos.
A sugestão número sete é direcionada aos grupos de pesquisa e laboratórios que tenham alunos/as muçulmanos/as — e, na USP, há um número considerável deles, geralmente estrangeiros. É comum que perguntem onde podem rezar. Muçulmanos rezam cinco vezes ao dia; ele/ela precisará apenas de cinco minutos e de um espaço onde não seja interrompido/a para praticar sua devoção. Principalmente as mulheres vão precisar de um espaço mais reservado para sua prática devocional. É importante lembrar que os discentes e docentes muçulmanos realizam o jejum durante o mês do Ramadan. Esse jejum começa antes da alvorada até o pôr do sol. Para saber mais sobre como trabalham ou estudam nesse período, pergunte a elas/eles — tenho certeza de que ficarão felizes em compartilhar suas experiências. Importante destacar que nos feriados religiosos a/o aluna/o pode ser dispensado de suas atividades.
Por fim, qualquer forma de discriminação, intolerância ou assédio motivada pela vestimenta religiosa ou pela fé islâmica constitui violação de direitos fundamentais e deve ser denunciada. O ordenamento jurídico brasileiro protege a liberdade de crença e de manifestação religiosa, conforme o artigo 5º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal, e a Lei nº 7.716/1989, que criminaliza atos de discriminação religiosa ou étnica.
O respeito à mulher muçulmana e à sua vestimenta religiosa representa o reconhecimento da diversidade cultural e espiritual que enriquece a sociedade. Agir com empatia, igualdade e delicadeza é essencial para promover um ambiente de convivência verdadeiramente inclusivo, onde todas as expressões de fé possam coexistir em harmonia.
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Foto: Unplash



