Sites religiosos promovem desinformação sobre a queda do desemprego no Brasil

A divulgação da taxa de desemprego de 2019, pelo IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua/PNAD Contínua) em 31 de janeiro passado, gerou matérias celebrativas em diversos órgãos de imprensa sobre possíveis avanços na economia do Brasil, e alvoroço nas redes entre apoiadores do governo federal.

Três destacados sites de notícias religiosas repercutiram a notícia: o Conexão Política, o Pleno News e o Canção Nova.

Segundo o noticiário, a taxa de desemprego caiu em 2019 na comparação com o ano anterior, passando de 11,6 para 11% da população ativa, a segunda queda anual consecutiva, de acordo a pesquisa divulgada pelo IBGE.

O quadro comparativo que o IBGE apresenta, desde 2012, passou a ser o seguinte:

Taxa de desemprego no Brasil

2012 – 6,9% 2013 – 6,2%
2014 – 6,5%
2015 – 8,9%
2016 – 12,0%
2017 – 11,8%
2018 – 11,6%
2019 – 11,0% 2020 – estimativa FGV 11,3%
Fonte: PNAD – IBGE

No entanto, uma leitura completa dos dados apresentados, mostra que, neste índice, está incluído o trabalho informal e foi, justamente, o crescimento da informalidade que determinou a baixa do número de desempregados.

A informalidade, pelo IBGE, é a soma das pessoas que trabalham sem carteira assinada, dos trabalhadores domésticos sem carteira, de empregadores sem CNPJ, de conta própria sem CNPJ e de trabalhador familiar auxiliar. E ela atingiu, em 2019, um número recorde: 41,1% da população ocupada, o equivalente a 38,4 milhões de pessoas, o maior número desde 2016, quando a informalidade foi de 39,1% (35,056 milhões de pessoas).

Ou seja, o acréscimo do número de pessoas ocupadas tem sido causado, mais da metade, por ocupações informais, num ritmo de crescimento da informalidade que tem se mantido nos últimos anos. Foi o que afirmou Adriana Beriguy, analista da PNAD, em reportagem ao DW.

Na mesma reportagem, a analista declara ver dificuldades na reversão deste quadro: “O que a gente percebeu é que no segundo semestre de 2019 houve um pouco mais de reação na carteira de trabalho, mas ainda muito pequena frente ao quantitativo de carteira que já tivemos em 2014. Para reverter esse contingente grande de informalidade, a gente teria que ter uma mudança estrutural muito acentuada no mercado, e tivemos uma pequena mudança, muito concentrada no final do ano.”

As matérias dos sites Pleno News e Canção Nova não mencionaram esta questão primordial do aumento da informalidade para se compreender a nova taxa de desemprego que, ao ser comparada com outros anos, tem que ser levada em consideração. A matéria produzida pelo Conexão Política menciona os dados, mas não indica os efeitos desta questão na realidade socioeconômica do País.

Efeitos negativos na Previdência Social e na Produtividade

É o próprio IBGE que explica que o aumento da informalidade, além de representar instabilidade e precarização do trabalho, resultado do próprio avanço do desemprego, provoca ainda a queda no percentual da população ocupada que contribui para a Previdência Social. Em 2019, 62,9% dos trabalhadores contribuíam para a aposentadoria, o que representa o menor número desde 2013. O único ano na série histórica do IBGE em que esse dado foi menor, foi em 2012, com 61,9%.

“Em 2014, a população ocupada crescia 1,5%, e a população ocupada contribuinte crescia a uma taxa de 4,2%. Em 2019, a população ocupada cresceu 2%, e a população contribuinte aumentou a uma taxa de 1,1%. Tem todo esse desdobramento da informalidade”, explica Beriguy.

Para o professor do Instituto de Ensino Superior em Negócios, Direito e Engenharia (Insper), Sergio Firpo, em declaração à reportagem do DW, um outro problema gerado pela ocupação informal é a redução da produtividade. “A perpetuação do emprego informal contribui para que a gente permaneça com produtividade muito pequena na economia, e a produtividade é um elemento fundamental para que a gente consiga crescer, e a longo prazo”.

Em sua conta no Twitter, o professor e pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp), Márcio Pochmann, segue o mesmo raciocínio: “A leve queda no desemprego em 2019 refere-se, em grande medida, à substituição dos empregos de qualidade pela fragmentação de atividades precárias de sobrevivência cuja a baixa produtividade termina sendo acompanhada por insuficiente renda gerada para sair da condição de pobreza”.

Pochmann explica ainda: “Com a economia operando abaixo do alcançado em 2014, percebe-se o quanto a gradual ocupação da capacidade ociosa e a lenta e parcial reincorporação da força de trabalho nas atividades encontram-se contaminadas pela substituição da produção local de manufaturas por importados”.

De fato, segundo o IBGE, a indústria, teve o pior desempenho na geração de empregos em 2019. O setor, que já foi responsável por 20% do emprego com carteira em 2004, 2006 e 2010, gerou apenas 2,8% dos postos em 2019, um saldo líquido de 18,3 mil vagas. Isto é reflexo da crise na atividade industrial, que chegou a ensaiar uma recuperação em 2018 mas voltou a ter desempenho negativo em 2019, com recuo de 1,1% em relação ao mesmo período do ano anterior.

O efeito “uberização”

A analista do IBGE, Adriana Beringuy, também afirmou ao DW que o maior incremento das vagas informais ocorre no setor de transportes. “O que a gente tem notado é que tem crescido muito esse perfil dentro da atividade de transporte, muito relacionado ao crescimento de condutores no transporte terrestre de passageiros, que pode ter aí a questão do Uber.”

A reportagem do DW apresenta o levantamento das pesquisadoras Ana Claudia Moreira Cardoso, docente do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e Karen Artur, professora de Direito da mesma universidade, com base em dados da PNAD. O estudo mostrou que entre 2017 e 2018 houve aumento de 29,2% no número de brasileiros ocupados como motoristas de aplicativos, taxistas ou cobradores de ônibus – como é definida a subcategoria pelo IBGE. “A gente sabe que o aumento não veio de taxistas e cobradores de ônibus, mas dos motoristas de aplicativo”, frisa Cardoso.

O professor Marcio Pochmann (UNICAMP) também trata deste tema, relacionando-o à queda da produção industrial: “Avanço da uberização nos serviços é a antecipação consequente da generalizada desindustrialização precoce. A destruição do sistema de proteção social e trabalhista de Temer e Bolsonaro aprofunda o grau de exploração da força de trabalho na economia de contida produtividade”.  

Consequências da “Reforma Trabalhista” e do seu projeto de ampliação

Ao falar da destruição do sistema de proteção social e trabalhista de Temer e Bolsonaro, Pochmann refere-se à “Reforma Trabalhista”, promovida no governo Temer, em 2017, e à ampliação dela, que vem sendo desenvolvida pelo atual Ministério da Economia, desde 2019.  A “Reforma Trabalhista” completou dois anos em novembro de 2019 sem cumprir a principal promessa feita para a sua aprovação: gerar dois milhões de empregos até 2019. Antes dela, havia 12,7 milhões de desempregados; em 2019 eram 12,6 milhões. Das 1,8 milhão de vagas geradas em 2019, 446 mil foram sem carteira assinada; e a maior parte, 958 mil, são ocupações de trabalhadores por conta própria, dos quais 586 mil sem CNPJ. No total, 644.079 postos com carteira assinada foram gerados, destes, cerca de 106 mil vagas (16,5%) resultam das novas modalidades da “Reforma Trabalhista”: trabalho intermitente e o trabalho parcial.

Matéria da BBC Brasil, baseada no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério da Economia, explica bem as novas modalidades e as características dela. O contrato parcial, com jornada reduzida, já existia, mas foi flexibilizado com a “Reforma Trabalhista”. O intermitente é aquele em que a empresa registra o funcionário em carteira, mas não estabelece salário ou jornada fixa. Nesse caso, o trabalhador pode ser convocado por alguns dias ou mesmo horas no mês, a depender da demanda por parte do contratante.

A reportagem da BBC Brasil recorda que este foi um dos pontos mais polêmicos da “Reforma Trabalhista” e é frequentemente apontado por estudiosos como uma “formalização do bico”. Os que o defendem afirmam que ele tem servido muitas vezes de porta de entrada para o contrato em tempo integral. A reportagem ainda lembra que, desde que foi instituída, a modalidade é questionada em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal. O argumento é de que ela violaria princípios constitucionais como o da dignidade humana e do valor social do trabalho. O tema está na pauta do Supremo para maio.

A pesquisa divulgada pelo IBGE, em 31 de janeiro de 2020, mostra alto número de trabalhadores que consideram que trabalham horas insuficientes. A população subutilizada na força de trabalho – que inclui os desempregados, aqueles que gostariam de trabalhar mais horas e quem poderia trabalhar, mas desistiu de procurar um emprego – chegou a 27,6 milhões em 2019, o maior valor da série, e 79,3% acima do menor patamar, registrado em 2014. A taxa de subutilização era de 23,7% antes da “Reforma Trabalhista”; hoje está em 24,2%.

O governo Bolsonaro criou, em setembro de 2019, um grupo de trabalho para propor novas mudanças nas leis do trabalho – uma nova “reforma trabalhista” para reduzir direitos. Durante a campanha eleitoral, em 2018, Jair Bolsonaro já afirmava que o brasileiro precisa escolher entre “ter muitos direitos e pouco emprego, ou menos direitos e mais empregos”. Ele ainda declarou que “é horrível ser patrão no Brasil” e que a “Reforma Trabalhista” deveria ser aprofundada para favorecer mais os empregadores para que gerem mais vagas.

Entre os pontos projetados pelo grupo de trabalho está o fim da unicidade sindical, que prevê a existência de um único sindicato por categoria, cidade, estado ou região, redução dos encargos para empresas que contratarem jovens entre 18 e 29 anos, o fim da multa de 10% sobre o saldo do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) que as empresas pagam ao governo em caso de demissão de funcionários. Hoje, as empresas pagam 50% de multa na rescisão: 40% para o trabalhador e 10% para a União.

Em participação no quadro Silas Malafaia Entrevista, publicado no Canal do Youtube do pastor neste 3 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro repetiu a compreensão de que no Brasil se tem muitos “privilégios” e que “é um país que tem mais direitos”, e “não adianta ter direitos, se não tem emprego”.

O Pastor Malafaia sustenta a compreensão do presidente com a afirmação gravada na entrevista: “Essa visão esquerdopata, de só pensar em privilégio acabou prejudicando os próprios trabalhadores. Rapaz, em que lugar é esse no mundo em que você paga multa. O cara tem fundo de garantia, todos os direitos, e ainda tem que pagar uma multa pra mandar o cara embora”. O Presidente da República completa: “Ninguém vai mandar embora um bom empregado. Eles mandam embora quem não tá correspondendo”.

Ao final, em tom irônico, Jair Bolsonaro disse que vai lançar o programa “minha primeira empresa” para quem reclama que não tem emprego: “Eu tenho falado para o Paulo Guedes: Paulo lance o programa minha primeira empresa. O cara que reclama que não tem emprego, ele vai ter meios de abrir a empresa dele. Daí ele abre a empresa dele. Paga R$ 5 mil por mês para todo mundo, pra ninguém reclamar do salário e vai ser feliz. Vai dar certo, oh, Malafaia?”, indagou, sob risos junto com o pastor (minuto 10:10 a 11:30).

Uma esclarecedora matéria do UOL Economia, nos dois anos da “Reforma Trabalhista” (novembro de 2019), expõe a avaliação e as projeções para o futuro do trabalho e do emprego com o quadro de fragilização do sistema de proteção social e trabalhista desenvolvido desde 2017.

Outros efeitos da fragilização social relacionada ao trabalho

A fila e a redução do Bolsa Família

Em 2019, um problema vivido no passado pelo Programa Bolsa Família voltou a existir: o aumento da fila de pessoas aguardando o benefício. Desde junho de 2019, a fila de pessoas aguardando saltou de zero, patamar que se encontrava desde 2018, para 494.229 famílias. A espera é a maior desde 2015, quando mais de 1,2 milhão de famílias aguardavam o auxílio. São famílias que empobreceram a um perfil de renda que as tornam aptas para o programa, já estão cadastradas mas continuam na miséria e sem a ajuda de R$ 89,00 por pessoa.

O levantamento foi feito por reportagem do jornal O Globo, por meio da Lei de Acesso à Informação, após quatro meses de solicitações ao Ministério da Cidadania, que só liberou a informação depois de determinação da Controladoria-Geral da União (CGU).

A reportagem informa que, entre janeiro de 2018 e maio de 2019, a média mensal de novos benefícios concedidos era de 261.429. Desde junho de 2019, esse número caiu drasticamente, e hoje esse número está em 5.667 novos benefícios concedidos.  Essa redução fez com que a entrada de famílias no Bolsa Família, que deveria ocorrer em até 45 dias após a inclusão e análise dos dados inseridos, passasse a até mais de seis meses, segundo técnicos que trabalham nesse setor.

Em nota para a reportagem de O Globo, o Ministério da Cidadania afirma que a redução de benefícios se deu por questões orçamentárias e combate a fraudes, e cita ainda uma reformulação do programa, em curso.

A volta da fila no principal programa de erradicação da pobreza do país é resultado da redução de beneficiários pelo governo Jair Bolsonaro. Até maio de 2019, primeiro ano do governo, o Bolsa Família havia atingido o maior número de assistidos desde 2004, quando foi criado: eram 14,2 milhões de famílias que recebiam um rendimento médio de R$ 190. Desde então, apesar de o governo ter anunciado a concessão do 13º salário para essas famílias, o programa vem diminuindo a cada mês, tendo atingido, em dezembro de 2019, o menor patamar de famílias beneficiárias desde 2011: 13,1 milhões.

A volta da fila acontece em um momento crítico no combate à pobreza no país. Em 2018, o número de miseráveis (considerados aqueles que vivem com menos de R$ 145 por mês) bateu recorde: 13,5 milhões, segundo o IBGE. A partir de 2015, mais de 4,5 milhões de brasileiros foram empurrados para essa situação, um aumento de 50% em quatro anos. Nesse período, “seis milhões de pessoas passaram a viver com renda de trabalho zero. E o Brasil encurtou a rede de proteção quando ela era mais necessária”, afirmou à reportagem de O Globo, Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

Entre 2015 e 2018, mais de 2,2 milhões de pessoas retornaram ao programa. Para quem já recebe o Bolsa Família, há o problema da queda no poder de compra, corroído pela inflação. Desde 2018, o benefício está congelado em R$ 89, pois, diferentemente de outros programas do governo, não há reajuste automático pois não está indexado à inflação.

Em 2020, a limitação orçamentária de R$ 30 bilhões — o mesmo valor de 2019 — não permite grandes alterações no cenário a curto prazo, por causa do teto de gastos. A pesquisadora Renata Mirandola Bichir, do Centro de Estudos da Metrópole, declarou à reportagem de O Globo: “Não faz sentido cortar (o Bolsa Família), é um programa que custa 0,5% do PIB. Os efeitos podem ser a piora dos indicadores de pobreza e um impacto nos indicadores de segurança alimentar. Precisamos de articulação com outras iniciativas, mas não vemos isso na agenda“.

O crescimento da população de rua

Quem anda pelas ruas das grandes cidades do Brasil não pode deixar de ter a atenção voltada para a explosão do número de moradores de rua. Dados do Censo da População em Situação de Rua, realizado pela Prefeitura de São Paulo, lançado no mesmo dia da divulgação dos dados sobre São Paulo chegou a 24.344 pessoas em 2019 — um aumento de 60% em quatro anos. Em 2015, os moradores nesta situação eram 15,9 mil.

O levantamento da Prefeitura de São Paulo mostra a relação entre o aumento no número de moradores de rua e a alta na taxa de desemprego —que era de 13,2% na cidade em 2015 e em 2019 chega a 16,6%.  A pesquisa indica os motivos relatados por essas pessoas para terem sido levadas à situação de rua: perda de trabalho, conflitos familiares, falecimento de parentes, drogas, problemas de saúde (como depressão). Alguns são egressos do sistema prisional.

Desinformação

Bereia avalia que matérias sobre a queda na taxa de desemprego em 2019 que omitem a questão do crescimento do trabalho informal e promovem a mera comparação com números de anos anteriores que não incluíam esta realidade, e, ainda, desconsideram os efeitos da fragilização social relacionados ao trabalho, apresentam, em síntese, desinformação, com conteúdo enganoso.

Referências de Checagem:

Agência IBGE Notícias. PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 11,0% e taxa de subutilização é de 23,0% no trimestre encerrado em dezembro. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/26740-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-11-0-e-taxa-de-subutilizacao-e-de-23-0-no-trimestre-encerrado-em-dezembro

Informalidade cresce, contribuição para Previdência tem pior nível em 6 anos. DW, 31/01/2020. Disponível em: https://amp.dw.com/pt-br/informalidade-cresce-contribui%C3%A7%C3%A3o-para-previd%C3%AAncia-tem-pior-n%C3%ADvel-em-6-anos/a-52219961?__twitter_impression=true

Pedro Capetti e Elisa Martins. Bolsa Família volta a ter fila, com 500 mil inscritos em apenas um ano. O Globo, 27 janeiro 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/bolsa-familia-volta-ter-fila-com-500-mil-inscritos-em-apenas-um-ano-24212714?versao=amp&__twitter_impression=true

Twitter. Perfil de Márcio Pochmann. Disponível em: https://twitter.com/MarcioPochmann

Mônica Bergamo. População de rua de São Paulo cresce 60% em quatro anos. Folha de S. Paulo, 30 janeiro 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/01/populacao-de-rua-de-sao-paulo-cresce-60-em-quatro-anos.shtml

Leda Antunes. Mais mudanças no emprego. UOL Economia. https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/

Mota, Camila Veras. Caged: o que os números do emprego dizem sobre o primeiro ano da economia sob Bolsonaro. BBC Brasil, 24 janeiro 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51214335

ALESSI, Gil. Bolsonaro: “Brasil tem direitos em excesso. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”. El País, 4 jan 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/22/politica/1540230714_377475.html

Guia de Letramento Midiático: como identificar e combater desinformação

Compartilharam um texto no Facebook. É um desses textos que você poderia ter recebido também no grupo de WhatsApp. O visual das páginas, o estilo do texto e o conteúdo informativo até parecem com o dos sites que você conhece. Esses textos trazem dados, revelam fatos escandalosos, mostram transformações i-na-cre-di-tá-ve-is e contêm até fotos que comprovam o que está sendo falado. E agora, será que dá para confiar?

De acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia 2016, 14% da população brasileira confiam nas notícias que circulam nas redes sociais. Quando se trata das notícias que se encontra em sites da internet, o número sobe para 20%. O fato é que provavelmente em algum momento você já clicou (e talvez até compartilhou como verdade) uma notícia dessas. Pelo menos 62% dos brasileiros confiam de vez em quando (mesmo que poucas vezes) ao se deparar com elas. “Existe um abismo entre a interpretação de texto e o letramento midiático”, afirma Pollyana Ferrari, professora de hipermídia e narrativas transmídias da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), pesquisadora em comunicação digital e autora do livro Como sair das bolhas (Editora Armazém da Cultura). Mesmo que o indivíduo interprete e consiga compreender todas as informações presentes no texto, o letramento midiático vai além da interpretação do que está sendo apresentado. “É preciso verificar se a publicação tem fonte, se a imagem foi manipulada ou não e se o site é um portal ou só tem a aparência, se é uma fachada”, explica a especialista.

Caça-clique, notícias falsas (da expressão em inglês, fake news), opiniões partidárias. Cada vez mais é difícil identificar determinados conteúdos e como são produzidos. Por isso, é crucial que todos nós aprendamos a identificar o que estamos lendo e vendo. Com a popularização dos celulares e tablets, as crianças interagem cada vez mais cedo com a tecnologia e diferentes fontes de informações – sejam texto ou imagens. Timelines (linhas do tempo), vídeos, memes, mensagens e links compartilhados no WhatsApp estão a um clique de distância. “Antes mesmo de iniciar a vida escolar e aprender a ler, as crianças já foram apresentadas a diferentes tipos de mídia. Elas já dominam algumas ferramentas, principalmente os vídeos”, diz Carlos Eduardo Canani, mestre em Educação, professor de Língua Portuguesa e diretor de ensino na Secretaria Municipal de Lages (SC).

O que é o letramento midiático

A definição de letramento se resume basicamente à capacidade de ler e escrever. A partir do reconhecimento de letras e palavras, o indivíduo que está desenvolvendo essas habilidades, além de identificá-las, passa a compreender o significado delas e interpretar o significado daquele conjunto de frases. O letramento midiático segue mais ou menos o mesmo processo, mas inclui a habilidade de identificar diferentes tipos de mídia e interpretar as informações e mensagens enviadas nessas mídias. Isso inclui não apenas os conteúdos de texto que circulam em redes sociais, como também memes, vídeos virais, videogames e propagandas.

FORMATOS PARA TOMAR CUIDADO

Notícia falsa. São textos que se parecem com notícias de verdade. Possuem um layout semelhante ao de um site de notícias tradicionais, citam dados e, às vezes, trazem supostas afirmações de especialistas entrevistados. As informações apresentadas podem ser completamente falsas, mescladas com elementos reais – como afirmações de algum político embasada por dados inexistentes, por exemplo – ou distorcidas (conheça algumas dessas notícias no bloco “O impacto das notícias falsas nas eleições”).

Correntes de WhatsApp. São mensagens alarmistas e desinformações que circulam em grupos do aplicativo. Essas mensagens pedem para serem compartilhadas. Esse pedido pode ser direto, como as que anunciam que aplicativos como o próprio WhatsApp ou o Facebook serão pagos e que para evitar que o usuário tenha que fazer o pagamento, é necessário repassá-la a 20 amigos. Outras são indiretas, informando sobre suspeitos de sequestros em determinadas regiões e pedindo para informar a polícia local. Elas podem ainda falar sobre novas regras do Detran, vagas de emprego em grandes quantidades, tarifas abusivas ou trazer informações capazes de causar indignação em relação a políticos e outras pessoas. “Qualquer um pode produzir um áudio ou um texto”, reforça a professora Pollyana Ferrari. “Antes de compartilhar, é preciso se questionar: quem é essa pessoa que fala no áudio? De onde ela veio? Há algum outro registro sobre este fato?”. As consequências de compartilhamentos automáticos diante de mensagens alarmistas podem ser graves. Em 2017, uma corrente de WhatsApp falsa sobre um grupo que estava sequestrando crianças na Índia levou ao assassinato de sete possíveis suspeitos. A história que circulava no aplicativo, entretanto, era completamente falsa. Nenhum sequestro de crianças havia sido reportado na área descrita pela mensagem.

Sátira. Alguns sites se inspiram em notícias, acontecimentos ou personagens reais para produzir conteúdos satíricos sobre os fatos relatados. Eles são uma espécie de paródia dos conteúdos jornalísticos e, diante de um olhar descuidado, podem ser interpretados como informações reais. É o caso, por exemplo, do Sensacionalista, que conta com mais de 3 milhões de curtidas em sua página no Facebook. Enquanto algumas manchetes podem parecer imediatamente falsas ou duvidosas (como o tweet abaixo que anuncia que “Bolsonaro registra Lula como cabo eleitoral após manobra que dividiu esquerda”), outras podem se passar por verdadeiras, como a manchete “Gilmar Mendes fica irritado por não ter soltado Lula”. Ao fazer uma checagem rápida sobre o perfil do veículo, é possível verificar que o slogan da publicação é “um jornal isento de verdade”.

Caça-cliques. As manchetes sensacionalistas também são características deste tipo de conteúdo. Outra marca são imagens chamativas, que despertam grande curiosidade nos leitores. Apesar disso, o conteúdo vinculado geralmente não entrega o que está sendo noticiado na chamada. Trata-se de um formato produzido para atrair cliques e compartilhamentos, com a finalidade de gerar receita para as publicidades online. Embora parte desses conteúdos não traga as informações desejadas ou aposte direto em informações duvidosas, alguns conteúdos jornalísticos são atribuídos pejorativamente ao termo quando utilizam artifícios ao exagerar ou ocultar informações no título para chamar atenção do leitor.

Opiniões super-partidárias. São textos que apresentam argumentos, dados e informações referentes a um tema ou personalidade.

Apesar de estar ganhando o debate educacional brasileiro nos últimos anos, o tema não é novo. O primeiro curso de letramento midiático surgiu na primeira metade dos anos 1990, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. O assunto, no entanto, se torna cada vez mais urgente com o crescimento desenfreado das notícias falsas, opiniões super partidárias e dos conteúdos caça-cliques, que passaram a influenciar decisões importantes, inclusive levando pessoas a cometer atos violentos como linchamento e até à morte de pessoas inocentes porque muita gente acreditou que aquelas eram notícias de verdade.

O impacto das notícias falsas nas eleições

Por conta das eleições do [Donald] Trump, em 2016, é que se começou a falar muito sobre o tema”, relembra Pollyana Ferrari. Empresário e protagonista da versão americana do reality show “O Aprendiz”, Trump teria sido favorecido pela grande circulação de notícias falsas que atacavam sua concorrente à presidência, Hillary Clinton, ou favoreciam a imagem do empresário.  

“Papa Francisco choca o mundo e apoia Donald Trump”, “Wikileaks confirma que Hillary vendeu armas para o Estado Islâmico” e “E-mail de Hillary para o Estado Islâmico vazou e é pior do que qualquer um poderia imaginar” são alguns exemplos de manchetes que viralizaram três meses antes das eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos.

A prática de usar informações para atacar adversários ou atender interesses políticos é antiga. Em 44 a.C., a República Romana passou pelo que é considerado pelo relatório “A short guide to the history of ’fake news’ and disinformation” (em tradução livre: “Um guia rápido sobre a história das notícias falsas e desinformação”), do International Center for Journalists (UCFJ), como a primeira notícia falsa registrada. Uma das figuras políticas da época, Otaviano travou uma guerra de propaganda política contra o rival Marco Antônio, gravando em moedas frases que manchavam a reputação de seu adversário. A diferença é que rumores desse tipo, com o advento da internet, circulam com muito mais velocidade e volume por todo o mundo em diferentes mídias e com tons de notícias reais. Além disso, na era digital, é muito mais fácil criar uma notícia falsa e torna-la disponível na rede do que criar uma moeda física e fazê-la circular no mercado.

Pelo fato de serem criados para gerar interação, os fatos inventados costumam ser impactantes para chamar atenção, provocar sentimentos fortes (como indignação) e serem compartilhados. É assim – e por meio dos bots, os robôs criados para desempenhar certas funções na internet – que o mercado das notícias falsas opera. De acordo com a análise de 40 notícias (sendo metade delas falsa) em um período de três meses, o Buzzfeed News concluiu que as notícias falsas têm maior alcance do que as verdadeiras. A análise foi feita em cima de conteúdos eleitorais veiculados nos principais veículos jornalísticos dos Estados Unidos, de sites que se dizem informativos e de blogs. Enquanto grandes veículos de mídia, como o New York Times, somaram 7,367 milhões de compartilhamentos, reações e comentários no Facebook, as notícias falsas atingiram 8,711 milhões. Além disso, o relatório do Buzzfeed News aponta que há crescimento do desempenho das notícias falsas sobre as verdadeiras conforme se aproximam as eleições.

Com a polarização política que o Brasil vive há algum tempo, a guerra de desinformações que apoiam ou atacam determinados candidatos também deve se intensificar com a proximidade das eleições. Outra análise, realizada em 2016 pelo BuzzFeed Brasil e baseada em dados do Facebook, indica que as notícias falsas que citavam a operação Lava Jato foram mais compartilhadas que as informações verdadeiras. O relatório analisa 20 textos virais (sendo, novamente, metade deles falsos). Enquanto as notícias advindas de veículos de credibilidade, como o G1, somaram 2,7 milhões de compartilhamentos, reações e comentários, o engajamento das falsas chegou a 3,9 milhões.

Qual é o papel da escola nesse universo de desinformação

Além do amplo contato que as crianças pequenas e até bebês possuem com as mídias digitais, o professor Carlos Eduardo Canani ressalta que, cada vez mais cedo, as crianças começam a dar sua opinião de maneira pública, comentar em conteúdos e até produzir vídeos. “Essas mídias são vistas como socialização, o que indica a necessidade de um papel educativo”, diz. “As mídias ajudam a exibir valores e a formar e toda essa leitura precisa ser ensinada também na escola. É importante que a gente não negue essas práticas, mas as utilize, se apropriando da realidade dos estudantes”. O estímulo ao senso crítico para que crianças e jovens possam estabelecer relações e analisar informações, refletir sobre os papéis de emissor e receptor e até mesmo estimular um diálogo respeitoso são alguns dos principais pontos que a escola pode ajudar a desenvolver no processo da Educação midiática.

O resultado da omissão da escola pode ser sério – e não necessariamente levará muito tempo para se concretizar. Ao ignorar esse debate, a escola pode, ainda que de forma não intencional, endossar movimentos que levam à desinformação e uma leitura equivocada de situações, já que esses estudantes vão se tornar cidadãos que por falta de orientação vão se deixar levar por notícias falsas. No Brasil, já há pelo menos um caso registrado que levou à morte de uma mulher porque pessoas acreditaram em uma informação falsa que circulou em redes. “A Educomunicação destaca a importância de os estudantes desenvolverem senso crítico e se apropriarem mais da realidade que os cerca. É desafio da Educação formar cidadãos críticos em um mundo voltado para o virtual”, aponta Carlos Eduardo. Para o professor de Língua Portuguesa, se restringir ao universo da sala de aula sem questionar essas mídias, estar à mercê das informações sem ter ferramentas para fazer uma análise crítica e não saber distinguir fontes confiáveis pode ser até mesmo considerado um retrocesso para as escolas.

Para avançar nesse debate, é necessária oferecer formação aos professores. Em sua experiência acompanhando escolas públicas e privadas, a pesquisadora em comunicação digital Pollyana Ferrari sente que a resistência para trabalhar com o tema ainda é grande. “Já ouvi: ‘Ah, mas como assim, sair das bolhas, ir até os fatos e ser crítico em relação às redes sociais? A gente tem que trabalhar o lúdico com a criança”, relata. Ela esclarece que o lúdico é importante na Educação, sim, mas são coisas completamente diferentes. “O lúdico é ótimo, eu concordo. Mas além disso, as crianças e adolescentes precisam interpretar fatos e fazer um uso de redes sociais crítico”, afirma. Os educadores precisam se sentir confortáveis para trabalhar o tema, o que só acontece quando há domínio sobre o conteúdo. Inevitavelmente, o mundo digital precisa estar no horizonte do professor.

Textos literários como os de autoria de José de Alencar ou Machado de Assis, geralmente estudados nas escolas e cobrados no vestibular até podem ser fontes para checar informações sobre a época e local em que a história se passa, verificando o que é realidade e o que é ficção na obra. “Mas não é isso que deixará os alunos estimulados a fazer leituras críticas. O estímulo para crianças e adolescentes vai estar nos blogs, redes sociais e memes que estão circulando. Precisamos fazer Educação midiática a partir deles”, diz Pollyana.

Fonte: https://novaescola.org.br/conteudo/12307/guia-de-letramento-midiatico-o-que-e-como-aplicar-e-identificar-desinformacao